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sexta-feira, 29 de maio de 2015

“DITADURA MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a urgência do debate.

“DITADURA MILITAR” OU “DITADURA CIVIL-MILITAR”? Mais que uma questão terminológica, a urgência do debate.




Porque os civis nos chamavam de covardes. Eu fui chamado de covardes várias vezes. Fardado. Gente desconhecida na rua da Praia, que é a rua do Ouvidor em Porto Alegre. “Vocês são uns covardes. O que é que estão esperando?” Cansei de ouvir. “Estão esperando que o Stalin venha sentar aqui em Brasília”. Era nesse tom. “Quer dizer, nós fomos atrás do povo.”
(General Carlos Alberto da Fontoura. Depoimento de 1993 sobre o apoio dos civis ao golpe de 64).

Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das lnstituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo presidente. 
(Roberto Marinho. Editorial do Jornal O Globo, 1984).

Estava pensando cá com meus botões, na década de 70, era filha de pobre e consegui cursar um cursinho de pré-vestibular caríssimo e fazer 4 anos de faculdade numa universidade particular, por ter ficado como excedente no curso de Medicina da UFRJ. Como não quis prestar vestibular no ano seguinte, resolvi fazer Biologia na FTESM. O que hoje não me arrependo 1 minuto. Isso foi na ditadura militar. Paguei todas as mensalidades no dia certo, sem ter entrado em nenhum plano do governo. Ao levar meu diploma na mão, não devia um centavo. Hoje no "governo socialista", o pobre não consegue nem pagar o cursinho de pré-vestibular... As faculdades particulares "cheias de alunos"... que abandonam o curso no meio do caminho por falta de recurso para pagar seus créditos.
(Leila de Souza Bastos. Bióloga e professora. 2013).



A “ditadura militar”, ou “civil-militar”, está longe de ser um assunto do passado que deva ser esquecido. A memória e os efeitos da ditadura na sociedade e na cultura política brasileira estão mais vivos do que nunca e dividem as opiniões, acadêmica e socialmente. Os trabalhos da Comissão da Verdade e o desejo de retorno dos militares por parte de setores da sociedade brasileira, manifesto nas recentes manifestações de rua contra o governo, nos dão bem a medida da centralidade do tema no debate político atual. Não podemos ignorar que para uma parcela crescente deste fenômeno sociológico mal compreendido que chamamos de classe média brasileira, os militares que derrubaram o presidente João Goulart, sob a acusação de suposta esquerdização do governo, são verdadeiros heróis nacionais. Os admiradores dos militares já não têm mais vergonha de mostrar a cara, nas ruas e nas redes sociais, e exibir cartazes pedindo uma nova “intervenção militar”.


Na última década e meia, marcada pela ascensão de governos de esquerda no Brasil e na América do Sul, as ditaduras, como era de se esperar, ganharam ainda mais destaque nos debates políticos. Nesse contexto, no Brasil, surgiu a expressão “ditadura civil-militar”, empregada por acadêmicos, ativistas e, em menor escala, por jornalistas, para designar com mais precisão o golpe e a ditadura imposta ao Brasil em 1964. A expressão consagrada na literatura, nos meios jornalísticos, e de uso corrente na sociedade até então, era “ditadura militar”. Mas afinal, o que de importante a nova expressão traz e em que medida ela nos ajuda a entender melhor o golpe e a ditadura?

O historiador Daniel Aarão Reis Filho é um dos mais enfáticos defensores do uso da terminologia “civil-militar”. Segundo Aarão, em artigo publicado em 2012: “Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular. É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira”. 

Aarão destaca as marchas de dezenas de milhões de pessoas, “de todas as classes sociais”, em apoio e depois em comemoração ao golpe. Participaram das marchas “a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas”. Entretanto, existe “a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar”. Quem se favorece disso? A memória atual, que sustenta que a ditadura foi apenas militar interessa as entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, “todas elas passam para o campo das oposições”. “Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora - e foi - contra a ditadura”. A preservação desta memória, conclui Aarão, limita a compreensão das complexas relações entre ditadura e sociedade.

O historiador Carlos Fico sustenta um ponto de vista semelhante. Num evento em 2012, numa mesa organizada pela Comissão da Verdade intitulada “Antecedentes, contexto e razões do golpe militar”, Fico afirmou que “o golpe não foi militar, mas civil-militar”. Num artigo publicado no jornal “O Globo” de 2014, voltou ao tema e avaliou que o maior avanço da historiografia recente consiste na busca de objetividade em relação à ditadura. Graças ao “distanciamento histórico”, as novas abordagens nos lembram, baseadas em novas fontes documentais e perspectivas regionais, que “setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart”. Os novos estudos comprovam, por exemplo, que a insatisfação das classes médias urbanas não era apenas resultado da “manipulação propagandística”, e que alguns estudantes apoiaram o golpe. “Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Essa perspectiva, de acordo com o historiador, é essencial, porquese entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República”.

A historiadora Denise Rollemberg, numa entrevista ao “IHU-on-line” em 2009, sobre os 40 anos da morte de Carlos Marighela, numa linha argumentativa próxima da de Fico e Aarão, observou que: “Segmentos importantes da sociedade, não só das classes média e média alta, mas setores populares receberam de uma forma muito alegre a instauração do regime e apoiou o regime durante um bom tempo. Esta ideia de que a sociedade brasileira resistiu contra a ditadura, que a ditadura é uma questão dos militares e não da sociedade, é uma construção, a partir do fim dos anos 1970, que é memória e não história. É importante perceber que a ditadura não foi militar, mas civil e militar. Isto deve ser pensado para compreender porque a luta armada ficou tão isolada. Foi porque a sociedade foi muito participante da ditadura”. 

Longe de ser uma unanimidade, o uso da expressão vem despertando acalorados debates envolvendo pesquisadores e pessoas que direta ou indiretamente estão ou estiveram envolvidas com a ditadura. Os que se opõe à nova conceituação afirmam que o uso do termo “civil” descaracteriza a “ditadura militar”, tanto conceitualmente como politicamente. O jornalista Pedro Pomar, num artigo publicado em 2012 no “Brasil de Fato”, afirmou, em tom de reprovação, que virou moda o uso da expressão “ditadura civil-militar” “para designar o regime instaurado em nosso país por meio do golpe militar de março-abril de 1964”. Pomar considera a expressão um “modismo equivocado”. Ao propor a designação “civil-militar” “com a finalidade de garantir que não seja esquecida a participação dos civis”, por mais nobre que sejam as intenções, “termina-se por obter efeito inverso, qual seja, o de diminuir a responsabilidade dos militares, além de confundir a sociedade brasileira, já familiarizada com a expressão Ditadura Militar para designar esse terrível período da nossa história.” Além disso, arremata Pomar, “o termo civil também serve para designar o regime como autoritário, brando, negociado etc. Como se não fosse uma ditadura”, adverte o historiador Lincoln Secco”.

Vale também registrar um comentário ao artigo de Daniel Aarão enviado ao jornal “O Globo” pelo historiador Renato Luís do Couto Neto e Lemos. A “revisão interpretativa” sobre a ditadura é vista pelo historiador como a “reinvenção da roda historiográfica”. A expressão ditadura civil-militar, ao contrário de esclarecer, “constitui um freio na elucidação do seu sentido histórico, porque dilui na vaga categoria “civil” o conteúdo classista do golpe e da ditadura, sobejamente conhecido”. A ênfase no “apoio civil” ao golpe e a ditadura, apresentada como “novidade historiográfica”, pode desestimular os jovens historiadores de buscar a fundo os “poderosos interesses classistas” que presidiram àqueles acontecimentos. “Em suma, concluiu Renato Lemos, jogar o foco da análise de um processo de cruenta disputa política numa sociedade civil metafísica, descarnada, sem conexões com classes e categorias sociais portadoras de projetos classistas é induzir o respeitável público à mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do conhecimento e não o faz avançar um milímetro sequer”.



