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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O DIVINO GUARDIÃO DA FONTE DE ÁGUA DOCE.

O DIVINO GUARDIÃO DA FONTE DE ÁGUA DOCE.


São oito horas da noite e lá está ele, impassível e elegante, vigiando o bebedouro com água doce. Apelidei o bichinho de “tesoura”. É um beija-flor com rabo de tesoura (conhecido popularmente como beija-flor tesoura ou tesourão). De longe parece ser todo preto, mas de perto, se conseguirmos encurtar a distância, podemos observar tons de verde escuro e branco.

Os beija-flores são territorialistas e defendem energicamente as reservas de néctar na natureza, ou os bebedouros de água com açúcar que usamos para atraí-los. O “tesoura” é um dos mais brigões da espécie. Esse que pousou para foto, se alojou na minha árvore (ou na árvore dele) e não permite que outros beija-flores e pássaros menores que ele se aproximem do bebedouro. As disputas são ferozes. Os outros beija-flores, menores e de cores variadas, frequentam a disputada fonte nos horários em que o “tesoura” não está na área. Instalei dois bebedouros para ver se as coisas se acalmavam. Que nada. O “tesoura” se posicionou no ponto equidistante entre os dois. Bebe nos dois e bota o resto da turma pra correr. Às vezes, mesmo com chuva, ele fica de vigia, naquela mesma ponta de galho. Quando percebe a presença dos “invasores”, emite um som inconfundível, se arma para a briga e parte decidido para cima dos “penetras bons de bico”. Depois volta majestoso para o galho. Não sem antes voar ao redor da fonte e conferir se está tudo em ordem. A cena se repete várias vezes durante o dia. “Tesoura” é incansável na defesa do seu território!

Os bebedouros também são frequentados pelas cambacicas (popularmente conhecidos como “sebinhos”), pássaros pequeninos, espertos e destemidos, com tons predominantes de amarelo, combinados com o marrom e o branco, que aparecem em turmas de quatro ou cinco para bebericar o drink adocicado. Diferentemente dos beija-flores, que aparecem em certas horas do dia, os “sebinhos” já estão esperando, de manhã cedo, quando subo na escada para trocar a água e colocar o bebedouro na árvore, e só vão embora à noitinha.  Adoram a água doce (o néctar) e se banham com ela, jogando-a em todas as direções. Quando eles estão no bebedouro, melhor não ficar embaixo. Quando estão em turma, “tesoura” fica irritado, abre as penas da cauda na forma de um leque, troca de galho para manifestar o descontentamento, emite aquele som inconfundível, mas não toma nenhuma atitude. Mas quando algum “sebinho” atrevido chega sozinho, a ferinha avança e espanta o intruso. Às vezes, mesmo sozinho, o bichinho não se intimida com os voos ameaçadores do beija-flor. Finge que não é com ele e fica ali, se deliciando no bebedouro.

Quando a noite cai, e eu deixo de propósito o bebedouro na árvore, é a vez dos morcegos. Eles saem de não sei onde, em bandos, e bebem a água toda em menos de uma hora. São sete ou oito morcegos, uma verdadeira colônia, que só param de beber quando o bebedouro seca. Eles não se intimidam com a nossa presença. Dão voos rasantes, intimidadores, entram na edícula, e se lançam sobre a fonte de água. Acho que o “tesoura” não sabe dos invasores noturnos.

O nome científico da ferinha, fixado em 1778, é Eupetomena macroura (Do grego, Eu = divindade e Petomena = sempre sustentado pelas asas. E makros = longo; ouros = rabo). Os nomes científicos são engraçados. São pomposos e parecem não corresponder ao ser que pretendem definir. No caso do beija-flor tesoura, o nome parece muito apropriado. É uma pequena divindade alada, veloz e colorida, com cauda longa e furcada, que guarda zelosamente a valiosa fonte de água doce.





quinta-feira, 15 de setembro de 2016

ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS DE FIDEL CASTRO: As fotos que marcaram as relações Brasil/Cuba nos últimos sessenta anos.

ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS DE FIDEL CASTRO: As fotos que marcaram as relações Brasil/Cuba nos últimos sessenta anos.
















Antes de qualquer outra coisa, Fidel Castro é pragmático. Fotogenicamente pragmático. A fotografia é, ao mesmo tempo, testemunho e monumento do pragmatismo cinquentenário. Desde que assumiu o comando de Cuba foi fotografado ao lado de chefes de estado e personalidades do mundo inteiro, de diferentes espectros políticos, o que denota a força do seu carisma e a elasticidade das alianças que cultivou para se perpetuar na liderança da eterna revolução. Considerando o tempo que se mantém à frente do regime, a coleção de fotografias é enorme e perpassa a história que conecta Cuba ao mundo há mais de cinquenta anos. Nos últimos anos, afastado da vida pública por problemas de saúde, a influência de Fidel é mais discreta. Embora não tome parte diretamente das decisões do núcleo duro do regime, seus textos, publicados regularmente no Gramna, cumprem uma função quase oracular.

Com relação ao Brasil, o álbum do comandante é prodigioso. Com exceção dos militares que governaram o Brasil entre 1964 e 1985, Fidel posou ao lado de todos os presidentes brasileiros, desde JK. A inexistência de fotos ao lado dos presidentes militares, eu diria, não foi por falta de vontade de Fidel. Nas viagens que fez ao Brasil, aproveitou o embalo e também se encontrou, nos anos 90, com figuras como Antônio Carlos Magalhães e Roberto Marinho. Considerando o que Fidel representava naquele contexto, e as relações que tinha com a esquerda brasileira e com Lula, é mais ou menos como se Lula, em visita à Venezuela de Chávez, encontrasse-se com Henrique Capriles e com os magnatas da Globovisión.

