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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A BEATIFICAÇÃO DE PRINCESA ISABEL E OS PECADOS DA REPÚBLICA.


A BEATIFICAÇÃO DE PRINCESA ISABEL E OS PECADOS DA REPÚBLICA.






A república brasileira, corroída pela corrupção e pelos desmandos, atravessa um momento de descrédito e de fragilidade moral (não é a primeira vez). Os pecados contra a coisa pública desacreditam as instituições e nivelam homens públicos e partidos por baixo. “Ninguém presta”, diz o “povo” nas ruas, nas paradas de ônibus, nas rodas de conversa. O guarda que cuida do setor onde trabalho disse-me no fim do ano: “Seu Paulo, ninguém vale nada. Não valem o prato que comem. São todos iguais. Não voto mais.” Baixei a cabeça e perguntei sobre o time dele, o Hercílio Luz. O time não vai bem, mas a conversa ficou animada.


Não é por acaso que justamente neste momento de descrença na “política” toma corpo uma causa de beatificação de uma figura da família real brasileira que marcou os últimos anos da monarquia. Está sendo analisado pelo arcebispo do Rio de Janeiro um pedido de beatificação de princesa Isabel. O atual contexto marcado por escândalos políticos generalizados é propício para uma um causa como esta prosperar. A causa em prol da beatificação da princesa cresce nas fissuras morais da república.


No final de dezembro de 2011 especialistas do Vaticano participaram de uma audiência na Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro para formalizar uma comissão especial para dar início aos estudos sobre o processo de beatificação de princesa Isabel. O pedido formal de abertura do processo de bem-aventurança e beatificação havia sido entregue em outubro de 2011. Na ocasião, o professor Hermes Rodrigo Nery, acompanhado do príncipe Dom Antonio João de Órleans e Bragança, da casa Imperial do Brasil, entregou uma carta ao arcebispo Dom Orani João Tempesta, apresentando as justificativas e os argumentos para a instauração do processo.


O tema é indigesto. Uma comissão católica, com apoio da casa Imperial do Brasil, pretende desenterrar parte do passado monarquista brasileiro, sepultado pela república, para beatificar uma figura símbolo da monarquia! Todo processo de beatificação é político, sabemos disso, mas neste caso mexe com o passado, com as instituições políticas e divide a sociedade brasileira. 


A beatificação é o primeiro passo para a canonização. O caminho é longo, mas já imaginaram a repercussão e a dimensão simbólica da canonização de dona Isabel, que foi destituída por um golpe e mandada para o exílio pelos republicanos? Seria, no mínimo, a santa vingança dos Órleans e Bragança e a reentronização em grande estilo, e com ares de santidade, da família real. Alguém tem dúvida de que a beatificação da princesa vai reacender o inexpressivo movimento monarquista brasileiro?


Dom Orani tem um abacaxi dos grandes nas mãos para descascar: está pressionado entre a comunidade católica e a casa imperial, de um lado, e o movimento negro e parte da “comunidade” dos historiadores, do outro. A candidata à beata não é uma unanimidade nacional, o que dificulta a tomada de uma decisão.  


O tema divide opiniões. Não podia ser diferente. Vejamos os argumentos de ambos os lados. 


1.      De um lado, estão os defensores da beatificação, capitaneados por Hermes Nery, o postulador da causa (Nery é pós-graduado em bioética pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), diretor da Associação Nacional Pró-vida e Família, do Movimento Brasil Sem Aborto e membro da Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB). O Postulador é figura imprescindível, além de obrigatória, num processo de santificação. Representa oficialmente a causa e formaliza, ou postula, o pedido. Deve ser alguém versado em teologia, direito canônico, história, e conhecer o modo de funcionamento da Congregação da Causa dos Santos. Cabe a ele também nomear o vice-postulador, para que acompanhe de perto o andamento da causa. Nery aponta o protagonismo de Isabel na abolição como argumento central da causa. Ela não apenas liquidou com a escravidão como libertou escravos do palácio e serviçais mais próximos quando do seu casamento em 1864. Demonstrou humildade incomum para uma pessoa da sua posição ao limpar a capela de Nossa Senhora Aparecida. Em Petrópolis ela era vista com frequência limpando igrejas. Por fim, Isabel era fiel ao papa. Nery cita um episódio ocorrido em 1888 quando a princesa recebeu a Rosa de Ouro (como reconhecimento da boa conduta na abolição). Na solenidade, Isabel jurou fidelidade ao papa, mesmo na presença de homens de estado. Tudo isso é coroado pelo manto de virtudes que os defensores da beatificação lançaram sobre a princesa.