“Ditadura Civil-Militar” não é um “Modismo Historiográfico”.

As duas formas de se referir à ditadura têm as suas legitimidades e, sobretudo, traduzem momentos e contextos distintos da reflexão histórica sobre o tema. A expressão “ditadura militar”, de um lado, está intimamente ligada à resistência a ditadura e a luta pela redemocratização. O uso da expressão, como contraponto a ideia de “revolução” empregada nos círculos de apoio ao regime, consagrou-se como denúncia da tomada de poder pela força e da imposição de um regime construído à base da cassação das liberdades democráticas e que usou da violência para reprimir as forças de oposição. A expressão “ditadura civil-militar”, de outro lado, embora sem perder de vista o teor crítico e de denúncia da ditadura, está mais conectada com as demandas recentes da sociedade brasileira e a necessidade de rever os conceitos e ampliar o olhar dos pesquisadores, e da sociedade, sobre a natureza do golpe e do regime ditatorial. Mais do que a denúncia, e tentando ir além, a expressão traduz um esforço de entendimento sobre a ditadura, favorecido pelo maior distanciamento histórico.
A terminologia “civil-militar” pode não agradar a todos, como vimos, mas ela tem lá as suas pertinências. Todavia, não pretendo estimular uma disputa entre termos. Não se trata de afirmar esta ou aquela terminologia, mas ressaltar a importância do debate. É no debate político e historiográfico que podemos alargar nossa visão, ir além da memória e do discurso da resistência, e avançar na compreensão mais abrangente tanto do ponto de vista da arquitetura do golpe quanto da sustentação do regime.

Longe de ser um “modismo” ou uma “manipulação terminológica”, como já foi sugerido, a expressão “ditadura civil-militar” aponta para um esforço de compreensão da ditadura para além do aspecto puramente militar. A terminologia “ditadura militar”, por certo, não negligencia a participação civil no golpe e na sustentação da ditadura. Da mesma forma, o acréscimo do termo “civil” não descaracteriza nem mascara o caráter militar da ditadura. Em certo sentido, consciente ou não, a expressão “ditadura militar” encerra uma visão vitimizadora da sociedade brasileira e das esquerdas, atribuindo aos militares a culpa pelo que ocorreu na época. Mesmo apontando para a cumplicidade de setores da classe média e de uma elite civil próxima dos militares, a expressão reduz semântica e sociologicamente a ditadura ao seu aspecto militar. A vitimização da sociedade e a vilanização dos militares em nada ajudam a entender as complexas relações entre ditadura e sociedade. Estas construções binárias tinham um caráter de denúncia e de condenação da ditadura, importante nas décadas de 1970-80, desvelando os crimes e os excessos cometidos pelos militares. Hoje, a uma distância confortável e segura daqueles tempos, e sem a ameaça de um retorno dos militares, precisamos ir além e entendermos a ditadura em todas as suas dimensões.



As críticas ao uso do termo “civil”, e o suposto efeito de abrandamento da ditadura, vêm de setores mais a esquerda, tradicionalmente avessos a revisões históricas, geralmente taxadas de reacionárias.
O uso do termo “civil” para adjetivar a ditadura, a meu ver, chama a atenção para um fenômeno que cada vez mais nos interessa: a atual idealização dos militares como os salvadores da pátria. Os sucessivos governos do PT, os escândalos de corrupção e o baixo desempenho da economia criaram um ambiente de crise de legitimidade do governo (Ainda que a noção de legitimidade seja bastante problemática). É em momentos como este, como bem observou Raoul Girardet, que se situam os apelos mais veementes ao herói salvador. No nosso caso, das forças armadas, a instituição salvadora. As reflexões de Girardet sobre a figura do salvador e os contextos de crise de legitimidade podem nos oferecer bons insights para pensar o que aconteceu no Brasil em 1964 e o que acontece hoje. A defesa que alguns movimentos e setores da sociedade brasileira fazem da intervenção restauradora e purificadora dos militares tem um apelo mítico. Os mitos políticos aparecem como respostas específicas de cada sociedade, ou de certos grupos sociais, a determinadas situações: rejeição global de um governo justa ou injustamente desacreditado, ruína financeira, desordem interna (Girardet), e eu acrescentaria, como característicos da sociedade brasileira, a corrupção e a ameaça de governos com tendências de esquerda. Nestes momentos, o ideal de regeneração moral e os apelos a um suposto passado de ordem e decência - a intervenção e o regime militar – aparecem como a solução para a desordem e a decadência do presente. A intervenção salvacionista das forças armadas, como em 64, verdadeira panaceia conservadora, operaria uma correção dos rumos e devolveria ao país a credibilidade, a confiança e a decência perdidas. Uma breve consulta nas páginas dos grupos pró-intervenção nas redes sociais, e nos comentários dos simpatizantes, é suficiente para identificar o apelo mítico à intervenção regeneradora dos militares.



As crescentes e inquietantes demonstrações públicas de apelo por uma “intervenção militar” vindas de diferentes setores da sociedade brasileira, e o silêncio cúmplice, e por vezes o apoio tácito, de parte da imprensa brasileira, nos obrigam a entender melhor o apoio popular e a participação de agentes civis no golpe de 64 e no regime ditatorial. A simpatia pela ditadura e por mecanismos autoritários de governo, ainda que alimentada pela desinformação, é um dado do presente que deve reorientar o olhar do historiador/pesquisador sobre o passado recente. A polarização política decorrente da ascensão da esquerda vem provocando verdadeiros combates pela memória. Leituras favoráveis à ditadura e aos militares, ainda que rasas e pobres heuristicamente, disputam com as narrativas da esquerda e dos historiadores. Gostando ou não, as narrativas pró-militares apresentam-se como contraponto conservador à chamada memória da resistência, em certo sentido mistificadora, emplacada pela esquerda desde o final dos anos 70. Personagens como Lamarca, Marighela e Dilma Rousseff, antes vistos como heróis por enfrentar a ditadura, são hoje atacados e chamados de terroristas. A violência praticada pelos miliares é relativizada e justificada como necessária para deter o avanço do comunismo e impedir a cubanização do Brasil.



Já existem estudos a respeito da participação de agentes civis e do apoio de setores da sociedade ao golpe de 64. O tema não é nenhuma novidade. Lembro, no livro do René Dreifuss “1964, a conquista do Estado”, de um capítulo dedicado ao complexo IPES/IBAD e ao envolvimento dos civis e de uma “elite orgânica” “na estratégia militar contra” o governo. A queda do governo de João Goulart, afirmou Dreifuss, “ocorreu como a culminância de um movimento civil-militar e não como um golpe das Forças Armadas contra João Goulart”. E ainda: “Apesar de a administração pós-1964 ser rotulada de ‘militar’ por muitos estudiosos de política brasileira, a predominância contínua de civis, os chamados técnicos, nos ministérios e órgãos administrativos tradicionalmente não-militares, é bastante notável”. Embora Dreifuss, no final da década de 1970, já apontasse a decisiva participação civil no golpe e nos governos militares, os estudos existentes sobre o tema são insuficientes e limitados. Precisamos de novas abordagens, iluminadas por novas fontes, orais e escritas, e que incorpore os documentos e as questões levantadas recentemente pela Comissão da Verdade.