A elasticidade das relações e o pragmatismo político do comandante foram, no campo da diplomacia e da política externa, as táticas de sobrevivência adotadas para escapar ao cerco orquestrado pelos Estados Unidos durante a guerra fria e, posteriormente, manter o (controvertido) legado da revolução após a deterioração da União Soviética. Neste aspecto, a interminável revolução foi absolutamente bem sucedida! As habilidades diplomáticas e o carisma do comandante foram, sem dúvida alguma, os sustentáculos do regime.

Metido num uniforme militar ou num agasalho da adidas, lá está ele, astuto, possante, solar, largo nos gestos, incansavelmente defendendo os ideais da revolução, que envelhece ao seu lado, e atacando implacavelmente o imperialismo, seu melhor inimigo. A fotografia, como signo imagético e textual que captura os sentidos de uma época, registrou e monumentalizou a trajetória do comandante. Fidel é uma lenda viva, símbolo de uma época que teima em desaparecer. Sobreviveu ao desabamento do comunismo, à queda do muro de Berlim, ao “período especial”, e mantém um muro separando Cuba do resto do mundo. Não se deixa vencer pelo tempo e se reinventa com impressionante habilidade, embora com inconfundível ar de ultrapassado.

O comandante conta com uma legião de admiradores mundo afora que alimenta o mito do revolucionário heroico e da resistência do regime cubano às agressões imperiais. Fidel e os admiradores se retroalimentam e esta relação de mão dupla empresta longevidade à imagem do guerrilheiro legendário (mesmo posando em uniformes adidas).

Fidel parece ter um caso de amor correspondido com a fotografia. Dos anos de guerrilha em Sierra Maestra aos aposentos pessoais em que vive a “aposentadoria” e recupera a saúde, as lentes sempre lhe foram generosas. Fidel é fotogênico e gosta de posar para fotos. Todavia, nesta relação do comandante com a fotografia, não existe espaço para a espontaneidade. Tudo parece muito calculado.

A vida de Fidel, cuidadosamente registrada fotograficamente, antes de folhearmos o álbum, é a vida que ele quer mostrar e da forma como ele quer ser visto. É a vida do incansável trabalhador da revolução, do chefe de estado, do líder estoico e austero que se dedica integralmente à causa do seu povo. A vida privada, os prazeres, o luxo, a caçada ao pato, enfim, a vida aristocrática, que Fidel mantém em segredo, e que contrasta com a vida de sacrifícios e escassez da população cubana, a fotografia não alcança.

Enfim, o álbum de Fidel é extraordinariamente rico naquilo que mostra e naquilo que esconde.

Vale lembrar que o fotógrafo oficial do comandante, nos últimos anos, é o seu filho Álex Castro. Em família fica mais fácil controlar a produção, autorização e a circulação das imagens do comandante que correm o mundo.

Pincei algumas fotos de Fidel ao lado de presidentes brasileiros e personalidades influentes da política nacional e montei um pequeno álbum comentado.

Vamos abrir o álbum e conhecer um pouco melhor o estilo da diplomacia castrista?



Fidel e JK: charutos, monólogos e Operação Pan-americana.





Registro fotográfico da visita do primeiro-ministro Fidel Castro ao Brasil, em 13 de abril de 1959, quatro meses após tomar o poder em Havana.








Depois de breve hesitação o governo brasileiro, seguindo as recomendações do embaixador Vasco Leitão da Cunha, reconhecia o governo cubano. A representação diplomática brasileira em Cuba já havia estabelecido laços com os revolucionários abrigando na sede da embaixada, durante as lutas revolucionárias, partidários de Fidel, entre eles Juanita, irmã do chefe da revolução. As relações entre Brasil e Cuba caminhavam bem. Fidel Castro se mostrou simpático à operação pan-americana proposta por JK (OPA), e as relações entre os dois governos se estreitaram. O Brasil enviou em maio de 1960 parte da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro para as comemorações do “Carnaval de la Libertad”, em Havana, ao mesmo tempo em que recebia a visita de Fidel em Brasília. JK gostava de apresentar a nova capital, ainda em construção, aos visitantes (dentre eles Aldous Huxley, Sartre, André Malraux e Eisenhower).

De Brasília Fidel foi para Buenos Aires, onde participou da reunião do “Comitê dos 21”, comissão formada para acelerar a OPA. Num longo discurso, apoiou a iniciativa brasileira, criticou o descaso do governo dos Estados Unidos com a América Latina e reclamou um fundo de investimentos de 30 bilhões de dólares para promover o desenvolvimento da região. Na volta, visitou o Rio de Janeiro, almoçou com JK, e trocaram charutos. Em entrevista na sede da Associação Brasileira de Imprensa, Fidel disse: “Cabe ao Brasil a posição de líder na luta dos povos latino-americanos contra o subdesenvolvimento”.

