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sábado, 11 de maio de 2019

OS PODERES DA INVISIBILIDADE E OS DILEMAS DO SUJEITO ÉTICO: DO ANEL DE GIGES AO SENHOR DOS ANÉIS.


Os poderes da invisibilidade E OS DILEMAS DO SUJEITO ÉTICO: do Anel de Giges ao Senhor dos Anéis.


Quem já não se imaginou, por diferentes razões, dominando a técnica ou o poder da invisibilidade? Nas minhas fantasias de menino desejava me tornar invisível para apanhar bergamotas, peras e butiás no pomar de um velho beberrão da vizinhança, que tinha uma arminha de pressão para derrubar chumbo e sal na molecada invasora. Era difícil enganá-lo. O sujeito parecia invisível. Do nada ele aparecia e atirava sem dó. Eu nunca fui atingido, mas alguns amigos não tiveram a mesma sorte e foram feridos nas pernas. Imaginávamos que o homem fosse um bruxo, com uma bola de cristal, capaz de adivinhar as nossas intenções e se antecipar. Nem dos galhos carregados que pendiam para fora dos muros podíamos apanhar os frutos. Para alcançar os galhos tínhamos que subir no muro. E aí começavam os problemas.

Michel de Certeau nos ajuda a decifrar os segredos do cobiçado pomar e da incansável luta para defendê-lo ou invadi-lo. Nada de bruxaria e bolas de cristal. A invisibilidade do vizinho era estratégica; ficava escondido, longe do nosso campo de visão, para pegar-nos de surpresa. Conhecia o terreno, se posicionava bem, e cobria vários ângulos ao mesmo tempo. A nossa, era tática. Inventávamos mil maneiras de entrar no pomar sem sermos vistos. Dividíamos as funções: enquanto uns chamavam a atenção na parte da frente do terreno, outros subiam no muro na parte de trás. Agíamos à tardinha, certos de que a pouca claridade nos favoreceria. Era um jogo de gato e rato. O vizinho, na defesa dos seus domínios, montava as armadilhas; nós, com molecagens astutas, procurávamos driblá-las. Quem conseguisse ficar sem ser visto levava a melhor. Mas o jogo podia mudar no dia seguinte. Para nós era uma brincadeira, ligeiramente perigosa, que, se bem-sucedida, poderia render bons frutos. Para ele talvez também fosse. O velho era solitário, não recebia visitas e bebia o dia inteiro. Dá para imaginá-lo de tocaia, paciente, bebericando alguma coisa para calibrar a mira, à espera dos endiabrados adversários! Acho que os belos pés de frutas eram apenas chamarizes para atrair a gurizada e se exercitar no tiro ao alvo.

Quando o velho morreu, perdemos o interesse pelo pomar. A brincadeira perdeu a graça. O lugar ficou abandonado durante anos e nós raramente subíamos no muro para apanhar frutas. No começo dizíamos que o fantasma dele estava lá, rondando, vigilante e invisível, para espantar os intrusos. A imaginação infantil, estimulada pelos causos de assombração que ouvíamos dos adultos, até que rendeu bons sustos. Mas logo perdeu a graça também. Nosso valoroso e respeitado adversário não merecia ser reduzido a uma triste e vingativa assombração. Acho que por esta época meu interesse pelas frutas foi diminuindo à medida que aumentava meu interesse pelas meninas. Tímido, e nada descolado, desejava me tornar invisível para saber o que as gurias da rua de cima falavam sobre nós, sobre mim. Evitaria o constrangimento de um não. A invisibilidade seria a arma secreta perfeita contra os terríveis dramas da insegurança adolescente.

Minha referência de invisibilidade era o seriado estadunidense “O Homem Invisível”, com 13 episódios, de 1975, que estreou no Brasil em 1978. Os efeitos especiais, empregando a técnica de chroma key, eram de arrasar. Basicamente, eliminava-se o fundo de uma imagem para isolar, ou descontextualizar, personagens ou objetos de interesse que, posteriormente, seriam combinados com outra imagem de fundo (A técnica é usada hoje, por exemplo, nos programas de previsão do tempo, na televisão). No seriado, era possível criar a ilusão do telefone que flutuava e das portas que se abriam sozinhas. Para a época eram efeitos extraordinários!

Tanto o seriado quanto os filmes de 1933, de 1940 e de 1958, foram inspirados na obra O Homem Invisível, de H. G. Welles. Nos filmes, o homem invisível era um assassino. No seriado, Daniel Westin, o cientista que descobriu a fórmula da invisibilidade, tornou-se herói. Quando percebeu que suas descobertas seriam utilizadas pelos militares para fins bélicos e políticos, usou o poder que descobriu para destruir o equipamento e a fórmula, para que ninguém pudesse utilizá-las para outros fins. Daniel Westin foi um dos meus heróis da infância. Eu queria ser o Homem Invisível (Embora meus propósitos não fossem tão elevados).

A ideia de tornar-se invisível e desfrutar dos privilégios da invisibilidade ocupa a imaginação humana há mais de três mil anos. O tema atravessa os tempos, perpassa diferentes culturas, com diferentes significados, e é recorrente nas diversas expressões humanas: está presente nas narrativas míticas, na filosofia, na literatura e nas narrativas cinematográficas, graças às quais o tema sobreviveu até os dias de hoje. Parece-me um exercício oportuno, de fundo ético e histórico, perceber os diferentes sentidos atribuídos à invisibilidade e refletir sobre o que faríamos se pudéssemos fazer o que bem entendêssemos sem ser vistos ou descobertos.

