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domingo, 2 de junho de 2013

A DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NA ANTIGA JAMESTOWN E A EXUMAÇÃO PREMATURA E TENDENCIOSA DOS “OSSOS DO SOCIALISMO”. Tem um esqueleto barulhento no armário da revista Veja.



A DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NA ANTIGA JAMESTOWN E A EXUMAÇÃO PREMATURA E TENDENCIOSA DOS “OSSOS DO SOCIALISMO”. Tem um esqueleto barulhento no armário da revista Veja.




Uma descoberta arqueológica recente nos Estados Unidos lança novas luzes sobre os primeiros anos da colonização inglesa na América do Norte. Arqueólogos encontraram no sitio histórico da antiga Jamestown os ossos de uma menina de aproximadamente 14 anos. As evidências revelam que a jovem inglesa, batizada pelos pesquisadores de Jane, foi desmembrada para ser devorada por colonos famintos. Havia dúvidas até então entre os historiadores se de fato a prática do canibalismo realmente ocorreu na colônia. Os arqueólogos responsáveis pela descoberta garantem que esta é a primeira evidência direta de canibalismo na Virgínia. Os avanços no campo da arqueologia e da antropologia física forense têm muito a acrescentar à reconstrução do passado colonial. A ossada de Jane foi descoberta pelos arqueólogos e estudada por Douglas Owsley, antropólogo forense do Instituto Smithsonian. A antropologia forense é uma área da antropologia especializada na identificação de ossadas humanas. Com o auxílio de criminalistas e médicos forenses os antropólogos conseguem, em certos casos, reconstruir a causa da morte examinando as lesões nos ossos. Por meio desta técnica bastante apurada Owsley conseguiu determinar que o esqueleto pertencia a uma mulher de ascendência inglesa, de aproximadamente 14 anos. Os cortes no queixo, no rosto, na testa e na tíbia são, para o antropólogo, sinais claros de canibalismo. A intenção era remover a pele do rosto e o cérebro para comer. Quem fez os cortes não era exatamente um especialista. A investigação demonstrou que o “açougueiro” de Jamestown agiu com hesitação e absoluta falta de experiência.  Foi movido pelo desespero.

Enquanto nos Estados Unidos a antropologia forense cada vez mais especializada e precisa ajuda na reconstrução de parte do passado, por aqui certos jornalistas descaradamente tendenciosos parecem cada vez mais especializados na “arte” da mutilação do passado para canibalizar o presente. São movidos pelo desespero?

O jornalista Duda Teixeira publicou na última edição da revista Veja um artigo sobre a descoberta da ossada da jovem inglesa. O que poderia ser um bom texto informativo sobre a descoberta arqueológica e as possibilidades de um reposicionamento dos estudos históricos descambou para um discurso anticomunista vulgar e panfletário. O jornalista usou o tema para sugerir que o socialismo tem uma história de fracassos que antecede as experiências do século XX. O sujeito tira conclusões apressadas, mal intencionadas, desvia da discussão principal da descoberta e estabelece relações improváveis entre o “modelo de produção” implantado pelos colonos (supostamente coletivista) e a ocorrência do canibalismo. Deixemos que ele mesmo nos diga: “Jane foi devorada por seus pares como consequência do fracasso do modelo de produção coletiva implantado nos primeiros anos da colonização dos Estados Unidos. A propriedade era comunitária, e o fruto do trabalho era dividido igualmente entre todos. Era, portanto, uma experiência que antecipava os princípios básicos do comunismo. Deu no que deu.” 

Com base no que Duda afirma isso? Quem conhece um pouco a experiência de Jamestown sabe que não foi bem assim. Os arqueólogos que fizeram a descoberta e os antropólogos que estudaram o corpo e o contexto são tremendamente cuidadosos nas afirmações.  Existem relatos das primeiras experiências da colonização, que nos oferecem um rico panorama da realidade enfrentada pelos colonos. A primeira carta da Virgínia, a História Geral da Virgínia, escrita por Smith, a carta de Massachusetts e a carta de Maryland, são alguns exemplos. As narrativas históricas amplamente documentadas também descrevem detalhadamente a vida dura dos primeiros colonos e interpretam de diferentes maneiras a colonização (lembro-me da ótima descrição de Leo Huberman, escritor e jornalista marxista norte-americano, sobre a dificuldade de sobrevivência dos colonos nos primeiros meses e anos após a chegada– ver História da Riqueza dos Estados Unidos) Os documentos e as narrativas dos historiadores mostram que o fracasso e as tragédias das primeiras tentativas de estabelecimento de colônias na Virginia, no começo do século XVII, estão associados a diversos fatores. Jamestown localizava-se numa península pantanosa no Rio James. Ao mesmo tempo em que era um local fácil de defender, por ser uma península, era também uma armadilha em termos de doenças, como disse um historiador. A água salobra não era boa de beber. Os desentendimentos entre os colonos por conta das frustrações – por não encontrarem os rubis e os diamantes que acreditavam existir ali – dificultavam a cooperação. As doenças, os ataques dos índios e a fome se encarregavam do resto. O duro inverno de 1609, que levou os colonos a fazer o impensável, foi marcado por uma seca extrema. O que já estava difícil piorou ainda mais com os confrontos com a Confederação Powhatan e o desespero provocado pelo navio de mantimentos que se perdeu no mar. Mas nada disso é considerado pelo jornalista Duda Teixeira. 