Ao que parece, o fenômeno de apoio a uma nova “intervenção militar” não se limita à classe média elitizada imaginada pelos intelectuais de esquerda. O conceito de classe média é bastante impreciso e insuficiente para dar conta do Brasil de hoje. O uso que se faz é estereotipado e marcado, antes de tudo, por forte dose de pré-conceito, o que dificulta muito o entendimento sobre as aspirações e visões políticas dos setores identificados como de classe média. É preciso reavaliar os conceitos com os quais se examina este tema, sobretudo o de classe. Ao contrário do que sugeriu Renato Lemos, creio que é justamente a abordagem centrada na noção de classe que pode estreitar o olhar e limitar o entendimento das conexões dos militares com os setores da sociedade civil que apoiaram a ditadura. O conceito é redutor e já traz respostas apriorísticas. Tenho mapeado, na medida do possível, a origem social dos movimentos e dos simpatizantes, e percebido que a formação, o poder aquisitivo, a atuação profissional e a faixa etária são bastante amplas e diversas, e que não se restringe aos grandes centros urbanos do centro sul. Não adianta ficar teorizando sobre os movimentos pró-intervenção com base num conceito problemático, deslocado e anacrônico de classe média. Xingá-los de elitistas e ignorantes ajuda menos ainda. É preciso botar a mão na massa e percorrer, com instrumentos de pesquisas mais adequados, como entrevistas orais e netnografias (porque não?), a anatomia destes grupos, a origem social, profissional e a faixa etária dos participantes e simpatizantes. A netnografia, termo cunhado pelo pesquisador norte-americano da área do marketing Robert Kozinets, entendida como a adaptação dos procedimentos da etnografia ao ambiente virtual, pode ser de grande valia para conhecer mais de perto os grupos e comunidades virtuais de apoio ao retorno dos militares. O pesquisador, identificando-se ou não, entra nas comunidades e passa a conviver com os grupos por um determinado período para conhecer o perfil e a visão de mundo dos membros, e, a partir da observação participante, extrair as informações que lhe permita entender melhor suas motivações. As entrevistas orais com agentes militares e civis que participaram do golpe e da sustentação da ditadura, como já vêm sendo feito, podem oferecer novos ângulos de observação. O livro de entrevistas com militares que ocuparam cargos importantes durante a ditadura, organizado por Maria Celina D'Araújo, intitulado “Visões do Golpe”, é um bom exemplo.


A denominação “ditadura civil-militar”, se observada com atenção, insisto, não diz respeito somente ao passado ou a maneira como interpretamos o golpe de 64. Ela repercute as demandas políticas urgentes do nosso tempo e a necessidade de revermos nossos conceitos e categorias para entendermos melhor e lidarmos com mais maturidade com as ondas de conservadorismo autoritário que, sob certas circunstâncias, reaparecem no Brasil.




Roberto Marinho e o general Figueiredo. O empresário e o general, de braços dados, é a melhor tradução da expressão “ditadura civil-militar”.





sexta-feira, 10 de abril de 2015

PENSANDO SOBRE A PONTE.

PENSANDO SOBRE A PONTE.


As formas que regem a dinâmica da nossa vida são de certo modo trazidas pela ponte (...) à duração sólida de uma criação visível.
Simmel

A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.
Heidegger

(...) e sobre o riacho havia uma ponte perfeita formada por um tronco caído (...).

Jack Kerouac



"As meninas na ponte". Edvard Munch (1901).




1.      A Dimensão Afetiva e Mnemônica da Ponte.

Passei minha infância e adolescência observando e atravessando pontes. Pequenas e grandes. Sobre rios e sobre trilhos. Pontes urbanas e pontes construídas no meio do mato. Pontes que levavam para diferentes destinos. Hoje, beirando os cinquenta anos, continuo observando, atravessando e pensando sobre pontes.

As pontes, figuras de fronteira que, na sua mais perfeita ambivalência, ligam e separam, despertam em mim, ao mesmo tempo, fascínio e apreensão. Fascínio, pela majestade, pela travessia, pelo que oferece na outra margem. Apreensão, certamente, pela altura. A acrofobia, que me acompanha desde a infância, seguramente tem a ver com minha experiência com pontes.

Minha casa situava-se no ponto equidistante entre duas pontes. Ambas ligavam meu bairro, em Santa Maria, ao bairro Itararé, onde frequentemente visitava parentes, jogava futebol e me divertia no clube 21 de Abril. As pontes eram passagens obrigatórias para o outro lado. Por baixo delas, corriam os trilhos dos trens. Adorava e morria de medo das pontes. Elas me atraíam, à distância, como paisagem imóvel, ou quando passava por baixo, admirando os pilares e a poderosa estrutura. Mas sentia vertigem quando andava sobre elas. Não tinha coragem de olhar para baixo. Tomava como verdadeiro desafio me debruçar na cabeceira da ponte e olhar para os trilhos do trem lá embaixo. Era um verdadeiro teste de limites e de coragem. Fiz isso poucas vezes. Costumo levar meus medos a sério. Se não atrapalham minha vida, não tento superá-los.




Ponte sobre o rio Jacuí.


Viajei muito de trem na infância e adolescência para pescar com meu pai, para visitar parentes na grande Porto Alegre e conhecidos em Rio Pardo e para acampar nas Tunas, em Restinga Seca, com amigos. Os trens que saíam da estação de Santa Maria tomavam duas direções. Uma delas levava para Livramento e Uruguaiana (neste trecho, pescávamos no rio Santa Maria, no Caverá, no Jacaquá, em Saicã e na ponte do rio Ibicuí, em Dilermando de Aguiar). A outra direção levava para Porto Alegre. O trem, nos dois sentidos, passava sobre muitas pontes. A estrutura suspensa, sem contato com o solo, produzia um barulho singular do atrito dos trilhos com as rodas dos trens. A pesada e enferrujada estrutura de metal que avistava da janela e o rio que corria silencioso lá embaixo tornavam a travessia divertidamente perigosa. Duas pontes me impressionavam pelo tamanho e altura: a ponte do Rio Jacuí, decorada nas duas extremidades com casinhas de pescadores, e a ponte sobre o rio Santa Maria (ao lado), em Cacequi, construída em 1907, e que tinha quase um quilômetro e meio de extensão (a maior na América Latina). Cruzei esta ponte a pé, com meu irmão e meus primos. Foi assustador, mas não podia decepcionar a turma. Os dormentes, peças de madeira sobre as quais os trilhos são fixados, eram distantes uns dos outros, o que tornava a travessia bastante arriscada. Lá embaixo, o rio e a praia de Dourados, de areias incrivelmente brancas. O nome da praia evocava o peixe que, noutros tempos, era pescado em abundância no rio. Nas sete ou oito vezes que fomos pescar ali, capturamos apenas um Dourado. Foi o almoço do dia, num fogão improvisado embaixo da ponte. Meu pai, pescador experiente, preparou um caldo de Dourado com batatas, cebolas e tomates. Inesquecível!! Além de pescador de fim de semana, meu pai era ferroviário (como o pai do Neruda). Construía e concertava as ligas de metal dos trens, os trilhos e a estrutura das pontes. Um dos privilégios, senão o único, da profissão era viajarmos quase de graça nos trens. Eu sentava sempre na janela, atento à paisagem do pampa, esperando pelas pontes. Sabia de cor todas elas. Sabia os nomes e conhecia histórias de assombrações e de pescador envolvendo as pontes. Não dormia nas viagens de trem. Não queria perder nada, nenhuma ponte e, atento aos conselhos do pai, não colocava a cabeça para fora da janela enquanto as atravessávamos. Anos mais tarde, na adolescência, já bastante independente e com outros interesses, viajava sozinho e, quando o trem passava nas pontes, ficava na porta olhando para baixo, para os rios. A vista era bem melhor que a da janela. Minha paixão por pontes só rivaliza com minha paixão pelos rios. Gosto do mar, moro perto de lindas praias, mas não troco o rio, qualquer rio, pelo mar. Rios e pontes são presenças constantes em minha vida. Passei por muitas mudanças, abandonei muita coisa, descobri outras tantas, mas as pontes e os rios são constâncias, são regularidades que nunca sumiram do meu horizonte. Acho que descobri a importância que pontes e rios têm para mim com o Pablo Neruda. Li “Confesso que vivi” na adolescência e voltei a lê-lo mais tarde. Levei o livro comigo em algumas viagens de trem. José del Carmen Reys Morales, pai do Neruda e amante das pontes, era maquinista de um trem lastreiro. As narrativas das viagens de trem com o pai são alguns dos momentos mais bonitos das memórias do poeta.