2.      Do outro lado, contrários a causa, estão os historiadores e o movimento negro. Em primeiro lugar, questionam a importância da princesa na abolição da escravatura. Embora tenha abraçado a causa alforriando escravos, escondendo fugitivos no Palácio de Petrópolis e abrindo as portas para amigos negros, não teve o papel decisivo que lhe foi atribuído. Com ou sem ela a escravidão estava com os dias contados. Os verdadeiros protagonistas foram os escravos e abolicionistas como Joaquim Nabuco e Luz Gama. Isabel nunca se interessou por política, pensava que era coisa de homens. Estudou, mas não soube tirar proveito do que aprendera. Era apegada a certas futilidades e nunca se envolveu de fato na causa abolicionista (Vale a pena conferir no blog “Monarquia Já” a reação dos monarquistas às críticas dos historiadores). A historiadora Wlamyra Albuquerque afirmou que “canonizar d. Isabel a partir do episódio da assinatura da Lei do 13 de maio é uma tentativa de reiterar uma memória que silencia sobre o papel do negro na sua própria história.” Juntam-se a Wlamyra na crítica a beatificação, embora com outros argumentos, a historiadora Mary Del Priori , que esta para lançar ainda este ano um livro sobre a princesa e o historiador Roderick Barman, autor do livro “Princesa Isabel: gênero e poder no século XIX”. Hermes Nery rebateu as críticas afirmando que os críticos são historiadores republicanos, aos quais não interessa o protagonismo de Isabel na luta contra a escravidão.



Na resposta de Nery aos historiadores veio à tona o pano de fundo que dá sentido a causa da beatificação: o embate tardio entre monarquistas e republicanos e a disputa pela memória histórica sobre a abolição.


O assunto é polêmico, o terreno é “sagrado”, mas vamos meter a colher neste angu? Não se trata de ser favorável ou não à beatificação. Essa conversa de santo realmente não me interessa. O problema é de natureza política. O pedido é, em certo sentido, uma retomada do debate que polariza os defensores da monarquia e os republicanos. A república nunca convenceu, vive aos tropeços, assombrada por golpes e moralmente abalada. A monarquia não foi definitivamente derrotada, é um fantasma político que sempre volta. Não chega a ameaçar, mas esta sempre a espreita. A beatificação de Isabel poderia ser vista pelos admiradores da monarquia como um desagravo histórico à família real e uma crítica contundente aos desmandos da república. É difícil imaginar que a beatificação de Isabel tenha apenas motivação de fundo religioso.


Polêmicas à parte, e adentrando um pouco no campo religioso, Isabel reúne as qualidades necessárias, apontadas pela tradição da igreja católica, para tornar-se santa? Santo, na tradição católica, é um modelo exemplar de virtudes e renúncia. É alguém que cultivou e praticou as virtudes morais – prudência, justiça, coragem e temperança - em grau heroico e conquistou o reconhecimento de sua santidade na comunidade católica. A exemplaridade, digna de imitação, passa pela proximidade com o divino. Mas imitar o exemplo dos santos – a morte heroica, as virtudes ou as asceses dos anacoretas - não é algo simples para o cristão comum, pois o que caracteriza a santidade é justamente a sua excepcionalidade e o distanciamento que mantém das coisas mundanas. Até onde me é dado a ler Isabel não foi exatamente um modelo de virtudes digno de ser imitado.  Sabemos que a historiografia republicana não foi nada generosa com a princesa, mas nem as biografias menos parciais nos oferecem uma imagem que possa ser usada para uma causa de beatificação. Exceto uma biografia, escrita por Hermes Vieira e lançada pela editora GRD em 1990 (Pesquisem a editora, garanto que vale a pena). O autor parece ter escrito a obra sob encomenda, visando o pedido de beatificação. Para que uma causa prospere é necessário reunir o maior número possível de provas sobre a vida cristã do candidato. As biografias documentadas cumprem este papel. O autor recorreu aos testemunhos de nomes como os de Assis Chateaubriand, Machado de Assis, Heitor Lyra e o cônego Manfredo Leite, para dar sustentação a sua narrativa. Hermes Vieira escreveu uma biografia histórica com indisfarçável apelo hagiográfico. Ora realça-se a mulher, a personagem histórica, que viveu um momento crucial da história política do país, e não se intimidou, ora a predestinada que, como que cumprindo um chamado da providência, intercedeu em favor dos humildes. Mas o que predomina é uma fusão dos dois gêneros. As narrativas históricas, centradas em documentos, que mostram as atividades da princesa num contexto imperial e escravocrata, são revestidas de uma aura de santidade e predestinação. História e hagiografia são integradas num esforço combinado para revelar a vida e obra da princesa/mulher que trazia dentro de si a santa. A estrutura narrativa e a intenção são hagiográficas, mas a legitimidade é dada pela história A história fornece os recursos de retorno ao passado, de leitura da documentação e a comprovação do que se diz; a hagiografia, por sua vez, trabalha sobre a matéria fornecida pela história para erguer um monumento à candidata à beata.



Hermes Vieira não economiza nos elogios à bondade e à honestidade da princesa. Relata em tom de veneração a vida de Isabel desde a infância, passando pela fase adulta, e o empenho pelo fim da escravidão para, finalmente, alcançar a apoteose do exílio, quando suportou com dignidade os dissabores e os sofrimentos da humilhante condição. Menina ainda já demonstrava traços de caráter e virtuosismo cristão. Cresceu desapegada das coisas materiais, do dinheiro, e sempre esteve voltada para a caridade e o desejo de ajudar ao próximo. As qualidades vinham de berço. A formação e a firmeza das convicções temperaram o caráter da princesa para o protagonismo que assumiu na abolição da escravatura. A princesa Isabel de Hermes Vieira é um modelo de virtudes e bondade.