Juscelino deixou um depoimento sobre a visita e a personalidade autoritária de Fidel:

“Sentados na biblioteca do Palácio da Alvorada, tentei um diálogo, a fim de atraí-lo para a Operação Pan-Americana. Mas não consegui. Fidel Castro não compreende o diálogo. É homem de monólogo. Falou durante duas horas seguidas, quase sem tomar fôlego. À uma hora da tarde, tentei interrompê-lo, para ordenar que servissem o almoço. A todo gesto que fazia ensaiando levantar-me, segurava-me pelo braço e falava com mais veemência. O almoço só terminou três horas depois. Estávamos em cima da hora para seguirmos para o aeroporto. Tomamos o helicóptero outra vez. Mal ganhamos altura, a paisagem de Brasília fez com que ele voltasse de súbito à realidade. Até ali, era um iluminado que falava. Pregava o que lhe parecia justo, sem se preocupar com o efeito do que dizia. Brasília, contudo, tivera o efeito de trazê-lo de volta ao chão. Contemplou-a outra vez longamente, e disse-me, quase com unção na voz: “É uma felicidade ser jovem neste país, presidente.” Fez-se, então, um longo silêncio entre nós. Enquanto as hélices do helicóptero giravam, o futuro falava lá embaixo.


                                                             Ao lado de Jango e JK.



Fidel e Jânio Quadros: o encontro em Havana do primeiro-ministro cubano com o candidato à presidência do Brasil.


Em 29 de março de 1960, Jânio Quadros, que concorria à presidência da república no Brasil, desembarcou em Cuba com uma comitiva de 43 pessoas. Foi recebido pelo então primeiro-ministro Fidel Castro. Jânio disse, ao desembarcar, que levava a Cuba a compreensão e a cordialidade do povo brasileiro. O enviado do jornal O Estado de São Paulo disse que “o líder revolucionário mostrava-se visivelmente satisfeito com a visita e demonstrava desejo de fortalecer sua posição no plano internacional”. Numa matéria de 30 de março, o Estado de São Paulo noticiava que Jânio foi recebido em Cuba com “honras de chefe de estado”.

Antes da viagem, Jânio recebeu apoio dos eleitores paulistas. Nos comícios, faixas eram erguidas com os seguintes dizeres: “Cuba precisou de Fidel. O Brasil precisa de Jânio” e “Jânio e Fidel: dois grandes nacionalistas” (O Estado de São Paulo).

A lua de mel de parte dos brasileiros com Fidel e a revolução cubana duraria pouco. Em 1964, às vésperas do golpe civil-militar, os cartazes nas manifestações de rua em apoio à intervenção militar traziam as seguintes inscrições: “O Brasil não será uma nova Cuba”.





 Fidel e Sarney: o líder comunista, o coronel ilustrado e o (re)ingresso de Cuba na OEA.

Sobre o que eles conversaram? Sobre os segredos e as habilidades para permanecer tanto tempo no, ou próximo do “poder”?

Sarney nunca escondeu o fascínio que Fidel exercia sobre ele. Conheceu Fidel no final dos anos 50, quando fazia parte da UDN. Disse certa vez que Carlos Lacerda e a UDN queriam convidar Fidel para vir ao Brasil “explicar o que fora a caminhada para a democracia”. A intenção do convite, evidentemente, foi antes da revolução virar à esquerda, entre 1961 e 1962. Nas suas origens, no final dos anos 50, a revolução cubana tinha um caráter nacionalista e anti-imperialista, e a tomada do poder era em nome da democracia e do ideal de justiça social. Todavia, se o convite tivesse sido feito, teríamos uma foto memorável do encontro de Fidel com Lacerda, promovido pela UDN!

Sarney acompanhou com especial atenção e entusiasmo a trajetória da revolução cubana, que adjetiva como “romântica”, e escreveu vários artigos na imprensa brasileira sobre Cuba e Fidel.

Durante a ditadura civil-militar, o Brasil manteve relações diplomáticas cortadas com Cuba. Sarney, que foi membro da ARENA durante a ditadura, ocupando papel de destaque no partido e no Congresso Nacional expurgado, silenciou sobre o tratamento discriminatório dedicado a Cuba. Quando aborda o assunto, geralmente em artigos de jornais, escreve com incrível impessoalidade, como se não tivesse feito parte do regime militar. Como presidente do Brasil, reatou as relações com Cuba. Segundo o próprio Sarney: “Reatei as relações do Brasil com Cuba e fui o primeiro a propor a sua entrada no sistema americano na reunião do Grupo dos Oito em Acapulco”.  A foto é o registro e a celebração da retomada das relações diplomáticas.

Para Sarney, Fidel é o “herói dos tempos modernos”, dono de incomparável “simbologia de vida”. Igual a ele, na América Latina, só Bolívar. Sarney, o coronel ilustrado que sobreviveu ao desmonte do coronelismo, admira Fidel, o “coronel” do socialismo. Os dois envelhecem, com enorme dificuldade de desapego do poder, lúcidos e com incrível habilidade de se manter influentes em seus respectivos contextos políticos.




Fidel e Aécio Neves: o neto de Tancredo “tietando” o Comandante! 


Foto tirada em 1987. O jovem deputado Aécio Neves, hoje um notório crítico das relações Brasil/Cuba, janta ao lado de Fidel. Aécio acompanhou o Chanceler Abreu Sodré numa viagem a Cuba, para celebrar o reatamento das relações diplomáticas, realizado em 14 de junho de 1986, rompidas desde 1964. Segundo Ricardo Noblat, jornalista que acompanhou a comitiva, o chanceler brasileiro, de tendência conservadora, ficou absolutamente encantado com o lado sedutor de Fidel Castro e só o chamava de comandante.