Neste fragmento, Neruda declara seu amor às pontes:

“Em Chungking meus amigos chineses me levaram para ver a ponte da cidade. Sempre amei as pontes. Meu pai, ferroviário, inspirou-me grande respeito por elas. Nunca as chamava de pontes; teria sido uma profanação. Chamava-as de obras de arte, qualificativo que não concedia às pinturas, às esculturas e nem, é claro, a meus poemas; somente às pontes”.

Meu pai também admirava as pontes, embora não verbalizasse. Homem de poucas palavras, expressava-se melhor com o ferro, criando pequenas obras de arte para entreter os filhos (Brinquedos e quebra-cabeças de ligas de ferro). E ajudava a construir pontes, as grandes “obras de arte” que encantavam o senhor Morales. Embarcando no trem do poeta-maquinista dos bosques chilenos, diria que as pontes, signos da associação, são poemas suspensos, escritos na linguagem do ferro e do fogo (sem metáforas), que comunicam margens e ligam o que antes estava dissociado.

Ônibus? Não. Na época, era um luxo que não podíamos ter.

Outras duas pontes, de dimensões bem mais modestas, eu atravessava quase diariamente para ir à escola ou para ir ao centro da cidade. A menor delas, que chamávamos de pontilhão, era uma pontezinha sinistra localizada na antiga linha do trem, a duzentos metros da minha casa. Circulavam narrativas no bairro sobre uma mulher que foi atropelada pelo trem e caiu da ponte. Desde então o seu fantasma assombrava o lugar e perseguia quem se atrevia passar por ali à noite. Nunca vi o tal fantasma, mas gelava de medo quando, no cair da noite, passava no pontilhão. Se pudesse evitar passar ali, evitava. A outra era a ponte do Itaimbé, na rua Silva Jardim, onde me encontrava com a turma do skate e os amigos das bebedeiras. A ponte, pela velha incompetência do poder público, ficou por um bom tempo inacabada, sem ligar os dois lados da rua. Sorte a nossa, que não tínhamos carro e nos divertíamos com pouco. Subir na ponte em construção, e ficar “planando entre o céu e a terra”, era a diversão da minha turma de adolescentes roqueiros, pobres e desempregados. Levávamos violões surrados, toca fitas e vinho barato, e fazíamos daquele lugar um pequeno santuário suspenso, encravado no coração da urbe.

Se as pontes falassem, e fossem indiscretas, teriam muito que contar sobre namoros relâmpagos, escondidos, interrompidos. Pontes também são esconderijos urbanos para amantes de passagem.

Havia ainda a Garganta do Diabo, ponte de dimensões colossais, inacreditavelmente alta, que levava aos balneários e as cachoeiras da serra. Histórias de suicídios e acidentes terríveis tornaram a ponte lendária. Passei uma única vez a pé pela Garganta do Diabo. Foi deliciosamente aterrorizante!  







Hoje moro na ilha de Florianópolis. Três pontes ligam a ilha ao continente. Duas delas são o meu caminho de todos os dias, para entrar ou sair da ilha. São pontes funcionais, pesadas e frias. A outra, é o cartão postal da cidade. Bela, melancólica, superfaturada, a ponte Hercílio Luz é o signo metonímico da modernidade e da nossa Belle Époque. Sinto-me em casa quando, chegando de uma viagem, avisto a ponte.



Das pontes reais, feitas de ferro, concreto e travessias, vieram as pontes poéticas, cinematográficas, que me levaram para outras margens. Em alguns dos filmes mais marcantes na minha vida, as pontes são verdadeiras entidades. Em “Era uma vez na América”, a magnífica ponte sobre o East River, que liga Manhattan ao Brooklyn, é a moldura poética da narrativa épica de Sergio Leone sobre a vida, as amizades, os amores e a lealdade entre seis garotos judeus pobres que crescem no Brooklyn em meio à criminalidade. 

A ponte, capturada pela bela fotografia de Tonino Delli Colli, em tom sépia, para recriar a atmosfera dos anos 20 e 30, é testemunha imóvel e silenciosa dos encontros e desencontros dos personagens. A trilha insuperável de Ennio Morricone é de chorar. Quero um dia me sentar próximo à ponte, ali onde Noodles e seus amigos passavam, e ouvir a trilha do filme num fone de ouvidos.  



No filme “Os Amantes da ponte Neuf”, de Leos Carax, de 1991, a ponte (acima) é o cenário de uma história louca de amor, na contramão dos romances clichês e convencionais ambientados em Paris, entre Michèle (Juliete Binoche), uma estudante de arte cega de um olho que vive na rua depois do fim de uma relação e Alex (Denis Lavant), um mendigo que sobrevive cometendo pequenos furtos e se apresentando na rua cuspindo fogo. O improvável e imprevisível romance se passa quase que inteiramente na ponte Neuf, a mais antiga das pontes construídas sobre o Sena. A ideia é uma grande sacada! A ponte, lugar de passagem, de fluxo, de pessoas em trânsito (o não-lugar, portanto), transforma-se no “lar” provisório do estranho e irresistível casal de desajustados. Quando estive em Paris fui conhecer a ponte. Passei por baixo e por cima, como nos tempos de criança, atento a tudo. Para quem está apenas de passagem, com olhares fugidios, ela não oferece grandes atrativos e não se destaca das tantas outras que atravessam o Sena. Apesar de linda, se observada com cuidado, a ponte é aparentemente discreta. Vista com mais atenção, revela a solidez e a gravidade das pedras e a beleza dos arcos romanos. É uma das mais bonitas pontes europeias. Para quem viu, e se viu, no filme, e guardou as imagens daquele amor visceral, pungente e tão profundamente romântico quanto à aspereza do chão onde Alex desesperadamente esfrega a cabeça, a ponte tem um apelo quase mítico.



Neste pequeno inventário das pontes da minha vida não poderia faltar René Magritte. Na tela intitulada “Saudade”, de 1940, um homem de asas, vestido de preto, está sobre uma ponte, ao lado de um leão. Homem e leão, indiferentes um ao outro, não pertencem àquele lugar. A ponte, que não liga nada a lugar algum, encerra a melancolia dos dois seres que parecem saber que o sentido de tudo está em lugar nenhum. Destituída dos seus significados mais imediatos e reconhecíveis – ligação, travessia, passagem -, bem ao gosto do pintor, a ponte se converte numa prisão da qual nem mesmo o homem com asas consegue escapar. 






2.      A Dimensão Teórica da Ponte.

Na escrita da minha tese de doutorado, inesperadamente, me deparei com uma ponte batizada com o nome do personagem central das minhas pesquisas: padre Roque Gonzáles. Aproveitei a oportunidade e tentei pensar sobre os significados que a ponte, como signo de fronteira, de passagem e de divisa, comporta. Passei a entender melhor estas poderosas e duradouras estruturas (ou simples arranjos provisórios) que tornam nossos caminhos mais fluídos.

Vamos explorar a ponte Roque González?