O outro Hermes, o postulador da causa, foi o autor da carta entregue ao arcebispo (a carta está disponível na net). A carta baseia-se integralmente nesta biografia. No que diz respeito à participação da princesa na luta pela abolição da escravatura, o texto que serve de apoio, além da biografia, é “As Camélias do Leblon e a Abolição da escravatura”, de Eduardo Silva. Mas é a biografia de Hermes Vieira que serve de base e sustenta a argumentação de que Isabel viveu cristamente e praticou a virtude de modo heroico. É esta a função de uma biografia histórica para fins de beatificação. Transcrevo um trecho da carta:


“Testemunharam os que conviveram com ela, o vigor límpido de seu caráter, seu autêntico patriotismo, a sensibilidade na busca de soluções efetivas que dessem ao Brasil condições a um desenvolvimento social pautado nos princípios e valores do humanismo integral, para corrigir distorções e abusos que atentassem contra a dignidade da pessoa humana, refletindo em ações concretas o que Leão XIII imprimiria em sua memorável Rerum Novarum. Quando as circunstâncias exigiram dela uma tomada de posição, ousou correr riscos em defesa dos fragilizados, decidindo em favor daqueles que mais necessitavam um olhar compassivo, tomando decisões que refletiram um desejo sincero e profundo de melhoria conjuntural para viabilizar um panorama social brasileiro menos perverso. ´Carinhosa ao extremo, devotada à família, ela queria que todas as mães sentissem a ventura de se verem livres para melhor se dedicarem aos seus entes queridos. Vibrava nela, de modo intenso, o sentimento da solidariedade cristã´ ”(A frase final é uma citação do livro de Hermes Vieira). 



Na outra margem, os historiadores destacam outros traços da personalidade da princesa. Os novos estudos indiferentes, à causa da beatificação, revelam uma princesa bem mais interessante do que até então se supunha. Uma carta de sua autoria descoberta recentemente e endereçada ao Visconde de Santa Vitória revela uma faceta desconhecida da princesa. São quatro páginas manuscritas, datadas de 1889. Na carta Isabel defende a indenização para ex-escravos, a reforma agrária e o voto feminino. Num fragmento, a princesa assim se expressa em relação ao voto feminino: "Quero agora dedicar-me a libertar as mulheres dos grilhões do captiveiro domestico, e isto será possível atravez do Sufragio Feminino! Si a mulher pode reinar também pode votar!" Mary Del Priori sugeriu que Isabel tenha aderido à agenda proposta por vários jornais e revistas escritas por mulheres no final do século XIX. Discutia-se nestas revistas temas como educação feminina e o acesso das mulheres às áreas de conhecimentos destinadas apenas aos homens. Além disso, Isabel aderiu entusiasticamente à causa abolicionista. Após a assinatura da Lei Áurea Isabel tornou-se abjeto de adoração popular e passou a ser identificada como a “redentora da escravidão”. Ainda segundo Del Priori, Isabel era querida pelos negros livres. A “guarda negra”, por exemplo, formada por ex-escravos, bagunçava com os comícios republicanos sob o pretexto de proteger a princesa.



A nova imagem de princesa Isabel revelada pelos historiadores esta longe de ser aquela figura morna e apagada fixada pela memória republicana, e longe também da figura idealizada da santa, como pretendem seus fervorosos admiradores.



O pedido de abertura do processo foi feito. Os argumentos contrários e a favor foram dispostos. Aguardemos os próximos capítulos. Enquanto isso, procurem informações a respeito dos novos estudos sobre princesa Isabel. De santa ela não tinha nada. De insossa e fútil também não. Descubram então quem era Dona Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon.


Se Isabel for beatificada, será necessário comprovar um milagre para avançar rumo à canonização. E o que não falta entre nós é gente a procura de um milagre. Se procurarem bem, encontrarão. Os defensores da causa são especialistas na “arte” de fabricar milagres.


Se dom Orani decidir pela beatificação de Isabel, provavelmente teremos outro candidato a beato como contraponto: Zumbi dos Palmares. Duvidam?


domingo, 20 de janeiro de 2013

RAÚL CASTRO: O DITADOR/DISSIDENTE DO REGIME CUBANO.



RAÚL CASTRO: O DITADOR/DISSIDENTE DO REGIME CUBANO.



Alguns regimes políticos, notadamente os identificados como socialistas, contam com um quadro de dedicados intelectuais espalhados pelo mundo que espontaneamente os defendem contra as “hostilidades” e críticas desferidas desde o mundo capitalista. O esforço destes intelectuais é no sentido de desacreditar os críticos externos, associando-os à propaganda imperialista (mídia corporativa) e aos interesses de Washington, e desvalorizar a dissidência interna, descaracterizando suas manifestações e reduzindo as críticas dos dissidentes a meros interesses individuais e egoístas. O caso cubano é extraordinário.


