A
DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA NA ANTIGA JAMESTOWN E A EXUMAÇÃO PREMATURA E
TENDENCIOSA DOS “OSSOS DO SOCIALISMO”. Tem um esqueleto barulhento no armário
da revista Veja.
Uma
descoberta arqueológica recente nos Estados Unidos lança novas luzes sobre os
primeiros anos da colonização inglesa na América do Norte. Arqueólogos
encontraram no sitio histórico da antiga Jamestown os ossos de uma menina de aproximadamente
14 anos. As evidências revelam que a jovem inglesa, batizada pelos
pesquisadores de Jane, foi desmembrada para ser devorada por colonos famintos.
Havia dúvidas até então entre os historiadores se de fato a prática do
canibalismo realmente ocorreu na colônia. Os arqueólogos responsáveis pela
descoberta garantem que esta é a primeira evidência direta de canibalismo na
Virgínia. Os avanços no campo da arqueologia e da antropologia física forense
têm muito a acrescentar à reconstrução do passado colonial. A ossada de Jane foi
descoberta pelos arqueólogos e estudada por Douglas Owsley, antropólogo forense
do Instituto Smithsonian. A antropologia forense é uma área da antropologia
especializada na identificação de ossadas humanas. Com o auxílio de criminalistas
e médicos forenses os antropólogos conseguem, em certos casos, reconstruir a
causa da morte examinando as lesões nos ossos. Por meio desta técnica bastante
apurada Owsley conseguiu determinar que o esqueleto pertencia a uma mulher de ascendência
inglesa, de aproximadamente 14 anos. Os cortes no queixo, no rosto, na testa e
na tíbia são, para o antropólogo, sinais claros de canibalismo. A intenção era
remover a pele do rosto e o cérebro para comer. Quem fez os cortes não era exatamente
um especialista. A investigação demonstrou que o “açougueiro” de Jamestown agiu
com hesitação e absoluta falta de experiência. Foi movido pelo desespero.
Enquanto
nos Estados Unidos a antropologia forense cada vez mais especializada e precisa
ajuda na reconstrução de parte do passado, por aqui certos jornalistas descaradamente
tendenciosos parecem cada vez mais especializados na “arte” da mutilação do passado
para canibalizar o presente. São movidos pelo desespero?
O
jornalista Duda Teixeira publicou na última edição da revista Veja um artigo
sobre a descoberta da ossada da jovem inglesa. O que poderia ser um bom texto
informativo sobre a descoberta arqueológica e as possibilidades de um
reposicionamento dos estudos históricos descambou para um discurso anticomunista
vulgar e panfletário. O jornalista usou o tema para sugerir que o socialismo
tem uma história de fracassos que antecede as experiências do século XX. O
sujeito tira conclusões apressadas, mal intencionadas, desvia da discussão
principal da descoberta e estabelece relações improváveis entre o “modelo de
produção” implantado pelos colonos (supostamente coletivista) e a ocorrência do
canibalismo. Deixemos que ele mesmo nos diga: “Jane foi devorada por seus
pares como consequência do fracasso do modelo de produção
coletiva implantado nos primeiros anos da colonização dos Estados
Unidos. A propriedade era comunitária, e o fruto do trabalho era
dividido igualmente entre todos. Era, portanto, uma experiência que
antecipava os princípios básicos do comunismo. Deu no que deu.”
Com
base no que Duda afirma isso? Quem conhece um pouco a experiência de Jamestown
sabe que não foi bem assim. Os arqueólogos que fizeram a descoberta e os
antropólogos que estudaram o corpo e o contexto são tremendamente cuidadosos
nas afirmações. Existem relatos das
primeiras experiências da colonização, que nos oferecem um rico panorama da realidade
enfrentada pelos colonos. A primeira carta da Virgínia, a História Geral da Virgínia,
escrita por Smith, a carta de Massachusetts e a carta de Maryland, são alguns
exemplos. As narrativas históricas amplamente documentadas também descrevem detalhadamente
a vida dura dos primeiros colonos e interpretam de diferentes maneiras a
colonização (lembro-me da ótima descrição de Leo Huberman, escritor e
jornalista marxista norte-americano, sobre a dificuldade de sobrevivência dos
colonos nos primeiros meses e anos após a chegada– ver História da Riqueza dos
Estados Unidos) Os documentos e as narrativas dos historiadores mostram que o
fracasso e as tragédias das primeiras tentativas de estabelecimento de colônias
na Virginia, no começo do século XVII, estão associados a diversos fatores. Jamestown
localizava-se numa península pantanosa no Rio James. Ao mesmo tempo em que era
um local fácil de defender, por ser uma península, era também uma armadilha em
termos de doenças, como disse um historiador. A água salobra não era boa de
beber. Os desentendimentos entre os colonos por conta das frustrações – por não
encontrarem os rubis e os diamantes que acreditavam existir ali – dificultavam a
cooperação. As doenças, os ataques dos índios e a fome se encarregavam do resto.