A ponte que leva o nome do missionário jesuíta é a famosa ponte internacional sobre o Rio Paraná, inaugurada em 1990, que liga, de um lado, Posadas, na Argentina, e de outro, Encarnación, no Paraguai. É o espetacular encontro do rio com a ponte! Por sugestão do Bispo Diocesano de Missiones a obra foi batizada de Ponte Roque González de Santa Cruz. A homenagem ao jesuíta foi motivada pela obra de evangelização que realizou na região. No início do século XVII fundou a redução de Nuestra Señora de la Anunciación de Itapúa, na região da atual cidade de Posadas, que posteriormente foi transferida para a outra margem do rio com o nome de Nuestra Señora de la Encarnación. Embora no presente estejam situadas em territórios nacionais distintos e separadas por fronteiras políticas bem precisas, Posadas e Vila Encarnación estão ligadas a um passado colonial e jesuítico em comum. O nome da ponte é ao mesmo tempo uma referência e um apelo a este passado.

Nos dois lados do Rio, Roque Gonzáles é reconhecido hoje, nos discursos oficiais, como o Fundador da atual cidade de Posadas e da Villa Encarnación. É visto nas crônicas oficiais locais como uma espécie de cruzador de fronteiras e herói civilizador, pois sua entrada naquelas terras remotas e selvagens marca o advento da ordem racional e civilizadora na região. Isso equivale a dizer, nos termos tradicionais, que com a chegada dos primeiros jesuítas o antigo Paraguai deixa para trás a pré-história e entra definitivamente nos domínios da história. 

Mas o nome da ponte não se resume a uma simples homenagem ao fundador das duas cidades. Apesar de levar o nome do santo paraguaio, a ponte emerge em meio a conflitos internacionais entre os países que tem no rio Paraná uma fronteira comum. Os discursos da integração, que buscam no padre Roque um ponto identitário e uma história em comum no passado, escondem antagonismos e tensões fronteiriças que se arrastam há séculos, que vem dos tempos coloniais, atravessam a formação dos estados nacionais e se projetam no século XX. O período que se estende desde a expulsão dos jesuítas até o final da guerra da Tríplice Aliança foi marcado por diferentes tentativas de demarcação de fronteiras, que terminou por identificar o Rio Paraná como limite político entre Brasil e Paraguai e entre Paraguai e Argentina. Desde então o rio e suas disputadas águas tem sido alvo de estratégias geopolíticas e conflitos diplomáticos pelos usos dos recursos da região. Os conflitos entre Brasil e Argentina em torno da construção das hidrelétricas de Itaipú e Yacyretá revelam as manobras políticas dos dois países pelo predomínio regional. A hidrelétrica argentina foi uma resposta geopolítica a crescente influência brasileira na região. Foi, portanto, uma obra visando mais o jogo político do que o desenvolvimento econômico (Alejandro Grimson mostrou que a construção da represa argentina era um projeto anti-econômico, porém estratégico para a equivalência de forças na região. A preocupação da Argentina era não tornar-se um simples satélite do Brasil). A ideia da construção da ponte nasceu em meio a estes conflitos das hidrelétricas. A ponte, inaugurada em 1990 foi, na verdade, uma forma de ressarcimento econômico ao Paraguai pelos prejuízos provocados pela construção de Yacyretá. O lado paraguaio, mais baixo que o argentino, sofreu mais com a represa das águas, que atingiu maior quantidade de terras. A construção da ponte foi uma recompensa indenizatória para poder avançar com a construção da represa.




É em meio a estas disputas nacionais e jogos de influência regionais que o nome de Roque González vai ser lembrado. Para além dos conflitos, um consenso: padre Roque é visto na região, outrora integrada pelos trinta povos jesuíticos, como o fundador. Percorreu heroicamente os três países e semeou as bases da civilização. A escolha da figura de Roque González para dar nome à ponte sugere a evocação do tempo das reduções, anterior aos Estados Nacionais platinos, em que o rio Paraná não representava um corte político a separar os povos. Padre Roque, e depois os seus companheiros, fizeram do rio um canal de comunicação entre a margem espanhola e a margem indígena. Irmanaram os dois lados do rio pela pregação do evangelho. Prova disso são as ruínas das antigas reduções, encontradas em ambas as margens. Do lado argentino, encontram-se as ruínas de San Ignácio, e do lado paraguaio, as de Trinidad e Santos Cosme y Damian. São testemunhos inequívocos de um passado em comum. Os discursos identitários, expressos pelos periódicos e discursos políticos, apelam para esta suposta irmandade entre as duas cidades, que remontam a sua fundação, como legitimadora da integração regional. Prevalece a imagem de que, para além das fronteiras, subjaz um substrato identitário que permanece indiferente aos limites trazidos pelos estados nacionais. Roque González simboliza, na região que se diz o “corazón del  Mercosur”, o laço identitário que amarra a integração. A ponte que leva seu nome é mais um exemplo dos usos que se fazem do passado para legitimar projetos políticos, identitários e de integração regional. Mas o meu interesse na ponte, neste momento, é outro.

Georg Simmel, num inspiradíssimo ensaio de 1909, fez uma ontologia da ponte, explorando os pares antitéticos associar-dissociar, separar-reunir, como “dois aspectos do mesmo ato”, para discorrer sobre a ação volitiva do homem no espaço. A ponte, diz Simmel, simboliza “as formas que regem a dinâmica da nossa vida”. “Porque o homem é o ser de ligação que deve sempre separar, e que não pode religar sem ter antes separado - precisamos primeiro conceber em espírito como uma separação a existência indiferente de duas margens, para ligá-las por meio de uma ponte. E o homem é de tal maneira um ser-fronteira, que não tem fronteira.” Parto desta visão quase vertiginosa de Simmel para explorar os múltiplos significados que a ponte sugere.

Mais do que a obra de arte, cruzamento da engenharia com a arquitetura, interessa-me a ponte como metáfora. Intervalo fluído entre duas margens, a ponte evoca um amplo conjunto de significados e perspectivas. A ponte, como a fronteira, combina simultaneamente um aspecto de fixidez e outro de fluidez. Ela fixa um caminho entre duas extremidades, antes separadas, ao mesmo tempo em que é passagem fluída, deslizante. É a estranha sensação de estar em lugar nenhum, ou como disse Simmel, planando entre o céu e a terra. À imagem da ponte sobrevém a do deslocamento: deslocamento geográfico, humano, linguístico, cultural. Ponte evoca o que não está fixo, o que esta em trânsito, portanto, transitório. É o vir a ser. A possibilidade de outras margens. Não é de onde se parte, nem aonde se chega. É a travessia, a passagem, via de comunicação entre dois registros territoriais ou culturais. Lembro-me de quando saía de casa para visitar meus tios no Itararé. Antes de chegar à ponte, estava no meu bairro, no meu lugar. Na travessia, sobre a ponte, estava em lugar nenhum, suspenso no tempo e no espaço entre o meu lugar e o outro lado. Quando alcançava a outra margem, estava em território estrangeiro.

A ideia de ponte como travessia, passagem, ligação e diálogo, acompanhou minha vida até aqui, e atravessou minha tese de doutorado de ponta a ponta. Na tese, tomei a ponte, na sua polissemia e ambivalência, como metáfora das inúmeras injunções. Explorei pelo menos quatro sentidos metafóricos: 1. ponte como passagem da barbárie à civilização, da selva à vida política (que presidem o ideal reducional); 2. ponte como fluxo semântico, que está presente na tradução cultural; 3. ponte como diálogo/passagem entre os tempos, que define minha ideia de História; 4. ponte como símbolo de fronteira e da situação fronteiriça da evangelização.