Salim Lamrani escreveu um artigo publicado na Agência Ópera Mundi apresentando Raúl Castro como o “verdadeiro dissidente” cubano. Eu sei. Soa bastante estranho. Mas é isso mesmo. Lamrani é professor das Universidades de Paris-Descartes e Paris-Est Marne-la-Vallée e um admirador/defensor declarado do regime cubano. Publicou diversos textos na net defendendo o regime dos Castro e atacando seus adversários. Num dos textos sustentou que Orlando Zapata Tamayo, que morreu numa prisão cubana em fevereiro de 2010 após uma greve de fome de 83 dias, não era um preso político. Zapata, de acordo com o governo cubano e com Lamrani, era um preso comum. Recentemente tentou desqualificar Yoani Sánchez afirmando, de maneira duvidosa, que a blogueira tem um padrão de vida bem acima da maioria dos cubanos. Agora o professor francês, autor do livro “Cuba. Ce que les médias ne vous diront jamais”,  investe na figura de Raúl Castro para mostrar que este senhor possui as melhores credencias e o espírito crítico necessário para conduzir o processo de reformas em Cuba.  

Creio que a iniciativa tem duas finalidades, uma explicita, outra oculta. A finalidade explicita é rebater as críticas externas de que em Cuba não existe “debate crítico”. Em Cuba, garante Salim, “a cultura do debate se desenvolve mais a cada dia e é simbolizada pelo presidente cubano Raul Castro, que se converteu no primeiro a falar dos reveses, das contradições, aberrações e injustiças presentes na sociedade cubana.” A Cuba de Salim Lamrani esta longe de ser uma “sociedade monolítica que compartilha o pensamento único.” 


Salim considera que as falas de Raúl Castro pela televisão e alguns discursos criticando algumas posturas do governo e injustiças sociais (isso existe em Cuba?) são a prova de que existe debate crítico em Cuba. O chefe do governo e irmão do chefe máximo da revolução faz criticas a ineficiência do regime e as “aberrações” que eles mesmos criaram e isto é chamado de “debate crítico”? Expliquem-me, como base em alguma teoria política deste planeta, como pode o chefe do governo ser ao mesmo tempo dissidente e chefe político? Dissidência é o “ato de discordar de uma política oficial, de um poder instituído (ou constituído) ou de uma decisão coletiva.” O “dissidente” Raul Castro discorda do que, dele mesmo e da política com a qual compactua há 50 anos em Cuba? Salim Lamrani acaba de inventar um novo significado para o conceito de dissidência. 


Se olharmos por outro ângulo, o conceito de dissidência no vocabulário político do ocidente, no século XX, esta associado aos regimes totalitários, especialmente a União Soviética sob o governo stalinista. Estaria o autor do texto afirmando, mesmo sem ter a intenção, que Cuba encerra um regime desta natureza? Ato falho, Salim? 


E a ideia do debate que ele acredita existir em Cuba? Um debate não exige a presença de um contraponto? Raul discursando por meio de sonolentos monólogos, sem alguém que lhe apresente argumentos contrários, poder ser chamado de “debate”? É realmente impressionante a maneira como o professor Salim lida com o significado das palavras.


A finalidade oculta, e a mais importante, é desacreditar e deslegitimar a dissidência cubana não controlada pelo governo. A intenção fica clara quando Salim sustenta que Raúl foi o primeiro a falar dos problemas de Cuba. O Primeiro? E os dissidentes (os verdadeiros), que há décadas chamam a atenção para os problemas que só agora Raúl entendeu existirem?


Sugerir que Raúl é o verdadeiro dissidente em Cuba é uma afronta ao pensamento. É propagando política disfarçada de crítica. Raúl Castro é a continuidade, é a autocrítica tardia e conservadora. Raúl Casto representa a política do vão se os anéis para ficarem os dedos. Representa a agonia de um regime falido que não quer admitir seus erros, e que vê nesta forma cínica de autocrítica oficial uma forma de se manter no controle político do país. Prestem atenção nesta frase: “Assim, Raúl Castro não é apenas o presidente da nação, mas também – segundo parece – o primeiro dissidente do país e o mais feroz crítico das derivas e imperfeições do sistema.” 


Vou traduzir a minha maneira: Raúl é o ditador e o crítico da ditadura. É o criador do sistema e o crítico oficial, e único, de suas imperfeições. É o Victor Frankenstein tentando aplacar a fúria a do monstro que ele mesmo criou e que agora se volta contra ele.


Transformar o irmão de Fidel no “verdadeiro dissidente” e “feroz crítico” do regime cubano é afirmar com outras palavras que realmente não existe debate crítico em Cuba. Os irmãos Castro e seus ventríloquos na mídia cubanófila manejam os conceitos para manter um regime obsoleto que satisfaz aos seus caprichos ideológicos. Se quiserem o mínimo de rigor com os conceitos, procurem pelo conceito de “dissidente”, conforme qualquer dicionário de política, nas prisões cubanas. Lá estão os “dissidentes” que defendem o “debate crítico” em Cuba. 


As medidas de abertura do regime tomadas por Raul, como a reforma migratória, embora bem vindas, não podem, de maneira alguma, ser tomadas como dissidência. Um dos sinônimos de dissidência é ruptura. Raul esta longe de qualquer coisa que mesmo remotamente lembre ruptura. As medidas anunciadas representam o desejo de continuidade de um regime que, embora falido, tenta se manter abrindo-se lentamente para reformas (inspiradas quem sabe nas experiências chinesas e vietnamitas). A “autocrítica”, e a reforma, anunciadas como a grande novidade da “revolução”, não é nada mais do que aceitar tardiamente aquilo que os críticos já haviam denunciado há décadas.