Como a invisibilidade não depende da vontade humana, ela é adquirida, nas diferentes narrativas, por meio de objetos divinos (o capacete de Hades), de objetos mágicos (anéis), de acidentes cósmicos (a mulher invisível do Quarteto Fantástico) ou de experiências científicas clandestinas (O Homem Invisível).

Uma das narrativas mais antigas e conhecidas é o mito de Perseu. O herói, que se lançou na missão de trazer ao rei Polidectes a cabeça da terrível Medusa, ganhou de presente das Ninfas o capacete de Hades, que assegurava a invisibilidade para quem o portasse. O capacete fora um presente dos Cíclopes a Hades, uma arma poderosa para ser usada na guerra contra Cronos (A Titanomaquia, a guerra do Titãs, liderados por Cronos, contra os deuses Olímpicos). Sem ser visto, Hades desarmou Cronos enquanto Posídon e Zeus se encarregaram de derrotar o Titã. A etimologia de Hades - á (a - não) e ’ideîn (idêin - ver) - faz referência à invisibilidade (não visto), tanto do deus quanto do reino subterrâneo que preside (o reino dos mortos).


De posse do capacete de Hades, Perseu pode se aproximar da Medusa sem ser notado. Decepou a cabeça do monstro e a guardou prudentemente numa bolsa especial, que também ganhara das Ninfas (Um alforje conhecido como quíbisis). A invisibilidade era uma dádiva dos deuses para o filho mortal de Zeus. O privilégio era para poucos. Foi assim que Perseu pode cumprir sua imprudente promessa a Polidectes e, no seu papel de herói, tornar a terra (Geia) um lugar menos perigoso de se viver. Havia um monstro a menos no mundo.

A Tentação dos Anéis Mágicos

Do mito, passamos à filosofia, embora sem abandonar a narrativa mítica. Platão, no Livro II da República, nos apresenta Giges, um pastor que servia na casa do soberano da Lídia. Glauco, irmão mais velho de Platão, debatendo com Sócrates o tema da Justiça, usa o caso de Giges para ilustrar um argumento sobre dar aos homens, justos e injustos, o poder de fazer o que quisessem. O que fariam eles? Uma grande tempestade e um tremor de terra, conta Glauco, abriu uma fenda no solo, onde Giges apascentava o rebanho. Admirado, desceu pelo buraco e viu um cavalo de bronze oco, dentro do qual encontrou um cadáver, provavelmente de um gigante, que trazia um Anel de ouro na mão. O pastor se apossou do Anel e retornou à superfície.

Numa reunião com o Rei, para comunicar sobre os rebanhos, como era habitual, Giges, com seu Anel, sentou-se ao lado dos pastores. Ao girar distraidamente o engaste do Anel tornou-se invisível e pode ouvir o que os outros falavam sobre ele. Surpreso, girou o engaste na direção contrária e voltou a ser visível. Experimentou novamente, para se certificar do poder no Anel. Cheio de si, fez-se delegado de um grupo de pastores que se reuniriam com o Rei para prestar contas das ovelhas. Lá chegando, seduziu a esposa do soberano e, com sua ajuda, matou-o e tomou o poder.

O mito encerra algumas lições. Na imaginação filosófica de Platão a narrativa da invisibilidade serve de pano de fundo para refletir sobre a justiça. Ponderando sobre a postura de Giges, Glauco concluiu que, se houvesse dois anéis, e um fosse colocado no dedo de um homem justo e outro no dedo de um injusto, nenhum dos dois seria suficientemente inabalável que permanecesse no caminho da justiça e fosse capaz de resistir à tentação de se apossar do que não era seu. A fronteira entre o que é justo e injusto se dissolveria como num passe de mágica. Dispondo de um grande poder, e certo da impunidade, o ser humano se comporta como se fosse um deus. Ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, sentencia Glauco. Não existe uma moral essencial que habita, desde sempre, as profundezas ontológicas do ser! Tudo não passa de um jogo de convenções e aparências. O Anel da invisibilidade derrubaria a máscara das convenções e faria emergir a amoralidade constitutiva da natureza humana, que se esconde sob o véu das obrigações morais.

Glauco, segundo o filósofo francês André Comte-Sponville, quer provar que o justo e o injusto, o bom e o mau, ambos, conduzidos pelo desejo, perseguem o mesmo fim, divergindo apenas pela escolha tática dos meios. O Anel mágico, dispensando quem o usa de toda e qualquer preocupação tática, tornaria os fins visíveis à luz do dia. O Anel de Giges é um espelho singular, que reflete e escancara os nossos vícios.

Giges era um pastor da Lídia. Hoje, poderia ser qualquer um, cada um de nós - um médico, um professor, um pedreiro, um homem, uma mulher -, que teve a sorte ou o azar de encontrar um Anel mágico. Todos nós, segundo Glauco, seríamos profundamente abalados e modificados pelo poder da invisibilidade. Nossos comportamentos morais desapareceriam e, longe do alcance dos julgamentos alheios, atenderíamos apenas ao chamado, sem freios, do nosso desejo.