Abreu Sodré substituiu o chanceler Olavo Setúbal no MRE. Setúbal representava uma tentativa de retorno de uma política externa pró-Estados Unidos, nos moldes da diplomacia de Castelo Branco. Ficou apenas 11 meses como ministro do MRE. Sodré retomou a linha diplomática universalista dos governos Geisel e Figueiredo e conduziu o reatamento diplomático com Cuba.

Aécio pegou carona na popularidade do Avô para bajular o comandante, se projetar e fazer parte da comitiva que foi a Cuba. Fidel, quando convidou o jovem deputado para sentar ao seu lado no jantar, suponho, também pensava em Tancredo Neves, por quem tinha grande estima. Naquele contexto de redemocratização, de contestação aberta da ditadura, pousar ao lado de uma figura como Fidel era recomendável ao jovem que aspirava à carreira política.   




Fidel e Collor: o “grande apreço” do comandante pelo “caçador de marajás”!



Depois da derrota de Lula em 89, e da criação do Foro de São Paulo, contraponto das esquerdas latino-americanas ao Consenso de Washington, Fidel veio ao Brasil para prestigiar a posse do presidente que, como se sabe, afinava em grande medida com a agenda de Washington, e por quem Fidel declarou ter “grande apreço”! De onde vinha, ou que intenções tinha o comandante, ao declarar tamanho apreço por Collor, que nas eleições de 89 atacava o socialismo, na figura de Lula, e reputava as esquerdas de jurássicas e atrasadas?

Fidel antevia o colapso do socialismo, as dificuldades que Cuba enfrentaria e, diplomática e pragmaticamente, procurava ampliar o leque de opções. O cancelamento por parte do governo russo dos programas de cooperação, entre eles a troca de petróleo por açúcar, era o prenúncio de tempos difíceis.

O Brasil, apesar da retórica ultraliberal, das alterações na política externa e da opção pelos Estados Unidos, era um parceiro comercial na América do Sul do qual Cuba não podia prescindir. A troca de vacinas pelo abatimento das dívidas com empresas e bancos brasileiros era um bom exemplo da política de cooperação entre os dois países. No campo diplomático o Brasil era um importante aliado de Cuba contra o cerco do governo norte americano. Apesar da política de aproximação com os Estados Unidos, o governo manteve uma linha de autonomia. Em meio à guerra psicológica contra Cuba, via TV Martí, a diplomacia de Collor apoiava Cuba nos organismos internacionais. Em 1991, por exemplo, o Itamaraty, contrariando os esforços do governo estadunidense, confirmou o apoio do Brasil à candidatura de Cuba à Comissão de Direitos Humanos da ONU.

Mas o apreço parece que ia além das trocas comerciais e do apoio diplomático, a julgar pelos depoimentos da ex-primeira-dama Rosane Collor (hoje Rosane Malta) no livro “Tudo o que vi e vivi”. Fidel parecia gostar de Collor e cultivava a amizade. “Fomos a Cuba a convite de Fidel Castro, escreveu Rosane. Ele nos proporcionou tudo: carro, casa, empregados à disposição por quinze dias. Passeei muito pela ilha. Que lugar maravilhoso! Que praias! Não consigo esquecer de Varadero”.  “Fidel gostava muito de nós, continua o depoimento. Aliás, durante todo o tempo em que eu fiquei casada, mesmo após o impeachment, ele nunca deixou de enviar os melhores charutos cubanos para Fernando”. Numa entrevista recente no programa da Luciana Jimenez, Rosane teceu elogios à personalidade e ao humor de Fidel e disse que achava que ele ainda mandava charutos para Collor.

Os depoimentos da ex-primeira-dama, superficiais no seu conjunto, deixam entrever o cultivo de boas relações pessoais entre Collor e Fidel, que traduziam a política de aproximação dos dois países. Ademais, esse era o estilo do líder cubano. Não era um tratamento diferenciado e exclusivo dedicado ao presidente brasileiro. Por trás das demonstrações de afeto e amizade costuravam-se acordos e teciam-se políticas de cooperação vantajosas especialmente para Cuba, que representavam importantes alternativas de sobrevida para o regime castrista.

As remessas de charutos caros eram agrados pessoais, personalizados, característicos do comportamento afetivo e cordial dos ditadores.




Fidel e Roberto Marinho: 

Na visita ao Brasil para a posse de Collor, por quem tinha grande apreço, no mesmo ano em que ele e Lula fundaram o Foro de São Paulo, Fidel deu uma esticadinha e foi encontrar-se com Roberto Marinho. Não sei o que a esquerda, que idolatra Fidel e demoniza Marinho, pensou deste encontro. Não seria difícil fazê-los crer que o austero Comandante foi dar um puxão de orelhas no cidadão Kane tropical!






Fidel e Brizola: em 1992, num jantar oferecido a presidentes latino-americanos durante a ECO 92.





Fidel e Itamar Franco: o presidente substituto e o ditador permanente no mundo pós-guerra fia e no Brasil pós-Collor.


Em 1993 Fidel voltou ao Brasil e foi recebido em Brasília pelo presidente Itamar Franco. Independente de quem esteja à frente do governo, se o presidente reputado como neoliberal ou o presidente nacionalista, Fidel está sempre ali, cortejando e sendo cortejado.