Não estou agourando as reformas e torcendo pelo fracasso. Ao contrário. Espero que Raúl esteja bem intencionado e consiga encontrar o melhor caminho para abrir o regime, sem, contudo, desfazer as conquistas da revolução. Só não dá para engolir esta conversa de “dissidente”.


Raúl Castro representa a sobrevida do regime cubano sem Fidel. Transformá-lo num “dissidente” e num “feroz crítico” do modelo criado por seu irmão é deixar tudo em família e se antecipar a uma possível manifestação popular por reformas mais contundentes. Afinal, o dissidente é aquele que contesta e rompe com o que existe. Apresentar Raúl como o dissidente, o insatisfeito, é uma manobra política para dissociá-lo do fracasso histórico do regime. É revestir o velho com nova roupagem crítica, para camuflar seu passado, e anunciá-lo como novidade.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

VIRGEM MARIA E A CONQUISTA DA AMÉRICA: um breve aporte teórico.


VIRGEM MARIA E A CONQUISTA DA AMÉRICA: um breve aporte teórico.






Acabei de ler um texto sobre a conquista da América e fiquei impressionado com a quantidade de jargões condenatórios que o autor empregou para demonstrar o quão violenta e sangrenta ela foi. Inspirado em Las Casas, e sem relativizar a obra do dominicano, o texto transformou a conquista num filme de terror histórico. Os espanhóis, alucinados por ouro, eram os vilões. Os indígenas, passivos e indefesos, eram as vítimas. Os esquemas binários sempre facilitam as coisas.



A conquista da América não se resume a um conjunto de atrocidades cometido pelos espanhóis. As atrocidades fazem parte, não há duvidas, mas devem ser explicadas não pelos sentidos que atribuímos hoje à violência. Se assim o fizermos estaremos condenando o passado com base nos valores do presente (Estou chovendo no molhado?). É claro que não podemos abrir mãos dos valores que praticamos. Escrever história é combinar os signos do presente com os signos do passado. Entendo que a história é uma “crítica do presente”, mas para isso devemos compreender o passado e não transforma-lo num depositário das nossas expectativas, amarguras e conveniências.



Explico-me.



(Digressão teórica).



Para entendermos os significados da conquista precisamos estar atentos sobretudo aos signos vigentes na época. É preciso voltar ao passado. À volta ao passado, neste caso a América dos séculos XV e XVI, não é um acontecimento místico, nem se realiza por passe de mágica. É uma operação técnica guiada por escolhas teóricas e metodológicas do presente. A expressão “volta ao passado” é, na verdade, um exercício de imaginação poética para compensar o drama epistemológico do historiador: a distância insuperável que nos separa do nosso objeto de investigação. O passado passou, não tem volta. Escrever sobre o passado, sobre pessoas que viveram no passado, é um gesto unidimensional em direção ao que já não existe mais. Mas não é um movimento em direção ao vazio, ao nada. O passado não está morto. Ele está e não está lá. Mesmo não existindo mais, pode ser sentido, lembrado, visto e, em alguns casos, tocado. Os vestígios do passado, de um mundo que não existe mais, invadem o presente e se projetam num tempo que lhes é estranho. Este passado residual tem uma existência paradoxal no presente. As ruínas de um antigo templo maia, por exemplo, observadas à maneira de Heidegger, são um gigante solitário e melancólico preso a um lugar que não é mais o seu. Silenciosas e majestosas, elas carregam as marcas de um tempo que já não é. As ruínas, fragmentos do passado que alcançaram o presente, são relíquias intratemporais que escaparam à fúria devoradora de Crono. Situam-se numa região intersticial do tempo. São elos entre o que foi e o que é. Por isso são mediadoras da historicidade, nossas pontes de acesso a um mundo que não é mais (Martin Heidegger. Ser e Tempo).



 Escrever sobre o que já não existe mais é recriar o que um dia foi. É trazer de volta o que estava perdido para sempre. Mas o que o historiador traz de volta não é aquilo que um dia foi. Porque aquilo que um dia foi não pode mais ser. A “ressurreição” do passado não é um acontecimento místico. É um truque literário e um gesto científico. Não o truque do mágico ou do ilusionista, mas o do escritor, que traduz e organiza as experiências do passado em uma narrativa escrita e é capaz de condensar vários séculos em um punhado de páginas. Escrever sobre o passado é, pois, um exercício poético e uma arbitrariedade científica.



A história, de acordo com a voz corrente, promove um diálogo entre os tempos. Antes de endossar este ponto de vista, é necessário precisar os termos deste diálogo. A ideia do diálogo é, por assim dizer, “imprópria”. O dito diálogo com o passado é uma conversa sem interlocutor, na qual nós fazemos as perguntas, definimos os temas e oferecemos as respostas. É aquela situação meditativa e interrogativa em que nos encontramos quando estamos diante das ruínas de um templo, a conversar com as pedras. Somos nós que estabelecemos as relações, fazemos as escolhas, os recortes e as conjecturas sobre vestígios pétreos e silenciosos. É uma prática unilateral, uma escolha arbitrária, uma decisão de um lado só. E isso porque o passado não existe mais. E não há diálogo entre termos que não coexistem. Santo Agostinho meditou sobre o tempo, no famoso capítulo XI de suas Confissões, e constatou memoravelmente a dificuldade de explicá-lo. Numa bela passagem, argumentou que “só de maneira imprópria se fala de passado, presente e futuro”: “Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos existem. Diga-se mesmo que há três tempos: passado, presente e futuro, conforme a expressão abusiva em uso. Admito que se diga assim.  Não me importo, não me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda: o futuro não existe agora, nem o passado. Raramente se fala com exatidão. O mais das vezes falamos impropriamente, mas entende-se o que queremos dizer.”