Sócrates, herói trágico de Platão, demonstrará, de forma magistral, que a justiça é mais vantajosa que a injustiça, e em si mesma o maior dos bens. Giges encontrou o Anel, trapaceou e se tornou Rei. Se Sócrates tivesse encontrado o Anel, teria continuado a ser o velho e virtuoso Sócrates? Para Platão sim. É a sua aposta da moral (André Comte-Sponville. Viver: O mito de Ícaro. 2º volume). O Anel é um espelho singular, que pode também realçar nossas virtudes. É o espelho do sujeito ético. O discurso e os exemplos de Glauco são eloquentes, tentadores e convincentes. É isca atraente lançada em bom anzol. Porém, a contra argumentação serena, mas incisiva, de Sócrates, demonstrando pacientemente as fragilidades do discurso do interlocutor, o põe por terra. No horizonte filosófico de Platão haviam essências a serem encontradas e cultivadas. Para além das opiniões e das convenções, havia uma moral essencial, ideal, que a filosofia (como meio) poderia acessar. Sócrates, o homem mais justo e sábio que Platão conheceu (Carta Sétima), era a encarnação deste ideal. Sócrates preferiu morrer a usar o Anel da invisibilidade (o plano de fuga preparado pelos amigos) para escapar sorrateiramente da prisão.

Da imaginação filosófica, passamos à imaginação literária e cinematográfica. Na saga épica o Senhor do Anéis, os Hobbits Bilbo e Frodo, da linhagem dos bolseiros, carregam um pesado fardo: guardar o “Um Anel” do Poder. Bilbo, nas aventuras que viveu ao lado do mago Gandalf e dos Anões, encontrou o “Um Anel”, forjado por Sauron na Montanha da Perdição, em Mordor, que outorgava enormes poderes para quem o portasse. Não era um Anel qualquer. Era o Anel Mestre, forjado com o propósito de dominar e governar os outros Anéis. Os versos, conhecidos na tradição élfica, que Gandalf diz a Frodo, resumem a história dos Anéis:

“Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para os Homens Mortais fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.”

Bilbo guardou o “precioso” objeto por 60 anos na sua casa, no Condado dos Hobbits, e se manteve imune à tentação, embora tenha se afeiçoado a ele. O Anel lhe trouxe longevidade e, aos 111 anos, quando deixou o Condado para ir em busca de novas aventuras, deixou o objeto de estimação sob os cuidados do seu sobrinho Frodo, que também demonstrou incrível capacidade de resistir. Coube a Frodo a difícil missão de levar o Anel à Mordor para destruí-lo e evitar que Sauron o recuperasse para realizar suas ambições de poder. Apesar de ser tentado diversas vezes, e quase sucumbir, Frodo usou o Anel, como também o fizera Bilbo, para passar despercebido em situações difíceis, não ser capturado e ajudar seus companheiros a se livrar de perigosas enrascadas.


Com exceção dos Hobbits, que resistem virtuosamente aos poderes do Anel, a tentação de tomar o objeto desejado perturba os personagens ao longo da saga. Uns o desejam para conquistar o poder e impor a tirania sobre a Terra Média, outros, para se opor à tirania e defender o mundo dos humanos. Mas ninguém, mesmo que movido pelas melhores intenções, como era o caso de Boromir, teria força para resistir às tentações. O Anel, na saga de Tolkien, pode ser visto como uma metáfora sobre o que cada um de nós faria com um poder desses nas mãos e sobre os efeitos de um grande poder sobre nós.
Frodo, a certa altura da jornada à Mordor, cansado do pesado fardo, entregou-o espontaneamente a Galadriel, a Senhora de Lorién, o ser mais antigo, poderoso e respeitado da Terra Média, que o recusou temerosa do que poderia se tornar tendo-o em sua posse. Nem ela, nem Gandalf, nem Elrond, se sentiam fortes o suficiente para portarem o Anel e recusaram a sua posse. Ele conferia poderes proporcionais à estatura do seu portador. No que se tornaria Galadriel, transformada pela força corruptora do Anel? Mesmo desejando fazer o bem, como seria o caso destes três personagens, seria muito difícil não sucumbir às tentações do poder de a todos governar. Mas os pequeninos Bilbo e Frodo permaneceram inabaláveis e não cederam à tentação de usar os poderes mágicos para seus próprios fins. Se mantiveram os mesmos. A estatura, física e política, e a ética Hobbit, por assim dizer, os tornavam menos apegados e menos vulneráveis aos chamados do Anel. Eles representam, no universo mítico criado por Tolkien, a rejeição da tese de Glauco de que não haveria distinção entre um homem justo e um injusto, quando expostos a tamanho poder. A grandeza dos pequeninos Hobbits, contrastando com a fraqueza dos humanos, é a aposta da moral numa terra assolada pelos terríveis Orcs e pelas sinistras ambições de Sauron! O caráter e a integridade moral de Bilbo, Frodo e Sam, são postos à prova diversas vezes ao longo das duras e perigosas jornadas, e eles respondem com ações virtuosas, com gestos de coragem, de grandeza, de solidariedade, de amizade e de desapego. Frodo carrega o Anel, sofre física e psiquicamente com o peso da responsabilidade, mas não o faz esperando algum tipo de recompensa. Não busca a glória, perseguida pelos homens, e não se lança na jornada como um herói típico, que deseja ser lembrado no futuro. Seu heroísmo é silencioso, humilde, feito de pequenas e invisíveis atitudes. Ele assume a árdua missão de levar o Anel à Mordor porque pensa que este é o seu dever, a sua responsabilidade. A ética Hobbit é eudemonológica, é a ética das virtudes, que pode conduzir à felicidade natural, que parece predominar no mundo sem grandes ambições do Condado (Tão apreciado por Gandalf).