O duro inverno de 1609, que levou os colonos a fazer o impensável, foi marcado
por uma seca extrema. O que já estava difícil piorou ainda mais com os
confrontos com a Confederação Powhatan e o desespero provocado pelo navio de
mantimentos que se perdeu no mar. Mas nada disso é considerado pelo jornalista
Duda Teixeira.
Em
1625, George Percy, que fora presidente de Jamestown naqueles tempos difíceis,
escreveu uma carta contando como os colonos sobreviveram ao terrível inverno de
1609, e o que tiveram que comer:
“Haveinge
fedd upon our horses and other beastes as longe as they Lasted, we weare gladd
to make shifte with vermin as doggs Catts, Ratts and myce…as to eate Bootes
shoes or any other leather,” (…) “And now famin beginneinge to Looke gastely
and pale in every face, thatt notheinge was Spared to mainteyne Lyfe and to doe
those things which seame incredible, as
to digge upp deade corpes outt of graves and to eate them. And some have Licked
upp the Bloode which hathe fallen from their weake fellowes.”
Nesta
carta Percy conta que ele próprio, com a autoridade que lhe competia, torturou
e queimou vivo um homem que confessou ter matado, salgado e comido a mulher
grávida. A descrição de Percy é contundente e não deixa dúvidas, mas até agora,
dizem os antropólogos, nenhuma evidência física fora encontrada para afirmar
com certeza que a prática do canibalismo de fato ocorrera. A ossada de Jane, estudada
paralelamente aos documentos históricos, ao que tudo indica, vai oferecer provas
mais consistentes.
Duda Teixeira poderia ter consultado os historiadores e alguns documentos antes de escrever o artigo para a Veja. Se tivesse feito isso não teria dito as bobagens que disse. Mas não é de hoje que este rapaz comete estas molecadas históricas e usa o passado ao seu bel prazer para atacar levianamente a esquerda. Basta ler o Guia Politicamente Incorreto da América Latina. As criticas as esquerdas são mais do que necessárias, mas não essas bobagens anacrônicas e descabidas que estes jornalistas neoconservadores ilustrados andam escrevendo. O título do artigo do Duda Teixeira, “Os ossos do socialismo”, é absolutamente lamentável. Não existe a mais remota relação entre o fracasso da colonização de Jamestown e o que viria a ser chamado de socialismo no século XIX. Não havia um modelo coletivista de produção nas primeiras colônias da Virgínia. Havia um esforço coletivo de sobrevivência em terras desconhecidas e hostis. Os colonos trabalhavam juntos nas lavouras e montavam guarda nas paliçadas para construir alguma coisa. Mas para Duda Teixeira, que conseguiu ver no esqueleto muito mais do que os estudiosos norte americanos, a ossada de Jane é a evidência cabal da “ineficiência do sistema coletivista”. De onde este rapaz tirou isso? Ele deve estar assistindo demais as séries americanas sobre detetives forenses que conversam com os corpos. Os restos mortais de Jane devem ter dito ao jornalista o que não disseram aos antropólogos forenses. Os corpos falam, sabemos disso, mas parece que Duda ouviu demais. Gostaria de saber o que os cuidadosos pesquisadores americanos envolvidos com o sítio histórico de Jamestown diriam sobre as conclusões do jornalista.
Ao
invés de informar aos leitores, como compete ao jornalista, sobre a importante
descoberta e as técnicas de investigação da antropologia forense, Duda Teixeira
viu na descoberta arqueológica uma oportunidade para atacar o socialismo. Mas esse é o Duda, ele vê fantasmas e
vestígios do socialismo em toda parte. Até onde eles não existem.
Identificar
nas origens de Jamestown uma “experiência que antecipava os princípios
básicos do comunismo” é no mínimo desonesto. É de fazer jus à expressão “esqueletos
no armário”, comumente usada na Inglaterra e nos Estados Unidos para se referir
as ações pouco dignificantes que se fez no passado. O anticomunismo histórico
da revista, e o que se fez em nome dele no passado, volta a assombrar o
presente. Tem um esqueleto no armário da revista Veja.
Paulo,
ResponderExcluirtu sintetizastes bem os absurdos contido naquele texto, bem como a falta de cuidado com a informação da parte do jornalista.
Não dá,né Beto. Os caras estão fazendo um jogo muito sujo.
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