Fidel e Fernando Henrique Cardoso: integração latino-americana e elogios à reforma agrária brasileira.


Fernando Henrique, estigmatizado pela esquerda brasileira como neoliberal, posou para foto com a nata da esquerda latino-americana, e recebeu elogios do coronel Hugo Chávez.
   
FHC viajou a Venezuela em 2001 para a inauguração de uma subestação de energia na cidade de Santa Elena de Uairén. Na oportunidade, Chávez elogiou o programa de reforma agrária do Brasil e a conduta cautelosa do governo em relação à ALCA, embora no Brasil a esquerda associasse o governo FHC com a ALCA e pichasse nos muros Fora FHC e Fora ALCA. Fidel Castro, que também estava em visita ao país, esteve presente na inauguração. O comandante pegou carona na cerimônia e fez um discurso de 35 minutos. Um dos assuntos do encontro entre os três chefes de estado foi a integração entre dos países. Chávez desejava associar a Venezuela ao MERCOSUL e estava esperançoso de que isso ocorresse ainda no governo de Fernando Henrique.


O “governo neoliberal” de FHC, como pretendem seus críticos desenvolvimentistas e esquerdistas, emprestou, por meio da União ou do BNDES, algumas dezenas de milhões para ajudar Cuba e Venezuela. Isso vale também para o PSDB, que nos últimos anos vêm criticando severamente a “ajuda” que o Brasil tem prestado aos cubanos. Em 1998 foram 15 milhões para financiar a compra de alimentos, via Proex (Banco do Brasil), e em 2000, conforme relatório do BNDES, 28 milhões para o governo cubano incrementar o setor turístico com ônibus novos de turismo e para o transporte urbano. O relatório destaca o financiamento concedido para a aquisição de 125 ónibus da Busscar “utilizados na dinamização da atividade turística (...) no valor de 15 milhões”. Para a Venezuela, os empréstimos somaram 183 milhões para financiar o “Projeto das Linha IV do Metrô de Caracas”, executado pela Construtora Norberto Odebrecht S.A.


Nesta foto, de 1998, Fidel visitou o Brasil, depois de uma viagem à África do Sul, e jantou com FHC. Discutiram, entre outras coisas, a crise financeira internacional. Depois do jantar com o presidente, Fidel tinha um encontro marcado com Lula, candidato à presidência daquele ano.




Fidel e Antônio Carlos Magalhães: “painho” e o comandante num encontro fraterno. 


A foto registrou a segunda visita de Fidel à Bahia. A primeira foi em 1983 (abaixo). ACM assumiu diversas vezes a função de embaixador magnético da Bahia, atraindo para o seu círculo personalidades da política e do mundo artístico. As relações de Fidel com ACM datam dos anos 80, quando o líder baiano era ministro das comunicações no governo Sarney e intercedeu pessoalmente a favor do reatamento diplomático entre os dois países. ACM ajudou na montagem do sistema de telecomunicações em Cuba e conquistou a simpatia do comandante. Na visita de 1998, Fidel deu de presente uma caixa com os melhores charutos cubanos, para selar de vez a amizade. A conversa animada atravessou a noite.





Fidel e Lula: presos políticos, comida de proletário e empresas brasileiras em Cuba.



As relações entre Brasil e Cuba, que vinham bem desde o fim da ditadura militar, alcançaram a partir de 2003 outro patamar de cooperação. Lula, usando da diplomacia presidencial, abriu portas em Cuba para empresas brasileiras, como a Odebrecht.

Lula e Fidel se conheceram em 1980, nas celebrações do primeiro ano da revolução sandinista, em Manágua. Foram apresentados por Miguel Descoto, ministro do exterior Nicaraguense. O encontro do então líder sindicalista com o comandante foi mediado por Frei Beto. Foi uma conversa que se estendeu das duas as seis da madrugada. Fidel estava interessado no líder sindicalista que despontava como novidade política no Brasil.

Lula foi a Cuba várias vezes, como candidato e como presidente, e recebeu Fidel no Brasil outras tantas, inclusive em sua casa, em São Bernardo do Campo, em 1995. Foi nesta visita que Fidel disse a famosa frase, após comer polenta com frango, preparado por dona Marisa: “Comi uma comida de proletário”. Na posse de Lula em 1 de janeiro de 2003, Fidel se ausentou de Cuba no aniversário da revolução e se fez presente. O prestígio de Lula com o comandante era alto.


Entre tantas homenagens e declarações de afeto e admiração, uma saia justa. Em fevereiro de 2010 Lula visitou Cuba em meio às polêmicas sobre uma carta enviada por presos políticos cubanos moderados pedindo uma intervenção do presidente brasileiro. A carta dizia o seguinte: “Acreditamos que o senhor pode interceder junto ao governo de Cuba para pôr fim a uma situação que, além disso, obscurece os esforços destinados a articular uma autêntica comunidade de Estados latino-americanos e caribenhos centrada nos direitos de seus cidadãos. A influência regional do Brasil, sua confiança no potencial transformador da sociedade democrática e seu conceito de estratégia podem ajudar Cuba a compartilhar padrões mundiais em matéria de direitos humanos".
Lula se esquivou, não tocou no assunto durante a visita e, quando perguntado, alegou não ter recebi carta alguma.





Foto de 1990 – Lula, dona Marisa, Fidel e Jair Meneguelli, em 1990, num encontro dos grupos de esquerda da América latina, em São Paulo.