E você, o que faria de posse de um destes Anéis? Usaria para propósitos elevados, como os adoráveis Hobbits? Ou se entregaria aos caprichos dos poderes do Anel, como Giges, para tirar vantagens das situações e realizar os seus sonhos secretos e inconfessáveis?

De posse de um Anel mágico, nos tempos de criança, eu não teria dúvidas de onde e de como usá-lo. Hoje, dono do meu próprio e modesto pomar, e consciente dos direitos alheios e dos limites que a vida em sociedade impõe ao meu querer, eu o usaria em duas situações declaráveis: para passar despercebido em certas situações (sou um tanto avesso a eventos sociais e continuo sendo um menino tímido) e para descobrir o que minha cachorra faz quando saio de casa. O resto eu não conto. Não sou puro como um Hobbit, nem ganancioso como Giges.

domingo, 28 de outubro de 2018

USTRA IS THE NEW BLACK


USTRA IS THE NEW BLACK



É impressionante como em determinadas conjunções políticas perde-se completamente o senso de decência, de humanidade e ultrapassa-se perigosamente os limites do que é moralmente aceitável.  Em tempos assim, o grotesco sai dos cantos escuros e ganha o centro do palco e monstros são cultuados como heróis nacionais.

Você usaria uma camiseta com o rosto de um criminoso julgado e condenado? Existem limites éticos para a moda, para o vestir-se?

A moda não é apenas funcional e não se limita a proteger e vestir o corpo. É uma linguagem, um constructo social e cultural que projeta valores e afirma identidades individuais e/ou coletivas. É uma forma de estarmos e nos expressarmos no mundo. Nossas roupas dizem muito sobre quem nós somos.
O vermelho saiu de moda na política nacional. Desbotou, perdeu o brilho e foi engolido pela onda conservadora que varre as ruas e domina as correntes de WhatsApp. Estão em alta agora as tonalidades marciais e bélicas de verde e amarelo, que também marcaram as tendências em 1964 e em 1989.

A moda da próxima estação vai aos poucos se delineando. A família Bolsonaro é quem está ditando as tendências. O estilo é mais primitivo, autoritário, truculento, deselegante mesmo. Promete banir das ruas as camisetas com estampas do Che Guevara. Na guerra das camisetas, travada na political catwalk, autoritarismo se combate com mais autoritarismo (“Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse o Messias da costura “sem ideologia”).

Eduardo Bolsonaro, o deputado mais votado da história do Brasil, exibe orgulhoso a camiseta em homenagem ao coronel Brilhante Ustra. Vestindo um modelo básico,  estival e intimidador, o modelo apresenta uma tendência retrô, que resgata um passado sinistro e obscuro que, na versão prêt-à-porter bolsonariana, é anunciado como NOVO e RENOVADOR.

A moda promete revolucionar o guarda-roupa das “pessoas de bem”, das famílias e salvaguardar a inocência das crianças. Nada da porcaria afeminada, imposta pela “ideologia de gênero”, lançada por costureiros gays europeus (O gênero também saiu de moda!). A nova tendência da moda bolsonariana busca inspiração no DOI-Codi e no DOPS, exemplos de masculinidade hétero patriótica para fazer, de uma vez por todas, a moda virar à direita, nem que seja no pau-de-arara, na linha dura de Ustra, o estilista da tortura (Ustra foi condenado em 2008 pelo crime de tortura e teve a sentença confirmada em 2012. Bolsonaro o reabilitou na votação do impeachment em 2016. De lá para cá, o coronel foi transformado num ícone da moda política anti-esquerdista). 

Será que a moda vai pegar? Ou vai ser como aquela NOVA tendência lançada em 1989, que não chegou a terminar a estação? A maioria dos brasileiros vestiu a camiseta do “caçador de marajás”, os políticos pegavam carona na onda CoLLorida e todos entoavam em coro: eLLe é o  NOVO, é o NOVO. Menos de dois anos depois o novo havia se tornado muito velho. O preto ganhou as ruas e o CoLLorido saiu de moda. Foi nessa época que o jovem Messias se elegeu deputado e começou a costurar uma dinastia, de corte e estilo inconfundíveis.

Enfim, as semelhanças chamam a atenção, embora o estilo atual seja mais agressivo e militaresco.

Seja como for, passageira ou não, a ditadura está na moda e a tortura (visual) está de volta.



A ideia Brilhante de estampar o rosto do torturador nas roupas foi da marca Camisetas Opressoras, que as apresenta no seu site como “camisetas divertidas e personalizadas de direita”, moda “inspirada no Grande coronel Ustra”. A loja está lucrando com o terror, com a covardia e com o que de pior o nosso país já produziu (Tenho certeza que a direita democrática se sente horrorizada com o mal gosto das estampas opressoras).