Se na minha vida a ponte, que separa e junta, era e é a passagem para o outro lado da cidade, do rio, na tese, a homenagem ao padre Roque é a minha ponte para o século XVII, uma forma de diálogo/passagem entre o presente e o passado. Como símbolo da associação, nas palavras de Simmel, a ponte traça um caminho entre dois lugares, entre duas culturas. Tomo esta ideia de empréstimo para lançar então uma ponte entre os tempos. Se a História é um diálogo dos sentidos do presente com os do passado, a metáfora da ponte pode orientar esse diálogo. Contudo, lanço uma ponte não para capturar o fluxo contínuo da história, mas para escavar o descontínuo, para ressaltar as diferenças, sublinhar a singularidade das experiências. Não vou ao passado para encontrar raízes, nem as causas do presente. Um retorno ao passado, pelo fio da memória escrita dos jesuítas, não é uma viagem nostálgica guiada pela “ideologia do retorno”. Remontar ao século XVII só tem sentido se encontramos lá modos de existência, ou outras racionalidades, que possam, nos termos de Foucault, confrontar as nossas e tornar “possível uma crítica do presente.” O passado pelo passado é uma obsessão de antiquário.
Afinal, nós não atravessamos pontes para encontrar o mesmo.


3.      Uma Ponte no fim de Tudo.

Fosse eu um homem de fé, religioso e espiritualizado, diria que a morte seria minha última ponte, a passagem para o “outro lado”. Cairia bem, encerraria o texto de maneira elevada, criando uma ponte com a eternidade. Mas não é o caso. Minhas pontes dizem respeito a este mundo e regem a dinâmica da minha vida mundana, mortal e completamente destituída de transcendência. A morte é a ponte para o fim. É a passagem da vida para o nada. É ponte de uma margem só. Não quero viver para sempre. Não desejo a eternidade. Quero a beleza trágica da travessia, este tempo suspenso, ponte entre o nascimento e a morte.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

MACDONALDS E COCA COLA EM CUBA: Socialismo Fast Food à vista?

MACDONALDS E COCA COLA EM CUBA: Socialismo Fast Food à vista?



A Cuba pós-embargos, embora seja ainda cedo para dizer qualquer coisa, já dá sinais do que pode vir pela frente. Poderemos ter uma combinação de socialismo castrista, (sustentado pela velha retórica revolucionária, pelo mito das conquistas sociais e comandado pelo estado patrão e provedor), com capitalismo fast food, impulsionado e revigorado pelo capital de multinacionais e pelos valores do consumo globalizado.  Frei Betto, em conversa recente com Fidel, tentou resumir o encontro do socialismo cubano com a sociedade do consumo que aos poucos chega a Cuba, por conta da retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos, usando a seguinte metáfora: um encontro de um caminhão consumista com um Lada [marca russa do carro mais usado em Cuba] da austeridade”. É uma boa metáfora, admitamos, mas eu faria uma pequena correção: o Lada não representa a “austeridade”, mas o atraso, a carência, o peso severo do passado e o colapso do socialismo castrista. O Lada é uma boa metáfora de um país que parou no tempo, que petrificou o “sonho” e o transformou em capricho de tiranos carismáticos, submeteu sua população ao isolamento e a carência e virou refúgio afetivo dos órfãos globais do socialismo.

Na mesma semana em que Fidel Castro, em mensagem à Federação dos Estudantes Universitários de Cuba (segunda, 26 de janeiro), em meio à retomada do diálogo com Washington, reafirmou os já carcomidos princípios da revolução e declarou que não confia nos Estados Unidos, seu filho, Álex Castro, disse numa entrevista à “América TéVé" que a Coca Cola e o Mcdonalds são bem vindos em Cuba e que  "podem montar uma fábrica da Coca-Cola aqui, por que não? Isso não nos afeta". "Somos vizinhos”, arrematou. “Podem produzir Coca-Cola aqui, podem trazer o McDonald's. Estamos fazendo um break do socialismo, mas não vamos renunciar a ele".
Um “break no socialismo”? O que isto quer dizer? Que o socialismo foi temporariamente suspenso? Que o regime cedeu, parou, está sendo revisto e abriu as portas para se renovar (com oxigênio capitalista do vizinho rico)? Seja lá o que Álex esteja querendo dizer com “um break no socialismo”, o caminho para a instalação de empresas estrangeiras e de uma cultura do consumo, antes abominada pela ditadura e seus sabujos, está aberto. O Castro filho deu sinal verde. O Castro pai, embora não confie no vizinho, parece que não tem opção melhor.
Será que em breve teremos nas ruas de Havana, ao lado dos outdoors da revolução e da onipresente e opressiva imagem do Che, outdoors da Coca e do Mcdonalds, dois dos mais poderosos e significativos símbolos do capitalismo globalizado? Teríamos uma composição de paisagem realmente curiosa, harmonizando a publicidade agressiva da sociedade do consumo com a propaganda totalitária da revolução, num cenário das décadas de 1960/70. Imaginem outdoors da Coca espalhados pela ilha, contrastando com os slogans surrados da revolução, e o M gigante da Mcdonalds ao lado da imagem do Che na Praça da Revolução! Parece coisa de ficção, não é? Mas depois que Fidel virou garoto propaganda da Adidas, nada que vem de Cuba, da Cuba dos Castro, surpreende. E se considerarmos que as imagens do Che, estampadas em camisetas, bonés, xicaras e chaveiros, tornaram-se nas três últimas décadas ícones do consumo mundial (a revolução virou mercadoria), o contraste não seria tão violento assim. Bobear o Mcdonalds, adaptando-se ao gosto local e as peculiaridades do regime cubano, inventa um McGuevara ou um BigCastro! Suspeito que os cubanos, exceto a oficialidade e os bajuladores, não aprovariam os lanches/homenagens. Embora apresentados como novidade, já viriam com cheiro de mofo e gosto de coisa velha.
E a turma da esquerda autoritária que reverencia o regime castrista e detesta o Macdonalds? Será que vai usar a máxima do Lênin (“dar um passo atrás para dar dois à frente”) para justificar a Mcpresença na ilha? Neste caso, se embarcarem na minha brincadeira, a instalação da rede de fast food na ilha faria parte de uma guinada estratégica do regime, iniciada em 2011 (espécie de NEP cubana), no VI Congresso do PCC, com ligeiras concessões ao capitalismo – o passo para trás - para revigorar e reafirmar o socialismo – os dois passos à frente. (Será que é este o sentido de break usado por Álex Castro?)


Vai um BigLênin com molho caribenho?

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A BONECA BARBIE COMO FORMA DE ALIENAÇÃO BOLIVARIANA.

A BONECA BARBIE COMO FORMA DE ALIENAÇÃO BOLIVARIANA.




O “socialismo do século XXI”, expressão cunhada por Heinz Dieterich em 1996 e que contou com a entusiasmada adesão de Hugo Chávez em 2005, é um fenômeno curioso por si só. Embora tente se desvencilhar dos erros e dos fracassos das experiências socialistas do século XX (Boaventura de Souza Santos), parece incorrigivelmente associado a experiências autoritárias (E não basta culpar a “direita golpista” latino-americana pelos malogros do chavismo e assemelhados. Jogar sempre a culpa nos inimigos é nunca se responsabilizar pelos fracassos). O encontro dos ideais do socialismo com o chavismo, e outras aventuras autoritárias latino-americanas recentes, deu novo fôlego histórico às esquerdas, derrubando a equivocada tese de Fukuyama, mas trouxe outros impasses. Sob o comando de Nicolás Maduro o socialismo bolivariano, que já apresentava sinais de decrepitude, tornou-se uma grosseira caricatura de si próprio. Além de mergulhar a Venezuela no caos social, de militarizar a sociedade e ser o principal promotor do culto à Chávez, Maduro agora decidiu que sabe o segredo da felicidade dos venezuelanos e a institui autoritariamente à base de medidas esdrúxulas e desesperadas. Em outubro de 2013, num gesto que parecia ter saído das páginas de “1984”, criou o Ministério da Suprema Felicidade. Na semana passada, Maduro lançou o plano “Natal Feliz” (Plan Navidades Felices), uma versão bolivariana da celebração cristã. “Em novembro e dezembro vamos garantir um Natal feliz a todo o nosso povo”, anunciou Maduro na noite de sábado, 1º de novembro, num discurso ao vivo na televisão. A ideia é evitar que os especuladores e atravessadores arruínem as festas natalinas dos venezuelanos. O carro chefe do natal socialista, que por vontade do presidente começa agora em novembro, é a boneca Barbie vendida a um preço acessível aos mais humildes (250 bolívares, algo em torno de 2,50 dólares). Para garantir que as lojas respeitem os preços estabelecidos, e “que o povo não seja roubado ou vítima de contrabando”, o governo colocou nas ruas 27, 550 fiscais. Parece que funcionou. A corrida às lojas e a fúria consumista esgotaram os estoques em poucos minutos.

