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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO: O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.

ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO: O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.




“Mi memoria es como vaciadero de basuras”.
(Funes el memorioso – Jorge Luis Borges).

“O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade”. (Clarice Lispector).



Em 2004 eu viajava toda semana para o Rio Grande do Sul. Saía de Florianópolis a meia noite e desembarcava na rodoviária de Porto Alegre às seis da manhã. Matava um tempo por ali, tomava um café, lia um jornal, e dali me dirigia para a UFRGS. A aula começava às oito horas. Eram tempos de vacas magras: carga horária reduzida por conta do afastamento parcial, sem bolsa de pesquisa e as despesas semanais com as viagens. Uma vez ou outra, quando conseguia sair um dia antes de Florianópolis, ficava na casa de uma amiga querida (que nos deixou muito cedo) que morava na Borges de Medeiros. Acordava cedo, tomava um chimarrão com a Claire, e pegava o ônibus para a UFRGS na esquina da Borges. A Clér, como eu a chamava, acordava cedo só para tomarmos mate e conversarmos. Era uma amiga de muitos anos, de Santa Maria. Nos conhecemos em 1989. Ela estava sentada na escadaria do prédio onde morava, na Presidente Vargas, lendo Guimarães Rosa e tomando chimarrão. Eu passei, cumprimentei, vi a capa do livro, sentei, ela ofereceu uma cuia, ficamos conversando e nos tornamos grandes amigos.

Numa dessas manhãs de julho de Porto Alegre, geladas e que o sol demora a aparecer, no encontro da Borges com outra rua que não recordo o nome, me deparei com uma cena inesperada. Enquanto esperava pelo ônibus, fui até a esquina, para me movimentar e espantar o frio, e vi que uma senhora de uns 60 anos, que morava na rua, acabara de acordar. O lar improvisado era aquela esquina, em frente a uma padaria. Ela se abrigava do frio num canto de parede, que fazia um L. A situação por si só chamou minha atenção: uma senhora de cabelos brancos, envelhecida pela dureza da vida na rua, morando numa esquina. Mas o que realmente me fez ficar ali, imóvel e em silêncio, assistindo a cena, foi a maneira como ela vivia aquela situação. Quando me aproximei, ela estava acordando. Espreguiçou-se, tirou uma tira de pano de dentro de um plástico e amarrou os cabelos. Depois, pegou de dentro de um saco maior uma pequena bacia, encheu de água (que carregava numa garrafa pet de coca-cola), e lavou o rosto e a nuca. De dentro de outro saquinho de plástico tirou uma escova e escovou os dentes. Enxaguou a boca e cuspiu na bacia. Depois de guardar a escova e secar o rosto com uma toalha velha, tudo com muito jeito, jogou a água da bacia numa boca de lobo ao pé da calçada.

Meu ônibus passou. Fiquei ali, observando à distância. Feita a higiene pessoal, a senhora começou a arrumar a “cama”. Eram dois jogos de papelão, um lençol gasto e um cobertor velho. Primeiro ela recolheu o lençol e o cobertor, sacudiu para tirar o pó, dobrou e os guardou bem arrumados dentro de sacos plásticos. Lá se foi outro ônibus. Depois, bateu os papelões, dobrou e os colocou debaixo dos sacos. Fazia isso com um cuidado de admirar. Eu nunca tive com as minhas coisas o cuidado e o capricho que ela tinha com as dela. Limpava, dobrava e guardava as partes da “cama” como se estivesse na sua casa. Tudo arrumado, e devidamente ensacado, ela pegou uma vassoura velha pequena e varreu o “quarto”, arrastando o lixo para o canto da calçada. Guardou a vassoura junto com os pertences e alcançou uma latinha de leite ninho. Dentro, pelo que pude ver, guardava pontas de cigarro e fósforos. Apanhou um cigarro, bateu contra o fundo da lata, acendeu e deu uma bela tragada, sentada no degrau da escada ao lado da padaria. Fez aquilo, com calma ritualizada, como se estivesse na varanda de sua casa relaxando depois de uma bela faxina. Terminou o prazeroso cigarro, levantou, colocou os sacos nas costas, pegou uma bengala (um cabo de vassoura) e saiu não sei pra onde.

A habilidade no manejo dos pertences e os movimentos quase coreografados sugerem que ela estava habituada àquela rotina. A imagem que me veio à cabeça foi a do vagabundo Carlitos: a fidalguia esculhambada, os gestos corteses, a educação refinada, a ponta de cigarro retirada de dentro de uma lata de sardinha (cigarreira improvisada) e as tragadas elegantes sentado à beira da calçada, como se estivesse num salão nobre degustando um belo charuto. Existe dignidade na pobreza, nos dizia o adorável vagabundo. A elegância não tem pedigree nem endereços caros. Acho que foi isso que me encantou naquela senhora.

Fui até a padaria, pedi um café e perguntei sobre a senhora para a moça que atendia no balcão. “Ela faz isso todos os dias”, disse com certa indiferença. “Mora aqui há algum tempo. A noitinha ela volta para dormir”. Cheguei bem depois de a aula ter começado. Fiquei imaginando o retorno dela à esquina da padaria. Faria tudo do mesmo modo, ritualisticamente? Provavelmente.

