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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

MIKHAIL BAKUNIN É PROCURADO PELA POLÍCIA CIVIL DO RIO DE JANEIRO.

MIKHAIL BAKUNIN É PROCURADO PELA POLÍCIA CIVIL DO RIO DE JANEIRO.


Algumas figuras, mesmo mortas, continuam a perturbar a harmonia comtiana da ordem e a sagrada paz social.  

138 anos depois de sua morte, o anarquista russo Mikhail Bakunin é indiciado pela polícia civil do Rio de Janeiro por suspeita de atividades criminosas durante a Copa do Mundo. Bakunin foi citado numa conversa telefônica por um manifestante, interceptada pela polícia, e imediatamente passou a figurar como “potencial suspeito” no inquérito que responsabiliza 23 ativistas por atos violentos (Folha de São Paulo: 18/07/2014). A polícia espera prendê-lo nas próximas horas.

Bakunin passa a compor agora a seleta e curiosa lista de “filósofos” fichados depois de mortos pela polícia brasileira. Nos tempos da ditadura o temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops) tinha entre os fichados, acreditem!, o filósofo Sócrates e Karl Marx. A brutalidade dos órgãos repressores da ditadura só rivalizava mesmo com a ignorância que também os distinguia. O Departamento chefiado pelo famigerado Fleury perseguia obstinadamente os grupos de esquerda, mas era incapaz de reconhecer os autores que inspiravam a luta do “inimigo”. Combatiam nas trevas da ignorância (uso invertido da expressão de Jacob Gorender). Parece que a polícia carioca sofre do mesmo problema. O Dops foi extinto em 1983, mas as práticas de repressão, espionagem, infiltração nos movimentos sociais, o monitoramento de suspeitos e a prisão das lideranças ficaram como tristes legados para a cultura policial brasileira. Continuamos a tratar as questões sociais, mesmo sob a batuta de um governo de esquerda, como casos de polícia.

A polícia civil do Rio de Janeiro não herdou apenas o antigo prédio do Dops. Atuando à moda Dops, repressora e comicamente despreparada, escancara continuidades obscuras que atentam contra a democracia e revelam a impressionante desinformação, ou má formação, dos agentes. Os policiais são obrigados a conhecer Bakunin? Claro que não. Mas se a polícia esta investigando grupos que se declaram anarquistas, não caberia a Coordenadoria de Informação e Inteligência Policial (CINPOL), oferecer aos investigadores informações sobre o movimento e a cultura geral que informa os manifestantes? Não quero com isso sugerir que a polícia deva se especializar na repressão aos movimentos sociais, às manifestações políticas e na caça aos ativistas. Estou questionando a capacidade da polícia de lidar com manifestações de caráter político.

Não custa informar à desavisada polícia carioca que Bakunin, perseguido pelas polícias saxônica, prussiana, russa e austríaca, foi preso em 1849 pela destacada participação nos levantes de Leipzig e Dresden em 1848. Ficou atrás das grades treze meses antes de ser condenado à prisão perpétua. Depois de alguns anos foi enviado para a Rússia, que reclamava sua deportação. Não custa também lembrar à polícia civil que Bakunin escreveu na prisão uma espirituosa “confissão”, e enviou ao imperador. Dizia assim: “Você quer a minha confissão; mas você precisa saber que um criminoso penitente não é obrigado a implicar ou revelar as ações de outrem. Guardo apenas a honra e a consciência de que jamais traí quem quer que tivesse confiado em mim, e é por esse motivo que não lhe entregarei nenhum nome.” Se a intenção da polícia é prender Bakunin para ele revelar os nomes das pessoas que financiaram ou estimularam os protestos, é bom ler com atenção a “confissão”.