Beneficiária do plano de Maduro, María González, venezuelana pobre que vive nas montanhas da Caracas, pode comprar duas bonecas vestidas com o uniforme de ginásio para as netas. As meninas amam as bonecas, mas María nunca pode comprar (http://peru21.pe/mundo/venezuela-nicolas-maduro-decreta-que-barbie-se-vendan-us25-2203782_). O objetivo do plano, segundo a ministra do comércio, Isabel Delgado, é “criar um comércio justo, amável e estruturado, com a presença de pequenos produtores”, como alternativa ao “natal capitalista” que se resume, na visão do governo, em lucros e gastos desnecessários. É isso. No natal socialista de Maduro não pode faltar a Barbie, importada dos Estados Unidos.

Além do grosseiro populismo, a medida contraria a visão do santo protetor do regime em relação à boneca. Em 2007 Chávez declarou: a Barbie é "de uma estupidez que me causa asco". A boneca e o seu parceiro, Ken, eram produtos do imperialismo que entorpeciam as crianças e “representam a última degeneração”. “As meninas, disse Chávez, se frustram caso não sejam como a Barbie”. No lugar dos brinquedos ianques, sugeriu que as crianças brincassem com “brinquedos endógenos”. Outros ícones da cultura estadunidense como os super-heróis, chamados de “heróis do império”, foram igualmente demonizados por Chávez.

O decreto de Maduro derruba as teses anti-imperialistas de Chávez e reabilita a idolatrada boneca ianque. De símbolo do consumismo, Barbie torna-se aliada de primeira linha do governo bolivariano.  É o fetiche da mercadoria usado a favor do “socialismo”. O que mais está faltando no “socialismo” de Maduro? Uma dieta revolucionária à base de bacon, hambúrguer e coca-cola?

Será que Maduro esta sugerindo que a felicidade está no consumo? Ou que a felicidade no socialismo é ter acesso a um brinquedo capitalista?

Uma sugestão. Numa tentativa de harmonizar as críticas de Chávez à boneca Barbie com o desespero de Maduro por popularidade, o Ministério da Felicidade, aliado à propaganda chavista, poderia inventar uma Barbie bolivariana. Teria o rosto e as roupas de Manuela Sáenz, revolucionária das lutas de independência e amante de Simón Bolívar, ou poderia vestir o uniforme militar das milícias chavistas femininas. Ken poderia ganhar uma boina vermelha e um fuzil. Numa versão mais bolivariana poderia vir com os traços e o porte aristocrático de Bolívar. Maduro poderia justificar as alterações nas feições dos bonecos com a tese dos “brinquedos endógenos” de Chávez. Porém, em se tratando de Barbie, provavelmente as crianças rejeitariam a versão bolivariana. Suspeito que só as figuras leais ao presidente, e os bolivarianos convictos, dariam os brinquedos de presente aos filhos.

O “socialismo do século XXI” é uma coleção de arbitrariedades, bravatas e medidas de mau gosto. A inclusão social e as políticas voltadas para as populações mais carentes, historicamente esquecidas, adotadas pelos governos de tendência bolivariana (Evo, Chávez/Maduro, Corrêa e Cristina, em menor grau), que poderiam resultar em ganhos importantes, ficam encobertas e se perdem em meio aos desvios autoritários e as soluções farsescas.

Se o socialismo do século XX ficou marcado pelo totalitarismo e pela brutal violência, o do século XXI está se distinguindo pelos seus aspectos anedóticos e folclóricos.


Merry Christmas.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O MARTÍRIO DE FIDEL CASTRO EM NOME DA PAZ MUNDIAL: Lendo Uma Charge Hagiográfica.

O MARTÍRIO DE FIDEL CASTRO EM NOME DA PAZ MUNDIAL: Lendo Uma Charge Hagiográfica.



Pronto. Fidel Castro deu um passo decisivo em direção à canonização, à moda Guevara e Chávez, que certamente o aguarda no futuro (que eu espero esteja ainda distante). O gesto humanista de oferecer apoio/cooperação aos Estados Unidos e enviar médicos e enfermeiros aos países africanos que lutam contra o ebola carimbou o seu passaporte passa os domínios da santidade. Não faltarão dedicados hagiógrafos que comporão formidáveis necrológios sobre a virtuosa e libertadora passagem do comandante por este mundo. O gesto grandioso em direção à África, e a mão solidária estendida ao inimigo histórico, certamente merecerão páginas laudatórias. A charge acima não deixa dúvidas: enquanto o vizinho agressor mantém a ofensiva e renova o famigerado “bloqueio”, o eterno comandante, atravessado por balas imperialistas, estende compassivamente a mão oferecendo ajuda. Verdadeiro martírio em nome da paz mundial e em socorro dos povos. Um novo mártir se ergue nas Américas.

Eu corrigiria dois detalhes na charge para dar-lhe um tom definitivamente hagiográfico: tiraria o charuto, que não combina com o estado de saúde do comandante, nem com a condição de santidade, e trocaria o uniforme militar pelos trajes da adidas (trajes brancos). Os louros da vitória e as palmas do martírio, caídos aos pés do mártir, sugestão de última hora, emprestariam mais gravidade à cena. O ajuste dos detalhes evidenciaria ainda mais o contraste entre o homem que se entrega em holocausto, em nome da solidariedade universal, e a agressividade do império, o carrasco romano redivivo. A charge é a representação do calvário do comandante.

A declaração de Fidel Castro sobre a ajuda à África e a cooperação com os Estados Unidos apareceu num artigo publicado no último dia 18 de outubro, no Gramna, órgão oficial do regime, como antecipação aos temas a serem debatidos na “Cúpula Extraordinária da Aliança Bolivariana para os Povos da nossa América-Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP)”, que aconteceu em Havana dois dias depois. O combate rápido e eficiente à epidemia, segundo Fidel, deveria ser um dos temas centrais do encontro. Como sempre, o discurso do oráculo de Havana pautou e orientou o encontro da cúpula bolivariana.

A ajuda cubana é pra lá de importante (mais de 160 médicos foram enviados para a África ocidental). Tão importante que o secretário John Kerry declarou o empenho de Cuba como “uma prova real de cidadania internacional”.  As declarações de Margaret Chan, diretora da Organização Mundial da Saúde, organização que coordena os esforços globais para dar combate à epidemia, e de Ban Ki Moon, não deixam dúvidas sobre o valor da ajuda cubana. A ajuda se torna mais importante ainda se olharmos da perspectiva dos povos que a estão recebendo. Não duvido das boas intenções e, sobretudo, da sensibilidade e capacidade dos médicos cubanos para lidar com a epidemia. Não questiono o gesto cubano, legítimo e generoso. O que me incomoda é a reverberação das ações do ditador aposentado entre os admiradores de plantão, sempre prontos para declarar para o mundo a grandeza do homem e silenciar sobre seus erros. Basta um simples gesto do comandante, e o dispositivo apologético, engatilhado há cinco décadas, dispara rasgados elogios e celebra sua extraordinária visão. E Fidel? Bom, Fidel apenas sendo o que ele sempre foi....Fidel! O homem preso dentro do próprio mito.