Para os estilistas da Opressão tudo não passa de uma brincadeira divertida e lucrativa, que afirma uma identidade política. Para mim não. Minha consultora sobre a estética fascista e a moda totalitária, Hannah Arendt, diria que se trata, mais uma vez, da “banalização do mal”. Estamos de tal modo anestesiados pela violência que alguns grupos passaram a vesti-la. E vesti-la significa estimulá-la e praticá-la simbolicamente. O que poderia ser visto, num primeiro momento, como um protesto bem-humorado da turma que se identifica como “de direita”, é, na verdade, a mais completa trivialização da violência. A “banalidade do mal” é expressão do vazio de pensamento e da perda de sensibilidade. O terror virou moda!

Vamos ver até quando os valentões fashion e os opressores descolados vão vestir a camiseta do herói deles.

O catálogo da “moda opressora” é sortido e atende à todas as estações. Abaixo, os modelos de camisetas e moletons nas mais variadas cores e estilos. Vai do básico do dia-a-dia ao modelo patriótico-militar, recomendado para eventos cívicos e desfiles do sete de setembro, que ao que tudo indica voltarão a ser obrigatórios nas escolas (Escolas que, dependendo da vontade do Messias, adotarão um estilo e uma disciplina militar). Tem Ustra para todos os gostos.










Aprendam a diferença entre discordância de posições políticas e fanatismo político e a diferença entre democracia e apologia da tortura e nós voltamos a conversar.

Diga-me o que vestes que te direis quem és.


domingo, 19 de agosto de 2018

DUMBIER: O ELEFANTE PSICODÉLICO COM OLHOS DE LÚPULO, DE COQUEIROS.


DUMBIER: O ELEFANTE PSICODÉLICO COM OLHOS DE LÚPULO, DE COQUEIROS.


Outro dia o Eduardo (Dudu), um amigão que mora em Coqueiros (Florianópolis), me ligou: “Paulo, tô fazendo uma cerveja, uma New England IPA, e quero dar a ela o nome de uma música de uma banda de Rock. A cerveja é forte e encorpada. Tens alguma sugestão? ”. Não tive dúvidas: “Dudu, chama ela de Ace of Spades, do Motörhead ”.

Outro dia fui visita-lo em Coqueiros e degustamos a tal da cerveja. Não sou especialista na área para avaliar uma cerveja e muito menos para indica-la para alguém. Apenas gosto de beber e experimentar. Mas para o meu paladar, de apreciador de cervejas fortes e robustas, a Ás de Espadas do Dudu é uma baita cerveja! Me conquistou no primeiro gole. Ou antes, quando observei a cor, no meio termo entre o cobre e o dourado, a espuma densa, e senti o aroma forte do lúpulo. É uma cerveja deliciosa, descomplicada, uma IPA das boas, que desce fácil e anima a conversa. É forte e direta, como o som do Motörhead. Dudu soube valorizar a banda do Lemmy.

Dudu é um skatista das antigas, cervejeiro dos bons e um apreciador de boas cervejas. É dedicado, caprichoso, exigente, meticuloso, e faz cervejas porque gosta. É um cara de personalidade, e muito generoso, que empresta estas qualidades à cerveja que produz.

O elefante tem a ver com o apelido de infância do Dudu (Dumbo). Daí o nome da cerveja: DUMBIER, uma sacada do Rodrigo, amigo do Dudu e bebedor de cervejas.

A arte foi criação de uma menina de Coqueiros, vizinha do Dudu.

Se toparem com a DUMBIER, não hesitem: bebam, saboreiem. É uma ótima cerveja, produzida artesanalmente por um cara que sabe o que faz. Ao som do Motörhead, um rock and roll britânico clássico, direto, sem muita firula, a experiência fica ainda mais intensa!

Agora saiu uma leva de Double IPA. Estou curioso para provar.

Let´s drink?



terça-feira, 22 de maio de 2018

“EXECUÇÃO SUMÁRIA DE SUBVERSIVOS” ERA POLÍTICA DE ESTADO NO PERÍODO DE ABERTURA DO REGIME CIVIL- MILITAR, COMANDADA POR GEISEL E FIGUEIREDO.


“EXECUÇÃO SUMÁRIA DE SUBVERSIVOS” ERA POLÍTICA DE ESTADO NO PERÍODO DE ABERTURA DO REGIME CIVIL- MILITAR, COMANDADA POR GEISEL E FIGUEIREDO.

Geisel e Figueiredo

Existem várias zonas obscuras e lacunares na ditadura civil-militar brasileira que ainda precisam ser melhor conhecidas. Mas aos poucos, a cada descoberta, novas luzes vão sendo lançadas, pontos nebulosos vão sendo esclarecidos e alguns mitos vão desmoronando. Desta vez foi o mito do presidente moderado, que encaminhou o processo de abertura, que veio abaixo.