Em 1857 o Czar decidiu banir Bakunin e mandá-lo para os distantes campos de trabalho forçado da Sibéria. Não por muito tempo. Bakunin fugiu da prisão e se lançou numa viagem de contornos épicos, embalada por genuíno espírito revolucionário, pelo Japão, Estados Unidos, até chegar a Londres, onde retomou as lutas. Daí até a sua morte, em 1876, dedicou-se as causas libertárias na Itália, Inglaterra, França e Suíça, e ainda teve disposição, apesar do cansaço e da pobreza que o rondava, para enfrentar os marxistas na Primeira Internacional (Bakunin foi expulso da AIT em 1872, no Congresso de Haia, pelos marxistas). Quatro anos mais tarde, ano de sua morte, a AIT foi dissolvida.



Depois de perseguido em vida pelas polícias europeias, de passar anos duríssimos na prisão, nos campos de trabalho forçado na Sibéria e de ser expulso da AIT pelas manobras autoritárias dos marxistas, Bakunin é agora perseguido pela polícia carioca e citado em conversas de ativistas mimados (e autoritários). A memória do anarquista russo não merecia tamanhos maus-tratos.

Depois dessa, o que mais podemos esperar? A contratação de um médium para interrogar o anarquista no céu? O médium, quem sabe, faria um contato com o espírito de Fleury que, na sua melhor especialidade, torturaria a alma de Bakunin até ela confessar que esteve nas manifestações contra a Copa do Mundo.  De Fleury e da polícia eu não duvido nada. A dificuldade seria encontrar a alma do anarquista. Adianta explicar para a polícia que Bakunin era ateu?

Sugestão para a polícia carioca: criar o Departamento de Investigação de Assuntos do Além, comandado por agentes mediúnicos e auxiliado por tecnologias ectoplasmáticas. Seria mais uma, entre tantas fantasmagorias, que povoam o universo policial brasileiro.


sexta-feira, 18 de julho de 2014

NOLLYWOOD CONTRA-ATACA: A Invasão Extraterrestre do Mundo Não Vai Começar Nos Estados Unidos.

NOLLYWOOD CONTRA-ATACA: A Invasão Extraterrestre do Mundo Não Vai Começar Nos Estados Unidos.



“Renascimento africano”, expressão cunhada pelo historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop e popularizada nos últimos anos por Thabo Mbeki, é um conceito que nos ajuda a compreender o caminho do desenvolvimento tecnológico, científico e econômico que algumas nações africanas vêm trilhando nas duas últimas décadas. A noção de “renascimento” indica a superação das enormes dificuldades que se apresentam ao continente e a busca de alternativas próprias, para além dos modelos ocidentais, fundadas na riqueza étnica e na valorização das culturas locais. Se prestarmos atenção ao cinema produzido na Nigéria e em Gana, os dois polos mais expressivos do cinema africano atual, a ideia de um “renascimento” cultural baseado na cultura local salta aos olhos. O cinema nigeriano, o caso mais bem sucedido, é visto hoje como o setor mais dinâmico da economia e um dos pilares do desenvolvimento nacional. Emprega milhares de nigerianos, gera lucros excepcionais e alcança o mercado dos países vizinhos.

País mais populoso da África, a Nigéria é para nós um continente ainda desconhecido. O que sabemos sobre a Nigéria e os nigerianos para além do que nos dizem as pautas seletivas dos sites e noticiários internacionais? Ou mais especificamente, o que sabemos sobre a produção cinematográfica nigeriana, uma das maiores do mundo? Quase nada. Excetuando os raros ciclos de filmes africanos organizados no Brasil, os filmes nigerianos estão fora do alcance, e do gosto (?), do mercado de consumo de cinema dos brasileiros e da maioria dos “cinéfilos”.