Duas semanas depois me hospedei de novo no apartamento da Clér. No dia seguinte, bem cedo, desci e fui até a esquina. Lá estava a velha senhora fazendo tudo do mesmo jeito. Acho que vi a cena se repetir umas três vezes. Depois disso nunca mais tive notícias da caprichosa moradora de rua. Perguntei para conhecidos que moravam naquela parte da cidade. Nada. Não sei o que aconteceu com ela. A Clér mudou-se para a cidade baixa e as aulas na UFRGS terminaram. Fiquei um bom tempo sem voltar a Porto Alegre. Nunca mais passei por aquela esquina da Borges. Mas tudo está tão vivo e perfeitamente preservado na memória que parece que foi ontem que avistei a velha senhora. A aula? Embora sempre muito proveitosas, não tenho a menor recordação do que foi tratado naquele dia. A memória é assim, seletivamente caprichosa. Retém, até nos pormenores, o que nos foi, e continua sendo, significativo. Lembro-me do rosto inclinado da Clér, com os cabelos para trás das orelhas, lendo Guimarães. Lembro-me da forma como a senhora batia o pó do papelão na sarjeta, conferia se estava limpo, voltava a bater e checava de novo, com cara de insatisfeita. A expressão do rosto é inesquecível. Ela não tinha cara de tristeza, de dor, nem aqueles trejeitos que caracterizam alguns moradores de rua. Era calma, serena, discreta, e elegantemente resignada.

A sequência de cenas, ritualizadas e ricas em detalhes, me fez lembrar o Nietzsche (da Segunda Consideração Intempestiva). Nós seres humanos nos diferenciamos dos animais por que possuímos a capacidade de lembrar e de esquecer. A lembrança e o esquecimento nos humanizaram. Para aquela senhora, a lembrança era uma necessidade para manter a humanidade, certa dignidade. Lembrar-se, ainda que mecanicamente, de detalhes de uma vida passada, com certo conforto, dos cuidados com uma casa e com a higiene pessoal, de uma humanidade que teimava em sobreviver dentro dela, era uma forma de não sucumbir à dureza e brutalizar-se de vez. Mas talvez para ela, o esquecimento fosse ainda mais importante. As lembranças de tudo o que perdeu, de tudo que ficou para trás, das pessoas queridas, sem uma boa dose de esquecimento, poderiam ser insuportáveis, opressivas e impedir que ela seguisse em frente. Lembrar é importante, como bem disse Nietzsche, mas esquecer é fundamental. Nós vivemos porque esquecemos, não por que lembramos. O esquecimento, para Nietzsche, é como uma força ativa e libertadora que permite que nos desvencilhemos das decepções e do peso negativo do passado, que nos permite viver no presente sem as amarras que nos prendem às experiências traumáticas do passado. Imagine se, tal como “Funes, o memorioso”, do Borges, não pudéssemos esquecer as dores, as perdas e as decepções. A vida seria impossível. Seria um estado de permanente insônia! No conto de Borges, Ireneo Funes, um jovem uruguaio de 19 anos desenvolveu, depois de sofrer um acidente de cavalo, prodigiosa e assombrosa capacidade de lembrar-se de tudo, detalhadamente, por mais distante no tempo que as experiências estivessem. Funes era incapaz de esquecer. A incontrolável capacidade mnemônica era um fluxo incessante de informações que não o abandonava. Funes “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de mil e oitocentos e oitenta e dois e podia compará-los na lembrança com as listras de um livro espanhol encadernado que vira somente uma vez e com as linhas da espuma no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho”. Prisioneiro da poderosa, minuciosa e infalível memória, Funes era incapaz de pensar, pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. E no prodigioso mundo de Funes “não havia senão pormenores, quase imediatos.” Incapaz de esquecer, Funes era infeliz, atormentado e paralisado pela hipertrofiada capacidade de memorização (e paralisado da cintura para baixo, depois da queda do cavalo). Embora não tenha a intenção de adentrar nesta discussão, as aproximações entre Borges e Nietzsche parecem-me evidentes. Para Nietzsche, a felicidade estava associada ao esquecimento: “Nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder esquecer ou, dito eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-historicamente. Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros felizes” (Segunda Consideração Intempestiva).

A memória e, sobretudo, a boa capacidade de memorização, é sem dúvida uma dádiva. Mas é o esquecimento que nos permite dormir, viver, sorrir, experimentar momentos de felicidade e seguir em frente. Imagine a nossa moradora de rua acometida pelo mal de Funes?

Alguém poderia, legitimamente, cobrar-me uma visão mais social e menos filosófica da condição daquela senhora. Leitores com uma sensibilidade mais à esquerda (não exclusivamente) poderiam ver ali um fenômeno típico da exclusão capitalista, um efeito tardio das políticas neoliberais, etc. Não foi o meu caso. Meu olhar não foi social, vitimizador ou de pena. Não foi um olhar redentor, nem cristão, nem marxista, mesmo porque eu não tinha paraísos a oferecer, ou uma saída segura a prometer. Acho que era ela quem me apontava uma saída. Ela tinha algo mais importante a me dizer do que eu a ela. 

4 comentários:

  1. Lembro do senhor contando esta história na sala de aula, no curso de Comunicação Social da Univali. As suas aulas eram a únicas que me motivam a levantar da cama e ir para a universidade.

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  2. Oi João.
    Bons tempos né!
    Por onde tu andas?
    Um abraço.
    Paulo.

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  3. Professor, estou cursando Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. Dia desses faço uma visita para voces na Univali.
    Abraço

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