ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO:
O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.
“Mi
memoria es como vaciadero de basuras”.
(Funes el memorioso – Jorge Luis
Borges).
“O
esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por
necessidade”. (Clarice Lispector).
Em
2004 eu viajava toda semana para o Rio Grande do Sul. Saía de Florianópolis a
meia noite e desembarcava na rodoviária de Porto Alegre às seis da manhã.
Matava um tempo por ali, tomava um café, lia um jornal, e dali me dirigia para
a UFRGS. A aula começava às oito horas. Eram tempos de vacas magras: carga horária
reduzida por conta do afastamento parcial, sem bolsa de pesquisa e as despesas
semanais com as viagens. Uma vez ou outra, quando conseguia sair um dia antes
de Florianópolis, ficava na casa de uma amiga querida (que nos deixou muito
cedo) que morava na Borges de Medeiros. Acordava cedo, tomava um chimarrão com
a Claire, e pegava o ônibus para a UFRGS na esquina da Borges. A Clér, como eu
a chamava, acordava cedo só para tomarmos mate e conversarmos. Era uma amiga de
muitos anos, de Santa Maria. Nos conhecemos em 1989. Ela estava sentada na
escadaria do prédio onde morava, na Presidente Vargas, lendo Guimarães Rosa e
tomando chimarrão. Eu passei, cumprimentei, vi a capa do livro, sentei, ela
ofereceu uma cuia, ficamos conversando e nos tornamos grandes amigos.
Numa
dessas manhãs de julho de Porto Alegre, geladas e que o sol demora a aparecer,
no encontro da Borges com outra rua que não recordo o nome, me deparei com uma
cena inesperada. Enquanto esperava pelo ônibus, fui até a esquina, para me movimentar
e espantar o frio, e vi que uma senhora de uns 60 anos, que morava na rua,
acabara de acordar. O lar improvisado era aquela esquina, em frente a uma
padaria. Ela se abrigava do frio num canto de parede, que fazia um L. A
situação por si só chamou minha atenção: uma senhora de cabelos brancos,
envelhecida pela dureza da vida na rua, morando numa esquina. Mas o que
realmente me fez ficar ali, imóvel e em silêncio, assistindo a cena, foi a
maneira como ela vivia aquela situação. Quando me aproximei, ela estava acordando.
Espreguiçou-se, tirou uma tira de pano de dentro de um plástico e amarrou os
cabelos. Depois, pegou de dentro de um saco maior uma pequena bacia, encheu de
água (que carregava numa garrafa pet de coca-cola), e lavou o rosto e a nuca.
De dentro de outro saquinho de plástico tirou uma escova e escovou os dentes.
Enxaguou a boca e cuspiu na bacia. Depois de guardar a escova e secar o rosto
com uma toalha velha, tudo com muito jeito, jogou a água da bacia numa boca de
lobo ao pé da calçada.
Meu
ônibus passou. Fiquei ali, observando à distância. Feita a higiene pessoal, a
senhora começou a arrumar a “cama”. Eram dois jogos de papelão, um lençol gasto
e um cobertor velho. Primeiro ela recolheu o lençol e o cobertor, sacudiu para
tirar o pó, dobrou e os guardou bem arrumados dentro de sacos plásticos. Lá se
foi outro ônibus. Depois, bateu os papelões, dobrou e os colocou debaixo dos
sacos. Fazia isso com um cuidado de admirar. Eu nunca tive com as minhas coisas
o cuidado e o capricho que ela tinha com as dela. Limpava, dobrava e guardava as
partes da “cama” como se estivesse na sua casa. Tudo arrumado, e devidamente
ensacado, ela pegou uma vassoura velha pequena e varreu o “quarto”, arrastando
o lixo para o canto da calçada. Guardou a vassoura junto com os pertences e alcançou
uma latinha de leite ninho. Dentro, pelo que pude ver, guardava pontas de
cigarro e fósforos. Apanhou um cigarro, bateu contra o fundo da lata, acendeu e
deu uma bela tragada, sentada no degrau da escada ao lado da padaria. Fez
aquilo, com calma ritualizada, como se estivesse na varanda de sua casa
relaxando depois de uma bela faxina. Terminou o prazeroso cigarro, levantou,
colocou os sacos nas costas, pegou uma bengala (um cabo de vassoura) e saiu não
sei pra onde.
A
habilidade no manejo dos pertences e os movimentos quase coreografados sugerem
que ela estava habituada àquela rotina. A imagem que me veio à cabeça foi a do
vagabundo Carlitos: a fidalguia esculhambada, os gestos corteses, a educação
refinada, a ponta de cigarro retirada de dentro de uma lata de sardinha
(cigarreira improvisada) e as tragadas elegantes sentado à beira da calçada,
como se estivesse num salão nobre degustando um belo charuto. Existe dignidade
na pobreza, nos dizia o adorável vagabundo. A elegância não tem pedigree nem
endereços caros. Acho que foi isso que me encantou naquela senhora.
Fui
até a padaria, pedi um café e perguntei sobre a senhora para a moça que atendia
no balcão. “Ela faz isso todos os dias”, disse com certa indiferença. “Mora
aqui há algum tempo. A noitinha ela volta para dormir”. Cheguei bem depois de a
aula ter começado. Fiquei imaginando o retorno dela à esquina da padaria. Faria
tudo do mesmo modo, ritualisticamente? Provavelmente.