A ideia de Agostinho de que passado e futuro não existem como realidades, senão como memória e expectativa da realidade presente, revela, sob certo aspecto, uma notável semelhança com a relação que estabelecemos hoje entre os tempos. O passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Os dois existem como extensões e expressões do tempo presente. A ideia do diálogo, nestes termos, é “imprópria”, “mas entende-se o que queremos dizer.” 



Do passado, determinadas expressões de poder definem o que deve ser lembrado no futuro. Os conquistadores escreveram suas crônicas. Do presente, os historiadores, situados num certo ambiente de poder e saber, decidem sobre o que vai ser lembrado do passado. É desta tensão cambiante entre expressões de poder e saber de épocas distintas que se configura a escrita da história. A relação com o passado, assim me parece, tem duas pontas. Numa das pontas, está o historiador. Dessa perspectiva, a do presente, a escrita da história é sempre o exercício de um poder.  O poder de dizer o passado diante do outro que é só silêncio.  E dizer o passado é retirá-lo do esquecimento, é reintegrá-lo à ordem da memória. O que é lembrado e o que é esquecido, nesta recriação política do passado, é uma escolha do historiador. Recriamos experiências de vida de pessoas do passado e as desnudamos aos olhos de escrutínio do presente. Estabelecemos conjecturas sobre suas vidas, ações e relações que elas nem sonharam. Muitas das ideias que levantamos soariam, certamente, muito estranhas às personagens do passado. Elas estavam envolvidas numa teia de acontecimentos que lhes escapava. Séculos depois, esta teia se torna visível ao historiador em toda sua espessura, alcance e conexões (O léxico simplificador, como diria Alfredo Bosi, e os conceitos – conquistador e índio - que empregamos para descrever ou classificar homens e mulheres do passado, devoram, em parte, as suas subjetividades e intersubjetividades). Mas não é exatamente isso o que se espera de um “diálogo” entre mundos diferentes? É esta troca entre as experiências do passado e sua reconstrução histórica no presente que nos permite confrontarmos nossas próprias experiências. Se falássemos a mesma língua e vivêssemos os mesmo valores, qual a razão de estudá-los?  Se trocarmos signos de vida é pelo desejo de conhecimento do outro, e de nós mesmos. Aprender com o passado é auscultá-lo em toda a sua estranheza, e não acomodá-lo às nossas certezas. Confrontá-lo com o presente é ressaltar sua singularidade, e a nossa. É apreender a mudança, e aprender a conviver com ela.



Presente e passado, então, encontram-se pela mão do historiador. Do lado de cá, fazemos nossas escolhas, mas o acesso que temos ao passado só nos é possível por meio daquilo que o lado de lá nos permitiu ler. O poder de transmitir ao futuro aquilo que será lembrado é o poder que o passado tem de impor uma imagem de si ao presente. Cortez sabia o que estava fazendo ao escrever cinco cartas ao rei de Espanha. Esta angulação nos permite relativizar a ideia de que o passado é simplesmente uma invenção do presente. Em certo sentido o é, mas esta invenção é limitada por aquilo que determinadas relações de força e poder de outras épocas autorizaram chegasse até o presente. O presente inventa o passado até onde o passado o autoriza.



(Fim da digressão teórica).



Para evitarmos uma invenção unilateral do passado e transformarmos a conquista da América numa projeção das nossas demandas, situemos o tema no ambiente histórico devido. O primeiro passo a ser dado é no sentido de desfazer algumas simplificações.