Fidel e José Dirceu: a segunda pátria do ex-ministro da Casa Civil.


José Dirceu foi acolhido em Cuba como exilado em 1968. Em visita a Cuba em 2003, como Ministro da Casa Civil, emocionou-se e teve que respirar fundo e virar de costas para disfarçar o choro. O ex-ministro considera Cuba sua segunda pátria e declarou publicamente que deve a vida a Fidel.





Fidel e Dilma Rousseff: Afeto, admiração e a diplomacia médica cubana.


Mesmo com o abandono da diplomacia presidencial pelo governo Dilma (e da política externa de um modo geral), e das posições mais explicitas da presidenta em relação aos direitos humanos, as relações com Cuba seguiram a mesma linha do governo Lula.

Em janeiro de 2014 Dilma Rousseff foi a Cuba e encontrou-se com Fidel em Havana. Os temas do encontro foram a inauguração do porto de Mariel e o programa “Mais Médicos”, que trouxe milhares de médicos cubanos para o Brasil. Para Cuba, o porto Mariel, maior projeto de infraestrutura em andamento na ilha, sob o comando da Odebrecht, e a diplomacia médica, um dos pilares da política externa cubana, representam uma sobrevida ao regime (Esse é o lado problemático do Programa). Embora o tema polarize o debate aqui no Brasil, o Programa Mais Médicos foi aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Segundo o site oficial Cubadebate, a agência estatal de notícias que se diz contra o “terrorismo mediático”, o encontro fraternal "foi uma expressão do afeto e da admiração entre Fidel e Dilma". Dilma que não se iluda, Fidel disse isso para todos os presidentes antes dela.




Fidel e Michel Temer.

Vamos ficar devendo a foto de Fidel com Michel Temer, o presidente usurpador que, no último dia 12, prorrogou o Programa Mais Médicos por mais três anos. Os críticos do Programa, e do governo de Dilma, diziam que num futuro governo Temer o acordo seria revisto e o Brasil deixaria de enviar bilhões para Cuba. Pois bem, Temer prorrogou o Programa e o Brasil, como querem os fanáticos antiesquerdistas, continua “sustentando a ditadura comunista cubana”.
Fidel está impossibilitado de viajar. Se estivesse em forma, já estaria pensando numa visita, tão logo a poeira baixasse e a situação política do Brasil se acalmasse. Temer, na atual conjuntura, não vai, de modo algum, visitar a ilha dos Castro.  Depois das acusações (tolas e fantasiosas) de que os governos do PT sustentavam o regime cubano e da paranoia anticomunista que (re)surgiu no Brasil, visitar Cuba tornou-se uma temeridade! Mas não custa imaginar, com base nas experiências anteriores, como seria um encontro entre os dois: Fidel teria um encontro amigável com Temer, por quem declararia profundo afeto, e presenteá-lo-ia com uma bela caixa de charutos. No dia seguinte, almoçaria com Lula e Dilma, e lamentaria o impeachment.



quarta-feira, 27 de julho de 2016

COLAGENS DOS ANOS 80: ANARQUISMO, TEATRO DO ABSURDO E DADAÍSMO DA BOCA DO MONTE!

COLAGENS DOS ANOS 80: ANARQUISMO, TEATRO DO ABSURDO E DADAÍSMO DA BOCA DO MONTE!


Fiat Lux (Paulo Melo, 1986).

Outro dia abri algumas caixas guardadas há vinte, trinta anos, e me deparei com um verdadeiro baú do tempo. A memória material encerrada nas caixas evocou imediatamente lugares do passado que há tempos não vinham à lembrança. Encontrei, entre outras coisas, uma pastinha xadrez com dezenas de colagens minhas e de um amigo (o querido Max), de meados dos anos 80.

Naquela época, na Santa Maria da Boca do Monte, tínhamos um “grupo” de amigos que, apesar das divergências estéticas e dos gostos singulares, compartilhava algumas afinidades: bandas pós-punk, poesia concreta, rock industrial, literatura marginal, textos anarquistas e filmes underground. Não era exatamente um grupo. Não havia uma unidade, nem encontros programados para exercitar a criatividade e criar coletivamente. Era um punhado de pessoas, dispersas e desgarradas, com múltiplos interesses, que uma vez ou outra trocava ideias e fazia algumas coisas juntos. O centro do “grupo” era o Max, um cara inteligente, sensível, criativo e articulado, que reunia à sua volta pessoas muito diferentes. Além de aglutinador de gentes, Max era um poeta de elevado calibre, de refinado gosto musical e cinematográfico e um mestre das colagens. Era uma inspiração para mim. O quarto do Max, num prédio no centro da cidade, apinhado de livros e discos, era a nossa caverna criativa.

Expressávamo-nos de muitas maneiras: tínhamos bandinhas de rock, escrevíamos poesia, produzíamos um fanzine anarquista chamado A Vaca e fazíamos colagens de inspiração surrealista e dadaísta, com recortes de revistas, restos de fotografias, de jornais e objetos descartáveis.