Íntegra do artigo de Fidel Castro Aqui: http://www.granma.cu/cumbre-extraordinaria-del-alba-tcp-sobre-el-ebola/2014-10-18/la-hora-del-deber




sexta-feira, 7 de novembro de 2014

ESTELIONATO INTELECTUAL E FANATISMO POLÍTICO: As Fake News e as ameaças à Democracia.

ESTELIONATO INTELECTUAL E FANATISMO POLÍTICO: As fake news e as ameaças à Democracia.



“O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos.”
Nietzsche.

O estelionato intelectual combinado com o fanatismo político alcançou o paroxismo. Sites oportunistas e vigaristas espalham notícias falsas, as chamadas fake news (eles vivem disso), e os fanáticos compartilham sem ao menos verificar a autenticidade das informações (o fanático não precisa ver para crer). O fanático é aquele sujeito crédulo, que ama ou odeia cegamente, embora acredite ter visão privilegiada, e vê tudo sob o prisma estreito do maniqueísmo. O fanático se manifesta no plano das certezas e se relaciona com a política como se fosse religião. São autoritários, usam linguagem agressiva, intimidam, e nunca colocam sua fé (política) em julgamento. Quando o fanatismo passa a ser alimentado por estelionatários intelectuais, na velocidade da internet, a “coisa” pode assumir proporções perigosas.

Li ontem num desses sites pilantras, identificado como horadasnoticias.com, a seguinte “notícia”: “Maduro Ameaça Invadir o Brasil se Dilma Cair c/os Protestos, compartilhe comente p/ + pessoas saberem”. É isso mesmo, e escrito desta maneira. Logo abaixo do título, sem nenhuma explicação ou apresentação, aparece um vídeo com um discurso de Nicolás Maduro no qual supostamente a “ameaça” teria sido feita. Assisti ao vídeo e em nenhum momento o presidente Venezuelano menciona qualquer tipo de ameaça de invasão, ainda que velada, ao Brasil (Assim operam os estelionatários intelectuais). Acompanhado de militares, o que é rotineiro num estado militarizado como é a Venezuela, Maduro parabeniza Dilma e celebra a vitória de um “governo progressista” na América.

Suponhamos que Maduro tivesse, sei lá, fora do juízo, feito a “ameaça”, o que seria bastante grave. Ora, quem acompanha as peripécias do herdeiro de Chávez, e tem um mínimo de discernimento, sabe que o sujeito é o campeão das bravatas e dos gestos inconsequentes. E a “ameaça”, se tivesse sido feita, não passaria disso, de uma bravata. Deduzir de uma declaração infeliz (que não foi dada) de uma figura autoritária e folclórica como Maduro uma trama de esquerda para enredar o Brasil nas malhas do bolivarianismo, como se tem feito, é, além de pilantragem política, um desses delírios que o fanatismo provoca. Mas o que esperar de pessoas que formam sua visão política se informando no submundo inescrupuloso do jornalismo? Se não sabem distinguir uma boa fonte de informação, seja da tendência política que for, e se não se preocupam em verificar a autenticidade das notícias que compartilham, como conseguiriam ter algum discernimento político? 

Para os vigaristas, que plantam estas notícias falsas, e os fanáticos, que as espalham como se fosse o novo evangelho, não importa se o conteúdo é ou não é verdadeiro. O que importa é o efeito deletério sobre o adversário. Para derrubar o PT vale tudo. É o método deles, e neste sentido são pares siameses daquela fração inescrupulosa de petistas que eles tanto odeiam.

A difusão de noticias falsas, como a da suposta invasão do Brasil pelos chavistas, embaladas por teses fantasiosas e vigaristas, originou as hiperbólicas bobagens sobre a venezuelização e cubanização do Brasil, que chegou ao cúmulo com o ridículo pedido de ajuda – a tal da “petição” contra a “expansão comunista”- encaminhado ao presidente Obama por fanáticos antipetistas (Passei duas décadas incomodado com o autoritarismo e o fanatismo petista. Quem diria que agora o que me incomoda é o fanatismo contra o PT! Na verdade, estou me lixando para o PT. Eles merecem. Minha preocupação é com a nossa democracia e com a tentativa de desestabilização de um governo democraticamente eleito. O governo Dilma vai além do PT. O PT? Bem, o PT, como diz o ditado, está colhendo o que plantou. Que aprenda com tudo isso e se reinvente).

O bolivarianismo, que eles sequer entendem, a cubanização e a venezuelização, são os moinhos de vento dos setores autoritários e delirantes da “direita” brasileira. A “esquerda” tem os seus moinhos de vento clássicos, mas os da “direita”, se olharmos com uma boa dose de humor, são cômicos. A ameaça (inexistente) do bolivarianismo e a importância que conferem ao (irrelevante) Foro de São Paulo, visto como matriz ideológica de uma espécie de “pátria grande” comunista ou bolivariana nas Américas, tornaram-se ideias fixas de alguns setores desta “coisa” nebulosa e generalizante que chamamos de “direita” (Espero que as pessoas sérias que se identificam com as ideias da “direita” não se sintam ofendidas). Os mais exaltados e autoritários defendem uma intervenção militar, nos moldes de 64, para salvar o Brasil do apocalipse comunista. Não adianta manda-los estudar, ler livros de história. O problema parece ser cognitivo.

O que dizer para esta gente:

- Que o Foro de São Paulo, criado pela combinação de esforços do PT com o PC cubano, num contexto marcado pelo desabamento do comunismo soviético e das teses do “fim da história” de Fukuyama, doze anos antes do PT chegar ao governo, surgia como importante e legítima alternativa, concordemos com ela ou não, para pensar a integração regional e o desenvolvimento da América latina e do Caribe, para além das proposições e orientações do Consenso de Washington? Era um contraponto importante e necessário para uma América Latina que caminhava para absolutismo de mercado e o “pensamento único”, expressão cunhada por Ignacio Ramonet, em 1995. O Foro encarnava uma espécie de anti-consenso, fundamental para pensar e propor alternativas aos ventos monetaristas que sopravam do norte. Mas para quem vê no Foro apenas a tentativa de “implantação do comunismo na América”, e se contenta com certos manuais e catecismos políticos que circulam no ambiente virtual, fazer o que.

- Que o Foro de São Paulo, hoje, além de inexpressivo e impotente, não passa de um espaço obsoleto de discussão que reúne as esquerdas heterogêneas do continente, com trajetórias diversas, que vão desde os partidos de centro-esquerda até os grupos armados, e que esta diversidade paralisa as ações do Foro?

- Que nas tais Atas do Foro, para quem está familiarizado com os debates no campo da esquerda, não encontramos nada além das velhas teses sobre socialismo e imperialismo afirmadas pelos grupos arcaicos e menos expressivos da esquerda continental, e que o comunismo, que alguns grupos fanáticos pertencentes ao Foro ainda defendem, não passa de uma teimosa crença racionalista que sobrevive apenas no plano teórico dogmático (e na cabeça da direita fanática)?

- Que as chances de o Brasil virar uma nova Cuba, ou de mergulharmos num processo de venezuelização, são iguais, exercitemos a imaginação, a possibilidade de avistarmos São Jorge na lua, montado num cavalo branco e fumando um charuto cubano?  

Não levem estas bobagens sobre o Foro e a tal “venezuelização” tão a sério. Elas emburrecem.
O encontro do estelionato intelectual com o fanatismo político oferece uma boa explicação para a foto abaixo. Imagino que os eleitores sérios e honestos do Aécio, avessos aos messianismos, devem se sentir envergonhados.


  
“Do fanatismo à barbárie não há mais do que um passo”.

Diderot.