Comecemos pelo anátema que a palavra conquista carrega. As palavras são signos sociais sensíveis às transformações do mundo. Pela densidade social que as constituem e por serem mediadoras fundamentais das relações humanas, são indicadores privilegiados das mudanças. Por acompanharem e expressarem essas mudanças, que também são mudanças de ordem semântica e da linguagem, não são signos fixos, não carregam significados eternos. As palavras possuem historicidades deslizantes, são socialmente e historicamente situadas. Algumas palavras, presas a determinadas experiências, carregam uma herança histórica e sociológica tão negativa e definitiva que dificulta o exame dos seus significados no passado. É como se elas mantivessem desde sempre o mesmo sentido, certa pureza original, e atravessassem os séculos imunes às transformações do mundo. E este sentido, muitas vezes, é fixado no presente e projetado para outras épocas, desconsiderando os significados diferentes que as palavras poderiam ter assumido no passado. É isso o que acontece frequentemente com a palavra conquista, quando utilizada para se referir as primeiras décadas de ocupação europeia da América. A palavra é empregada para descrever os processos turbulentos de tomada das terras dos indígenas, a ocupação territorial, os massacres, extermínios, enfim, a ação militar traumática que antecedeu a colonização das novas terras. Não há dúvidas de que a palavra conquista traduz com precisão isso tudo. Mas também parece não haver dúvidas de que ela possuía um significado mais amplo, envolvendo também a ação militar, mas não se limitando a ela. Paralelo às conquistas militares, e inseparável delas, desdobrou-se outra conquista, a das almas. Denominada de conquista espiritual, e empreendida por padres e missionários de diferentes ordens religiosas, teria sido responsável pela destruição das religiões das populações indígenas e lhes imposto o catolicismo, com o apoio das armas. O dilema “entre a cruz e espada” define bem o consórcio das duas conquistas. Ruggiero Romano expressou de forma contundente este ponto de vista, num livro publicado em 1972 (Mecanismos da conquista colonial), caracterizando a conquista com as palavras: violência, injustiça e hipocrisia. Os versos de Neruda – que acusam a cruz e a espada pela destruição da “familla salvage” - são o ponto de partida para “perceber por que elementos foi possível a conquista da “mais rica e bela parte do mundo” (Michel de Montaigne).  A denúncia implacável da conquista, extraída dos versos de Pablo Neruda, combinada com a visão humanista e idílica de Michel de Montaigne sobre a América, constituem a fórmula irresistível de Ruggiero Romano para caracterizar a conquista. A espada representa o aspecto militar, sangrento e belicoso da conquista, responsável pelas vitórias materiais e pela destruição física do Novo Mundo e seus habitantes. Embora contundente, a espada se mostrou insuficiente para submeter os povos indígenas, e os conquistadores logo compreenderam que: “a margem de segurança que lhes assegurava a técnica militar, se tornava muito pequena e que teria sido muito fácil alterar um equilíbrio que, apesar das aparências, permaneceu frágil durante muito tempo. A conquista efetuada pelas armas devia, portanto, ser mantida por outros meios” (Ruggiero Romano).


           

Por outros meios leia-se a cruz. O gesto inaugural de Colombo ao tomar posse da terra, destaca Romano, foi fincar uma cruz. Começava, com este gesto, a conquista espiritual das Américas. Mas foi com a evangelização que a cruz desempenhou realmente o seu papel. Contrariando o seu objetivo confesso – converter os índios – a obra de evangelização transformou-se num complemento perfeitamente simétrico à espada. “Juntas, elas constituirão as preliminares da conquista e da dominação: a desestruturação de todos os sistemas – político, moral, cultural, religioso – que regiam as massas indígenas da América.” Por tudo isso, conclui Romano, a evangelização foi negativa, foi uma forma complementar de agressão, pois provocou a desintegração cultural e espiritual das culturas locais.



Evidentemente não se trata de negar nem minimizar a violência e os efeitos devastadores da conquista sobre as populações americanas. O esforço aqui é no sentido de tentar restituir à palavra os significados que o século XV, XVI e XVII, ou os sujeitos envolvidos na conquista da América, atribuíam a ela. Isto não tem absolutamente nada a ver com justificar a conquista a partir da moral vigente naqueles tempos. Sabemos que certas palavras, tão poderosas num determinado contexto, perdem a força e o significado quando isoladas e extraídas da rede social que a constituía. E perder de vista a significação de uma palavra é perder a própria palavra, pois “o que faz da palavra uma palavra é sua significação” (Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem).



           

A palavra conquista evoca hoje, não sem razão, todas as atrocidades, injustiças e desmandos cometidos pelos espanhóis na América. Essa talvez tenha sido a mais profunda herança lascasiana (Las Casas) da conquista, a de um paraíso destruído pela ganância desmedida e brutal dos espanhóis. A posteridade reteve, em linhas gerais, essa imagem daqueles tempos. Mas como todo tema polêmico implica luzes e sombras, a conquista da América polarizou o debate desde o século XVI até os nossos dias. De um lado, a exaltação heroica da conquista, de outro, o anátema aos criminosos.

           

Uma espessa crosta ideológica envolveu a palavra conquista nestes últimos cinco séculos. Chegar aos sentidos da palavra, encobertos por camadas e camadas de discursos, apologéticos ou condenatórios, e que pressupõem uma continuidade, requer uma cuidadosa remoção destes discursos sobrepostos. Uma leitura atenta dos textos deixados pelos diferentes sujeitos envolvidos pode ser um bom caminho para esboçar uma arqueologia dos significados da conquista.



Tentar compreender historicamente os gestos e as ações dos conquistadores não pode ser confundido com aceitação, conivência ou benevolência em relação às atrocidades, injustiças e toda sorte de crueldades praticadas. Compreender – apreender com – é demarcar um espaço de reflexão sobre as ações e as motivações dos conquistadores com vistas a situá-las nos limites de sua própria historicidade. É desta maneira, examinando cada época pelas suas próprias referências, que vamos entender o que torna aquela experiência inédita, singular, nunca justificável. É, pois, este procedimento que torna possível aprender o sentido das mudanças. Compreender as ações do “outro” do passado não é buscar a absolvição ou a condenação, é diferenciá-las das “nossas”. Julgar o “outro” do passado com os valores praticados no presente é criar um horizonte comum de expectativas que não distingue, que uniformiza e, portanto, mata a singularidade das experiências históricas no tempo. Se retornarmos ao passado, conforme já explicitado, não é para encontrarmos o mesmo. Não retornamos ao passado para dele nos aproximarmos em busca de semelhanças e lugares de conforto, mas para nos afastarmos e delimitarmos a nossa diferença. Compreender os modos de atuação dos conquistadores com as populações indígenas da América, pelo seu próprio conjunto de valores e códigos morais é, ao mesmo tempo, criar novos modos de problematização e julgamento dos nossos modos de percepção da diferença. O julgamento, neste caso, entendido como um olhar crítico sobre nossas condutas e valores praticados, é visto como uma reflexão crítica sincrônica, e não como um deslocamento anacrônico. Cada época julga a si própria pelo que lhe cabe. A história fornece os parâmetros.