É difícil, trinta anos depois, falar de inspiração. Creio que tudo inspirava, mesmo sem ter consciência disso naquele momento. No meu caso, as maiores inspirações naqueles anos, correndo o risco de idealizações e de projeções anacrônicas, eram o teatro do absurdo, do Antonin Artaud, os filmes de David Lynch e de Serge Gainsbourg, os anarquismos de Bakunin e Kropotkin, as colagens surrealistas de Max Ernest e a música-manifesto de Jorge Mautner. Não sei bem como misturava essas coisas. Eram as minhas afinidades eletivas. Ouvia os discos do Mautner até furar e não largava os textos do Artaud. Nunca fui um bom poeta, como o Max. Me saía melhor com as colagens. Gostava de juntar imagens descontextualizadas, de universos distintos, e reuni-las aleatoriamente na forma de uma colagem. Sem pretender teorizar demais, acho que era esse o sentido das colagens: descontextualizar imagens, recortadas de jornais e revistas, juntá-las numa outra superfície, num outro contexto, e construir com elas algum sentido, alguma coerência. Da maneira como a praticávamos, a colagem era uma técnica e uma forma de composição com imagens e objetos, extraídos de seus contextos originais, para criar diferentes percepções do que considerávamos ser a realidade.

O método era simples. Recortar com as mãos ou com tesoura imagens que por algum motivo chamassem a atenção e colá-las, associá-las, num outro plano segundo critérios estéticos bastante flexíveis e a inspiração do momento. Às vezes, adaptando uma “receita” de poesia dadaísta, tirava ao acaso, de olhos fechados, recortes de revistas de dentro de uma caixa de sapatos e as associava livremente. O resultado que procurávamos, com o mínimo de intervenção racional, era uma livre combinação de ideias, sem filtros apriorísticos. Uma poesia do inconsciente, segundo o jargão surrealista. A colagem do padre na televisão imaginando uma mulher nua, é um bom exemplo (abaixo). Fechei os olhos, tirei as duas imagens de dentro da caixa e as relacionei com um balão das histórias em quadrinhos. As duas imagens, vindas de contextos completamente diferentes, reunidas ao acaso, e associadas por um truque dos quadrinhos, produziu um efeito anticlerical, bem ao gosto da crítica anarquista que líamos à época.



Separei uma pequena amostra das colagens criadas entre 1984 e 1988, recentemente digitalizadas:






















E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.

E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.


“É bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar. Porque caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas que a pessoa vê, as coisas que a pessoa pensa” (Anatole France).











Idoso caminhando no campo de centeio. Óleo sobre tela (Laurits Andersen Ring). 



Pensar historicamente, por mais óbvio que possa parecer, é entender que as “coisas” não são sempre do mesmo jeito.  De uma maneira mais sofisticada, é entender que “aquilo que foi nem sempre é” (Foucault). As distâncias, em termos culturais, que nos separam de passados nem tão distantes são tão grandes que, por vezes, não nos reconhecemos nas narrativas que ouvimos de pessoas mais velhas. Olhar historicamente para trás, sem perder de vista a nossa condição no tempo, é a melhor forma de nos darmos conta das mudanças de valores, de comportamentos, das percepções de tempo e espaço (longe, perto) que singularizam o nosso presente. Embora a referência ao filme no título possa denotar o contrário, o post é um livre exercício de descontinuidade histórica.

Quando criança adorava ouvir as histórias do meu pai sobre as enormes distâncias que percorria, a pé ou a cavalo, para trabalhar na feira com meu avô ou visitar um parente no interior de Santa Maria (RS). As narrativas de vidas de pessoas mais velhas, ainda que com boas doses de exagero e de romantizações, são algumas das melhores formas de retorno ao passado. Na década de 1950 meu pai namorava uma menina numa localidade de Santa Maria chamada Caturrita. Saía de casa bem cedinho, antes do sol nascer, andava o dia todo a pé e chegava a tardinha. No dia seguinte, bem cedinho, iniciava a marcha de volta. Na ida, levava presentes. Na volta, trazia algum pedaço de carne e banha de porco, boa para fritar peixes e modelar o cabelo (nos tempos da brilhantina, os rapazes pobres do interior usavam banha de porco como cosmético). Quando perguntado sobre a distância, dizia sempre: “não era longe não, era logo ali, era um pulinho.”

Ouvia curioso e ficava imaginando as longas caminhadas e as dificuldades encontradas pelo caminho (as estradas eram de chão batido, as picadas no meio da mata eram perigosas e a travessia dos rios e córregos era sobre pinguelas improvisadas ou um troco de árvore). Anos depois, como historiador e pesquisador, procurando boas histórias, me deparei com narrativas semelhantes. Ouvindo os moradores mais velhos de cidades do Alto Vale do Itajaí (Santa Catarina) sobre os primeiros tempos da colonização fiquei sabendo das longas caminhadas para chegar às localidades, entre as décadas de 1920 e 1950. A região onde se situam os municípios de Petrolândia e Ituporanga, antes conhecidas respectivamente como Perimbó e Salto Grande, foi povoada por colonos que subiam de colônias mais antigas como Santo Amaro, Angelina e São Bonifácio, a pé, empurrando carroças carregadas com pertences, em caminhadas que duravam mais de uma semana. Uma viagem de carro hoje percorre essa distância em uma hora. (A região para onde se dirigiam era habitada sazonalmente pelos xokleng e temporariamente por tropeiros que subiam ou desciam de Lages). Naqueles tempos, tudo estava por ser construído e as ligações entre os lugares eram por estradas ou picadas pouco transitáveis. Os vínculos com a antiga colônia, fundamentais para se estabelecer nas novas áreas, os obrigavam amiúde a percorrer grandes distâncias. Seu Evaldo Schistel, numa divertida conversa, contou que para visitar parentes ou “buscar uma coisa ou outra” em Angelina, distante 130 km aproximadamente, andava 30 km num dia. Era “fácil”, dizia, uma “coisa normal’. Tudo era muito longe. Para ir à missa, para visitar a namorada ou para buscar mantimentos na venda mais próxima, se não tivesse um bom cavalo, o jeito era caminhar. Mas isso não desanimava aquela gente, especialmente se a caminhada os levasse para um baile em Angelina.