Ernesto Geisel, presidente militar que governou o Brasil entre 1974 e 1979, é visto, às vezes com certa simpatia, como o presidente que deu início ao processo de abertura (lenta, gradual e segura, conforme o slogan oficial), que pôs fim aos anos de chumbo, às repressões violentas, às sessões de tortura e aos assassinatos, que marcaram os governos dos militares linha-dura Costa e Silva e Médici. Na conhecida polarização entre os militares, Geisel pertenceria ao grupo denominado castelista, que se diferenciava do grupo linha-dura por ser mais moderado e mais brando no tratamento dispensado aos adversários políticos. João Batista Figueiredo, seu sucessor, seguiria a mesma linha. O adjetivo castelista deriva do perfil atribuído a Castelo Branco, considerado um militar legalista, com uma formação intelectual mais refinada, se comparado aos troupiers, militares linha-dura e nacionalistas. O adjetivo viria, posteriormente, caracterizar um grupo de militares com perfil semelhante ao de Castelo Branco. Com o tempo, a distinção configurou-se numa sólida dicotomia. Os dois perfis, por antinomia, caracterizariam formas distintas de atuar, com métodos mais ou menos contundentes. Na semana passada, um documento da Cia, que veio a público pelas mãos de Mathias Spektor, pesquisador da FGV, colocou, no mínimo, um enorme ponto de interrogação sobre este assunto.

Um Memorando enviado pelo diretor da CIA, William Egan Colby, para o secretário de estado Henry Kissinger, informando sobre a decisão do presidente Ernesto Geisel de continuar empregando “métodos extralegais” para dar combate e exterminar “subversivos perigosos”, trouxe novas luzes sobre o chamado período de abertura e abalou a visão até então dominante sobre o seu governo.

O documento, embora perturbador, não chega a surpreender. Como bem disse o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, para quem está atento às descobertas da Comissão da Verdade, que já havia responsabilizado Geisel e os outros generais pelas torturas e execuções, o conteúdo do documento apenas confirmou o que, em boa medida, já se sabia. As declarações de Geisel ao Centro de Pesquisa e Documentação da FGV também já davam fortes indícios de que o emprego de métodos violentos e “extralegais” continuaram sendo empregados no período da “abertura”. Mesmo assim, as informações são bombásticas e podem abrir novas linhas de interpretação. É claro que é preciso tomar certos cuidados e cruzar/confrontar o documento com outras fontes da época. E ainda que as intenções do documento espelhem um ponto de vista de uma agência de “inteligência” estrangeira, que operava com técnicas de espionagem, e estava diretamente interessada nos assuntos internos do Brasil, não há como negar a importância e a gravidade do conteúdo revelado.

Em síntese, o Memorando presta contas de uma reunião ocorrida em 30 de março de 1974. Estavam presentes o presidente Geisel, o general Milton Tavares de Souza (antigo chefe do Centro de Informações do Exército), o general Confúcio Danton de Paula Avelino (então chefe do Centro) e o general Figueiredo, que à época chefiava o SNI. O tema da reunião era a continuidade ou não das “execuções de subversivos perigosos”. O general Milton, que segundo Colby, falou a maior parte do tempo, deu detalhes dos trabalhos do Centro de Informações do Exército, sob o governo Médici, informou que 104 pessoas foram executadas em 1973, ou um pouco antes, e ressaltou que os “métodos extralegais” deveriam continuar sendo empregados. Figueiredo manifestou apoio à política das execuções e insistiu na sua continuidade. Geisel ponderou sobre os aspectos prejudiciais, caso fosse mantida, e pediu uma semana para se posicionar sobre o assunto. Dois dias depois, o presidente decidiu que a política deveria continuar, informou sua decisão ao general Figueiredo, e recomendou que se assegurasse “que apenas subversivos perigosos fossem executados”. Geisel, que publicamente adotava um tom conciliador, não só estava à par e de acordo, como autorizou o emprego da violência extrema contra os adversários do regime. Ao invés do presidente moderado, poderíamos dizer que o general foi o presidente de duas caras: uma cara, mais arejada, para consumo público, condizente com o clima de abertura oficialmente adotado pelo regime; outra, fechada, voltada para os assuntos internos e secretos do governo, que não abria mão, extraoficialmente, do uso da violência contra os “terroristas”.

Generais à paisana.

Na reunião ficou acordado que Figueiredo, por sugestão de Geisel, cuidaria das execuções e decidiria, “sob certas condições”, quem era ou não um “subversivo perigoso”. A teia de sinistros poderes, diretamente ligada ao gabinete do presidente, funcionaria assim: quando um “subversivo” fosse capturado, o chefe do Centro de Informações do Exército consultaria Figueiredo. A execução dependeria da aprovação do general, que deveria tomar os cuidados solicitados pelo presidente Geisel para executar de fato somente os considerados “perigosos”.

Figueiredo decidiria, portanto, quem deveria morrer. Brincava de deus no país da “abertura”. Mas afinal, quem eram os “perigosos”? Na avaliação dos generais, o jornalista Vladmir Herzog, executado em 1975, era considerado um “subversivo perigoso”, um “terrorista”? Sob que condições Herzog seria um homem perigoso a ponto de merecer a morte?

Vladimir Herzog armado com sua perigosíssima máquina de escrever!

O encontro dos generais, sob atenta observação da CIA, para decidir pela continuidade ou não das execuções, não deixa dúvidas de que os assassinatos cometidos durante a ditadura era uma política de estado. Não era uma prática acidental, decorrente dos excessos de algumas figuras truculentas. Era institucional. Geisel e Figueiredo não apenas sabiam das execuções. Eles autorizaram e decidiam quem mereceria a pena capital. O assassinato de membros do Comitê Central do PCB e os dirigentes do PCdoB, cachinados na Lapa em 1976, alguns depois de sofrer bárbaras torturas, fazem parte da estratégia do governo Geisel de limpar o terreno para encaminhar de forma “segura” a abertura política.