A devoção dos conquistadores e o “excessivo” apego aos santos e a Virgem Maria é uma boa maneira de compreender os significados da conquista nos séculos XV e XVI. Uma das imagens mais celebradas e evocadas ao longo da conquista da América foi a de Nossa Senhora. Do México ao Paraguai, a imagem da Virgem, sob as mais diversas invocações, deu suporte espiritual tanto à conquista militar quanto à religiosa. Desde o descobrimento uma profusão de imagens desembarcou e percorreu as Américas ao lado de missionários e conquistadores. Se esses a empunhavam como escudo de proteção e bandeira da fé que os impelia, àqueles solicitavam sua graça para amolecer os corações gentios e convertê-los à fé cristã. O culto à Virgem no Novo Mundo, no entanto, não se limitou aos conquistadores que chegavam do além-mar. Na medida em que a conversão avançava, Nossa Senhora era recebida com entusiasmo e devoção entre os indígenas. Não demorou muito para ela se tornar uma santa milagrosa entre esses povos e protegê-los contra as investidas dos conquistadores.            Essa duplicidade da Virgem na América, ora correndo em socorro dos conquistadores ora se derramando em auxílio aos indígenas, nos possibilita compreender os diferentes significados da conquista. Nos séculos XV, XVI e XVII, com ligeiras variações, a ideia de uma conquista imposta pelas armas, em busca de riquezas, era inseparável de um significado religioso característico daquele momento. Considerar a conquista como uma variante puramente econômica, a insaciável busca pelo ouro, e esquecer a devoção religiosa dos conquistadores, é cair num reducionismo caricatural. Rubén Vargas Ugarte, num estudo sobre o culto à Virgem na Ibero - América, já havia sublinhado, não sem algum desconforto, que: “aunque es forzoso reconocer que muchos de los conquistadores españoles no estuvieron exentos de graves defectos, es incontestable que casi todos eran hombres de arraigada fe y además fervientes devotos de la Virgen María.”



A ambígua e explosiva combinação da devoção religiosa com a devoção pelo ouro e a truculência militar, foi a marca registrada dos conquistadores e o fomento indispensável às suas vitórias. A religião fornecia o álibi perfeito e a justificativa moral para a conquista territorial, o saque dos tesouros e a guerra contra as populações indígenas. Era como se pudessem cometer o pecado e não alimentar o sentimento de culpa e remorso. É nesta trama de interesses e devoções que se foi moldando uma semântica da conquista. O que o nosso tempo definiu como condenável e moralmente inaceitável, parecia ser desejável e moralmente justificável naqueles tempos. No ambiente ambíguo da conquista foi possível, por exemplo, associar as vitórias militares e religiosas à imagem da Virgem Maria. Na tradição cristã católica, e especialmente na espanhola, a imagem da Virgem foi presença constante ao lado dos missionários e conquistadores como escudo protetor e estandarte da fé. Foi assim na reconquista com a Virgem de Covadonga, na conquista do México com Nossa Senhora dos Remédios e Nossa Senhora de Loreto na conquista jesuítica do noroeste da nova Espanha. Uma leitura atenta da documentação, voltada para o apelo religioso que envolveu a conquista da América, mostra a indissolubilidade entre o empreendimento colonial e os símbolos religiosos. A conquista revestiu-se de uma simbologia composta de cruzes, pinturas, relíquias, orações, rosários, evocações, missas, celebrações das datas santas, reveladora da fé e devoção daqueles homens. A cada passo, a cada gesto, seguia-se um jogo ritual de invocações a Deus, a Cristo, a Virgem ou o santo de devoção, rogando proteção ou agradecendo a graça da vitória.



A presença da Virgem Maria, no entanto, causa certa estranheza à sensibilidade contemporânea, para a qual a conquista, em geral, é associada à destruição das culturas indígenas. Esta aparente desconexão entre a violência da conquista e a imagem de proteção e conforto trazidos por Nossa Senhora, me leva a formular alguns questionamentos: por quais razões o símbolo máximo da piedade católica foi associado à conquista das populações indígenas? Que relações havia entre o sentido corrente de conquista e a presença da Virgem na América? Se Nossa Senhora, que na tradição cristã ocidental representa a figura materna bondosa e humilde, foi identificada com as conquistas militares e religiosas, é porque a concepção de conquista tinha naquele momento um sentido distinto daquele retido e consagrado pela posteridade. Creio que este é um bom caminho.



O diálogo com o passado pressupõe estar aberto as suas estranhezas. Acomodá-lo as nossas certezas e submetê-lo ao “tribunal da história” não é compreendê-lo, mas domesticá-lo.