Em 1625, George Percy, que fora presidente de Jamestown naqueles tempos difíceis, escreveu uma carta contando como os colonos sobreviveram ao terrível inverno de 1609, e o que tiveram que comer:
Haveinge fedd upon our horses and other beastes as longe as they Lasted, we weare gladd to make shifte with vermin as doggs Catts, Ratts and myce…as to eate Bootes shoes or any other leather,” (…) “And now famin beginneinge to Looke gastely and pale in every face, thatt notheinge was Spared to mainteyne Lyfe and to doe  those things which seame incredible, as to digge upp deade corpes outt of graves and to eate them. And some have Licked upp the Bloode which hathe fallen from their weake fellowes.”

Nesta carta Percy conta que ele próprio, com a autoridade que lhe competia, torturou e queimou vivo um homem que confessou ter matado, salgado e comido a mulher grávida. A descrição de Percy é contundente e não deixa dúvidas, mas até agora, dizem os antropólogos, nenhuma evidência física fora encontrada para afirmar com certeza que a prática do canibalismo de fato ocorrera. A ossada de Jane, estudada paralelamente aos documentos históricos, ao que tudo indica, vai oferecer provas mais consistentes.

Duda Teixeira poderia ter consultado os historiadores e alguns documentos antes de escrever o artigo para a Veja. Se tivesse feito isso não teria dito as bobagens que disse. Mas não é de hoje que este rapaz comete estas molecadas históricas e usa o passado ao seu bel prazer para atacar levianamente a esquerda. Basta ler o Guia Politicamente Incorreto da América Latina. As criticas as esquerdas são mais do que necessárias, mas não essas bobagens anacrônicas e descabidas que estes jornalistas neoconservadores ilustrados andam escrevendo. O título do artigo do Duda Teixeira, “Os ossos do socialismo”, é absolutamente lamentável. Não existe a mais remota relação entre o fracasso da colonização de Jamestown e o que viria a ser chamado de socialismo no século XIX. Não havia um modelo coletivista de produção nas primeiras colônias da Virgínia. Havia um esforço coletivo de sobrevivência em terras desconhecidas e hostis. Os colonos trabalhavam juntos nas lavouras e montavam guarda nas paliçadas para construir alguma coisa. Mas para Duda Teixeira, que conseguiu ver no esqueleto muito mais do que os estudiosos norte americanos, a ossada de Jane é a evidência cabal da “ineficiência do sistema coletivista”. De onde este rapaz tirou isso? Ele deve estar assistindo demais as séries americanas sobre detetives forenses que conversam com os corpos. Os restos mortais de Jane devem ter dito ao jornalista o que não disseram aos antropólogos forenses. Os corpos falam, sabemos disso, mas parece que Duda ouviu demais. Gostaria de saber o que os cuidadosos pesquisadores americanos envolvidos com o sítio histórico de Jamestown diriam sobre as conclusões do jornalista.

Ao invés de informar aos leitores, como compete ao jornalista, sobre a importante descoberta e as técnicas de investigação da antropologia forense, Duda Teixeira viu na descoberta arqueológica uma oportunidade para atacar o socialismo.  Mas esse é o Duda, ele vê fantasmas e vestígios do socialismo em toda parte. Até onde eles não existem. 

Identificar nas origens de Jamestown uma “experiência que antecipava os princípios básicos do comunismo” é no mínimo desonesto. É de fazer jus à expressão “esqueletos no armário”, comumente usada na Inglaterra e nos Estados Unidos para se referir as ações pouco dignificantes que se fez no passado. O anticomunismo histórico da revista, e o que se fez em nome dele no passado, volta a assombrar o presente. Tem um esqueleto no armário da revista Veja.

2 comentários:

  1. Paulo,
    tu sintetizastes bem os absurdos contido naquele texto, bem como a falta de cuidado com a informação da parte do jornalista.

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  2. Não dá,né Beto. Os caras estão fazendo um jogo muito sujo.

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