Não faltarão figuras folclóricas e autoritárias a declarar, com a “espada ao lado” e a “sela equipada”, a falsidade do documento (Ver a declaração do general da reserva Paulo Chagas). Lamentavelmente, o atual governo, que abandonou os trabalhos da Comissão da Verdade, vem dando voz aos militares e reabilitando certas figuras dadas a pronunciamentos. Também não faltarão “pessoas de bem” elogiando a decisão do general Geisel e lamentando não existir mais executores como naquela época. Tampouco malabarismos históricos delirantes, de certo “jornalismo” que se diz “de direita”, para mostrar que o documento foi forjado por esquerdistas infiltrados na CIA por “razões de guerra geopolítica” (O jornalismo “de direita” é semelhante ao “de esquerda”, naquilo que ele tem de pior).

As reações à divulgação do documento foram as mais diversas. A mais desprezível, sem dúvida, foi a de certo (lamentavelmente) presidenciável, que contumazmente confunde o papel do presidente da nação com o do chefe de família (a dele). Em entrevista à uma rádio de BH, o sujeito disse que: “Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”. O comentário (daqueles que só se cria em mentes perturbadas) é ignóbil nas suas intenções e cruel com os familiares das vítimas. Comparar crimes brutais com palmada em criança é revelador da descompostura e da imaturidade política deste senhor. O sujeito (vo)mitou mais uma vez!


Abaixo, trechos do Memorando que vieram a público:

Memorando do diretor da Agência Central de Inteligência Colby para o secretário de Estado Kissinger
Washington, 11 de abril de 1974.
Assunto: Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições
1. [1 parágrafo (7 linhas) não desclassificado]
2. Em 30 de março de 1974, reuniu-se presidente do Brasil, Ernesto Geisel, com o general Milton Tavares de Souza (chamado de general Milton) e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE). Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).
3. O general Milton, que falou durante a maior parte do tempo, detalhou o trabalho da CIE contra os alvos subversivos internos durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici. Ele ressaltou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e que os métodos extralegais devem continuar sendo usados contra subversivos perigosos. A este respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o ano passado, ou pouco antes. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.
4. O presidente, que comentou sobre a seriedade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.
5. [1 parágrafo (12½ linhas) não desclassificado]
6. Uma cópia deste memorando será disponibilizada ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [1½ linha não desclassificada]. Nenhuma distribuição adicional está sendo feita. 




sábado, 17 de março de 2018

OS SELOS COMEMORATIVOS EM HOMENAGEM AO BARÃO DO RIO BRANCO COMO ARTEFATOS DA FABRICAÇÃO DO HERÓI.


Os Selos Comemorativos em homenagem ao Barão do Rio Branco como artefatos da fabricação do herói.



De Colombo e sua roda,
De Santo Antônio e do papa,
Pois, depois que o selo é moda.
Já ninguém do selo escapa.
(Poesia Filatélica. Aluísio de Azevedo).







Os selos comemorativos, embora não devidamente valorizados como fontes de pesquisa, são peças importantes das engrenagens mistificadoras e dos processos de construção de heróis nacionais. Eles ajudam a fixar no imaginário coletivo o culto às figuras consideradas como definidoras da identidade e dos valores nacionais. Barão do Rio Branco, celebrado como herói da nacionalidade e da diplomacia, é um dos tantos “vultos da história brasileira” que povoam as estampas postais e alimentam o imaginário legendário da nação.

Muito mais do que um simples papel adesivo que comprova o pagamento de uma taxa por serviços postais, os selos acompanham a história do Brasil desde meados do século XIX e carregam os diferentes sentidos que a história assumiu em distintas condições históricas. Na página da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a história institucional dos Correios, que é disponibilizada aos usuários, aparece entrelaçada com a história do Brasil, que nos é apresentada por meio de uma fórmula bastante tradicional, seguido uma divisão por períodos: Brasil Colônia, Brasil Império e Brasil República. Nesta forma de organização linear e compactada do passado, os fatos considerados mais importantes são dispostos numa linha temporal cronológica, marcada por datas e nomes considerados mais importantes.

Os selos são instrumentos pedagógicos valiosos, de fácil manuseio e baixo custo (Salcedo). São cartões de visitas dos estados (Walter Benjamin), e de distintos regimes políticos, que veiculam uma história monumental em miniatura, dedicada aos grandes feitos e nomes do passado. São, por isso mesmo, portadores de uma “densidade ideológica, por centímetro quadrado, maior que qualquer outra forma de expressão cultural midiática” (Scott). A noção de história monumental, desenvolvida originalmente por Nietzsche, é aquela que engrandece, idealiza e cultua excessivamente o passado (Em detrimento do presente).

A história, assim entendida, se confunde e se apresenta como biografia da Nação, ou seja, como um conjunto de eventos e personagens, eleito como principal, que narra a história nacional desde o começo, do nascimento à Independência, do Império à República. É um desfile de figuras e episódios ilustres do passado que projeta grandiosamente a nação para o futuro.