Duas
semanas depois me hospedei de novo no apartamento da Clér. No dia seguinte, bem
cedo, desci e fui até a esquina. Lá estava a velha senhora fazendo tudo do
mesmo jeito. Acho que vi a cena se repetir umas três vezes. Depois disso nunca
mais tive notícias da caprichosa moradora de rua. Perguntei para conhecidos que
moravam naquela parte da cidade. Nada. Não sei o que aconteceu com ela. A Clér
mudou-se para a cidade baixa e as aulas na UFRGS terminaram. Fiquei um bom
tempo sem voltar a Porto Alegre. Nunca mais passei por aquela esquina da
Borges. Mas tudo está tão vivo e perfeitamente preservado na memória que parece
que foi ontem que avistei a velha senhora. A aula? Embora sempre muito
proveitosas, não tenho a menor recordação do que foi tratado naquele dia. A
memória é assim, seletivamente caprichosa. Retém, até nos pormenores, o que nos
foi, e continua sendo, significativo. Lembro-me do rosto inclinado da Clér, com
os cabelos para trás das orelhas, lendo Guimarães. Lembro-me da forma como a
senhora batia o pó do papelão na sarjeta, conferia se estava limpo, voltava a
bater e checava de novo, com cara de insatisfeita. A expressão do rosto é
inesquecível. Ela não tinha cara de tristeza, de dor, nem aqueles trejeitos que
caracterizam alguns moradores de rua. Era calma, serena, discreta, e elegantemente
resignada.
A
sequência de cenas, ritualizadas e ricas em detalhes, me fez lembrar o
Nietzsche (da Segunda Consideração Intempestiva). Nós seres humanos nos
diferenciamos dos animais por que possuímos a capacidade de lembrar e de
esquecer. A lembrança e o esquecimento nos humanizaram. Para aquela senhora, a lembrança era uma necessidade para
manter a humanidade, certa dignidade. Lembrar-se, ainda que mecanicamente, de
detalhes de uma vida passada, com certo conforto, dos cuidados com uma casa e
com a higiene pessoal, de uma humanidade que teimava em sobreviver dentro dela,
era uma forma de não sucumbir à dureza e brutalizar-se de vez. Mas talvez para
ela, o esquecimento fosse ainda mais
importante. As lembranças de tudo o que perdeu, de tudo que ficou para trás,
das pessoas queridas, sem uma boa dose de esquecimento, poderiam ser
insuportáveis, opressivas e impedir que ela seguisse em frente. Lembrar é importante, como bem disse
Nietzsche, mas esquecer é
fundamental. Nós vivemos porque esquecemos, não por que lembramos. O
esquecimento, para Nietzsche, é como uma força ativa e libertadora
que permite que nos desvencilhemos das decepções e do peso negativo do passado,
que nos permite viver no presente sem as amarras que nos prendem às
experiências traumáticas do passado. Imagine se, tal como “Funes, o memorioso”,
do Borges, não pudéssemos esquecer as dores, as perdas e as decepções. A vida
seria impossível. Seria um estado de permanente insônia! No conto de Borges, Ireneo
Funes, um jovem uruguaio de 19 anos desenvolveu, depois de sofrer um acidente
de cavalo, prodigiosa e assombrosa capacidade de lembrar-se de tudo,
detalhadamente, por mais distante no tempo que as experiências estivessem. Funes
era incapaz de esquecer. A incontrolável capacidade mnemônica era um fluxo
incessante de informações que não o abandonava. Funes “sabia as formas das
nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de mil e oitocentos e oitenta e
dois e podia compará-los na lembrança com as listras de um livro espanhol
encadernado que vira somente uma vez e com as linhas da espuma no rio Negro na
véspera da batalha do Quebracho”. Prisioneiro da poderosa, minuciosa e
infalível memória, Funes era incapaz de pensar, pois “pensar é esquecer
diferenças, é generalizar, abstrair”. E no prodigioso mundo de Funes “não havia
senão pormenores, quase imediatos.” Incapaz de esquecer, Funes era infeliz,
atormentado e paralisado pela hipertrofiada capacidade de memorização (e
paralisado da cintura para baixo, depois da queda do cavalo). Embora não tenha
a intenção de adentrar nesta discussão, as aproximações entre Borges e
Nietzsche parecem-me evidentes. Para Nietzsche, a felicidade estava associada
ao esquecimento: “Nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo
aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder esquecer ou, dito
eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-historicamente.
Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem
não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem
e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que
torne outros felizes” (Segunda Consideração Intempestiva).
A
memória e, sobretudo, a boa capacidade de memorização, é sem dúvida uma dádiva.
Mas é o esquecimento que nos permite dormir, viver, sorrir, experimentar
momentos de felicidade e seguir em frente. Imagine a nossa moradora de rua
acometida pelo mal de Funes?
Alguém
poderia, legitimamente, cobrar-me uma visão mais social e menos filosófica da
condição daquela senhora. Leitores com uma sensibilidade mais à esquerda (não
exclusivamente) poderiam ver ali um fenômeno típico da exclusão capitalista, um
efeito tardio das políticas neoliberais, etc. Não foi o meu caso. Meu olhar não
foi social, vitimizador ou de pena. Não foi um olhar redentor, nem cristão, nem
marxista, mesmo porque eu não tinha paraísos a oferecer, ou uma saída segura a
prometer. Acho que era ela quem me apontava uma saída. Ela tinha algo mais importante
a me dizer do que eu a ela.
Lembro do senhor contando esta história na sala de aula, no curso de Comunicação Social da Univali. As suas aulas eram a únicas que me motivam a levantar da cama e ir para a universidade.
ResponderExcluirOi João.
ResponderExcluirBons tempos né!
Por onde tu andas?
Um abraço.
Paulo.
Professor, estou cursando Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. Dia desses faço uma visita para voces na Univali.
ResponderExcluirAbraço
Que boa notícia, João. Venha mesmo.
ExcluirUm abraço.
Paulo.