Caminhadas longas, em terrenos acidentados, ou no meio da mata, é hoje um esporte radical. O praticante deve seguir uma série de recomendações, usar roupas especiais e escolher bem o modelo de tênis que melhor responda à intensidade da caminhada. Meu pai andava de sapatos, e vestia calça de tergal, os senhores que entrevistei também. O máximo que usavam para se proteger do sol forte era um chapéu. As sensibilidades e as susceptibilidades eram outras. O perigo não era o sol, eram as cobras, os “bugres”.

Antes, caminhava-se por necessidade. Não tinha outro jeito. Em alguns lugares mais acidentados nem cavalo adiantava. Os colonos abriam picadas na mata, que mais tarde viravam estradas, e iam desbravando os caminhos.  Hoje se caminha por esporte e para manter a saúde em dia. Embora não como antes, as longas caminhadas ainda fazem parte da rotina de muita gente no interior do Brasil. Quando estou subindo a Serra, rumo a Petrolândia/Ituporanga, vejo, nas laterais das estradas, pessoas caminhando, de chinelos de dedos, muitas vezes, vindo da roça ou da casa de parentes (imagino). Olho para trás, para frente e para os lados e não vejo um ponto de partida nem um possível ponto de chegada. 

Não há dúvida de que as distancia encurtaram e o ato de caminhar adquiriu novos significados. As distâncias encurtaram com os sofisticados meios de transportes. O que era longe ficou perto. Todavia, o que parecia perto para o seu Evaldo parece tão longe para mim. Uma viagem de duas horas, de Florianópolis a Ituporanga, no conforto do carro, com música e água gelada, parece uma eternidade.
É isso. Fico por aqui. Vou calçar meu tênis, fazer alguns alongamentos e caminhar meus seis quilômetros na beira mar sul. Seis quilômetros, ou mais, meu pai andava para ir à escola, todo dia. E carregava o material escolar.  Os tempos são outros, as prioridades, as sensibilidades e as urgências não são as mesmas.

Let´s walk? A motivação do meu pai era a namorada, a do seu Evaldo era um baile em Angelina. A minha? Vamos andar que eu te conto. Gosto de pensar e conversar enquanto caminho. Caminhadas são dispositivos filosóficos. Nietzsche andava para pensar, pois “os grandes pensamentos, dizia, resultam da caminhada”. Onde quer que estivesse, se entregava à longas caminhadas diárias, que podiam chegar a 8 horas. Depois, se entregava à reflexão sistemática e à escrita. Deixou um aforismo sobre escrita e caminhadas: "Não escrevo apenas com a mão: o pé também quer sempre participar". Rousseau, que também gostava das caminhadas, disse que a sua mente só trabalhava junto com as pernas. Caminhar para eles era um ato filosófico. Aristóteles lecionava caminhando pelo peripatos, uma alameda dos jardins do Liceu. Jesus pregava aos seus discípulos enquanto caminhava. Caminhar era um ato pedagógico. A fórmula de Santo Agostinho de “resolver problemas caminhado” (solvitur ambulando) reforça as propriedades inspiradoras e reflexivas de uma boa caminhada. A arte de caminhar ajuda a organizar as ideias e a pensar as coisas com mais clareza. Henry Thoureau, no século XIX, mergulhava nos bosques de Massachussets em longas caminhadas, para se encontrar consigo mesmo. Deixava tudo para trás, a cidade e os afazeres diários, e voltava aos seus sentidos. Colocava “um pé metodicamente adiante do outro” e seguia em frente. Nas suas metacaminhadas, refletia, a cada passo, sobre o significado de estar caminhado. Eram caminhadas autoconscientes. “Walden, a vida nos bosques”, publicado originalmente em 1854, é, em parte, uma elegia e uma reflexão sobre as caminhadas e um manifesto radical contra a civilização industrial. Caminhar era um ato vital.

Certamente meu pai e o seu Evaldo pensavam enquanto caminhavam. Pensavam nas coisas deles, nas chances de melhorar de vida, inventavam planos, avaliavam as situações e resolviam seus problemas andando. Não era o andar meditativo de Santo Agostinho, com as mãos atrás das costas, nem o andar aristocrático e pausado de Nietzsche. Era a marcha das urgências cotidianas, da sobrevivência.

As caminhadas, sejam elas filosóficas, ecológicas, terapêuticas, forçadas, meditativas, laborais ou pedagógicas, acompanham a trajetória humana. De Aristóteles ao seu Evaldo, as pessoas sempre andaram. O que não quer dizer que caminhar é simplesmente caminhar, independente do tempo e do lugar. As caminhadas têm suas próprias historicidades. Não são práticas atemporais. Perder de vista os aspectos que as singularizam em diferentes momentos e contextos é perder o pé da história, do sentido histórico. Os próprios adjetivos elencados acima nos dizem muito sobre os diferentes sentidos e motivos que envolvem o ato de caminhar.

Vamos caminhar enquanto estamos vivos. Os mortos só caminham no cinema!