A invenção dos selos veio da Inglaterra. Na reforma postal de 1840 foi criado o primeiro selo postal adesivo, o Penny Black, que trazia a efígie da rainha britânica. O Brasil foi o segundo país no mundo a emitir selos. A rápida adesão do Brasil ao sistema postal inventado pelos ingleses, embora as opiniões se dividam, pode ser explicada pelas estreitas relações que mantinha com a Inglaterra.

O primeiro foi o Olho de Boi, criado em 1943. Até 1861 as séries de selos traziam apenas as cifras dos seus valores em reis. A partir de 1866 a imagem de Pedro II, em efígie ou em retratos faciais, passou a figurar nos selos (foram 8 séries). O Imperador vestia trajes civis, sem os adereços heráldicos e nobiliárquicos, seguindo a moda europeia. Pedro II era o símbolo do regime monárquico. Sua representação nos selos traduzia e reforçava os valores essenciais do princípio monárquico, da unidade nacional e da preservação das tradições do passado (Marson).

Olho de boi.

Os primeiros selos comemorativos no Brasil surgiram em 1900 para celebrar os 400 anos da chegada dos portugueses. Quatro eventos históricos foram destacados, de forma alegórica, para ilustrar a evolução da ideia de liberdade no Brasil: a chegado dos portugueses, a independência do Brasil, a abolição da escravatura e a proclamação da república. As representações históricas, sob o regime republicano ainda em fase de afirmação, punham em relevo a ideia de que a República era a coroação de uma trajetória de liberdade no Brasil, iniciada em 1500. Desde então, os selos atualizam na memória nacional, de maneira cronológica e evolutiva, os feitos dos “grandes homens” e os acontecimentos que confirmam e corroboram esta visão da história.

O Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, recebeu inúmeras homenagens em diversas séries de selos postais, desde 1945, por ocasião das celebrações do Centenário do seu nascimento. O “valor publicitário dos aniversários”, percebeu Hobsbawm, sempre ofereceu as melhores oportunidades para as primeiras estampas históricas em selos postais. Juca Paranhos que o diga.

Os selos trazem, em diferentes formatos, efígies, retratos faciais e de corpo inteiro do Barão, de frente e de perfil, e as datas e dizeres referentes ao que se deseja relembrar e comemorar. Ao lado do herói, a coroa de louros, símbolo da vitória, ou o palácio do Itamaraty, a casa que modernizou e que se transformou na sua morada definitiva.

As séries foram lançadas em datas comemorativas, ocasiões oportunas para celebrar e reatualizar o mito. Nestes momentos, o espírito de um certo passado retorna para exorcizar e/ou glorificar o presente. Comemorar é um movimento de retorno ao passado para trazê-lo à memória. É relembrar com, é tornar presente, ou reatualizar algum evento significativo que se deseja preservar. Mas como o presente não é fixo, e suas demandas se renovam, os eventos do passado são sempre recriados a cada comemoração. O Centenário do Nascimento do Barão (20 de abril de 1945), o Sesquicentenário do Nascimento (1995) e o Centenário da Morte (10 de fevereiro de 1912), são algumas datas celebradas nos selos postais que atualizam e eternizam, no sentido monumental, de tempos em tempos os feitos do Barão. Embora pequenos no tamanho, os selos são monumentais na intenção.

Ao lado dos monumentos, das biografias, dos nomes de ruas e das muitas formas de homenagens (exploradas aqui), os selos, vistos como portadores de discursos políticos, ajudaram a compor a grande narrativa do “herói” e pavimentar o caminho para a imortalidade.

Devidamente selada, a trajetória de Rio Branco ganha contornos épicos e definitivos. O selo emoldura e naturaliza o passado, tornando-o atraente para colecionadores de obituários e para aqueles que, como eu, se interessam pelo seu valor heurístico.




Selo de 1913.



Selo de 1943, emitido para a inauguração de um monumento em homenagem a Rio Branco.


Selo de 1945, em homenagem ao nascimento do Barão.


Selo de 1945 – Centenário do Nascimento do Barão. 




Selo de 1945 – Centenário do Nascimento do Barão. 



brasil aéreo 60 barão de rio branco nnn
Selo de 1945, em homenagem ao nascimento do Barão (no detalhe).





1945 centenario nac. do barão do rio branco*** quadra
Selos de 1945, lembrando a III Conferência interamericana de radiodifusões.




Selo de 1995 – Sesquicentenário do Nascimento do Barão.




Referências Bibliográficas.

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. São Paulo: Cia das letras, 1990.
MARSON, Izabel Andrade. Selos comemorativos: fragmentos da memória do Brasil. São Paulo: Empresa das Artes, 1989.
NIETZSCHE, Friedrich. Considerações Intempestivas. Relume Dumara, 2003.
SALCEDO, Diego. A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 1900-2000. Editora Universitária (Livro em construção).
SCOTT, David. Stamp semiotics: reading ideological messages in philatelic signs. In: RAUCH, Irmengard; CARR, Geral F. (Ed.). Semiotics around the World: synthesis and diversity. Berlin: Mouton de Gruyter, 1997.
SOUZA, Helder Cyrelli de. Os cartões de visita do Estado: a emissão de selos postais e a ditadura militar brasileira. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, 2006.