A Nigéria é um dos trinta países mais pobres do mundo e um dos mais intolerantes em relação à religião e a sexualidade. É a contraface obscura do “renascimento”. Desde a redemocratização em 1999 o país vive as voltas com a intolerância religiosa entre cristãos e muçulmanos. Os massacres se sucedem com inacreditável brutalidade, com cenas de espancamentos, chacinas, decapitações e cristãos queimados dentro das igrejas. Quase sempre as justificativas apontam para supostas blasfêmias contra o corão e o profeta Maomé. A perseguição aos gays também tem marcado o país e projetado uma imagem internacional assustadora. O amor entre pessoas do mesmo sexo é ilegal no país desde os tempos da colonização inglesa, mas no começo deste ano uma nova lei, aprovada pelo presidente Goodluck Jonathan, e apoiada pela maioria da população, piorou o que já estava ruim. A lei proíbe uniões civis do mesmo sexo e determina quatorze anos de prisão para quem casar ou viver em união de fato. A lei também atinge quem estiver ligado a clubes ou associações homossexuais. Nestes casos prevê-se dez anos de cadeia. Recentemente o país tornou-se o centro da atenção mundial por conta do sequestro de mais de duzentas meninas de uma escola em Chibok, pelo grupo extremista islâmico Boko Haram.


Mas a Nigéria não é só isso. A pobreza e a intolerância são humanamente devastadoras, mas não podem ser definidoras exclusivas da identidade internacional do país.  Um fenômeno desconhecido por nós brasileiros, e pelo ocidente de um modo geral, tem chamado cada vez mais atenção para a Nigéria. A produção cinematográfica é a segunda maior do mundo, ficando atrás apenas de Bollywood, na Índia. Hollywood ficou recentemente com o terceiro lugar. Um relatório da UNESCO de 2009 já apontava que a indústria de cinema da Nigéria ultrapassara Hollywood. Nos últimos anos o polo cinematográfico nigeriano cresceu vertiginosamente. Em 2006, Nollywood, como é chamado o conjunto da produção cinematográfica, superou a poderosa indústria norte-americana. Enquanto Hollywood rodou 485 filmes, Nollywood rodou 872. Bollywood produziu 1.091 filmes. (Uma matéria na Le Monde Diplomatique, de 2009, apontava que a produção de filmes na Nigéria era a maior do mundo, alcançando uma produção de até 1500 filmes por ano). Vale lembrar que em Gana a produção de filmes também atingiu um patamar formidável, e já vem sendo, há alguns anos, chamada de Gollywood.

A trajetória do cinema nigeriano recente é dividida em três momentos:
- de 1992 a 1998, período que pode ser identificado como a gênese, é denominado “The Beggining” ou “Classiscs VHS”;
- de 1999 a 2007 temos o “Boom”;
- o período que vai de 2008 até hoje é chamado de “Nollywood Now” ou “New Nollywood”. 

De acordo com o mito de origem de Nollywood, tudo começou em 1992 com as primeiras cópias caseiras realizadas em formato VHS. Um sujeito chamado Kenneth Nnebue tinha um grande estoque de fitas VHS em branco, vindas de Taiwan, para vender. Para alavancar as vendas, decidiu gravar alguma coisa nas fitas para torna-las mais atraentes. O filme escolhido foi "Living in Bondage", um clássico do cinema nigeriano, de 1992, sobre um homem que mata ritualisticamente a mulher por dinheiro, mas passa a ser assombrado pelo espírito da falecida. O negócio deu certo. O filme foi um sucesso popular. Nnebue vendeu mais de 750,000 cópias e despertou uma legião de imitadores, que lhe seguiram os passos. Do mercado informal e improvisado de VHS, recheado com filmes voltados para o gosto local, nascia Nollywood. Em poucos anos o negócio se transformou num fenômeno de vendas e de produção, alcançando até as áreas rurais mais pobres do país.
Link para assistir “Living in Bondage”:
https://www.youtube.com/watch?v=pu_8a_OLiBg

O curioso é que este fenômeno cinematográfico está acontecendo num pais que praticamente extinguiu as salas de cinema há mais de vinte anos. A explicação é simples: na década de 1980 a violência e a crise econômica que assolavam o país afastaram o público das salas de cinema. Era mais seguro ver filmes em casa. O meio encontrado para driblar as dificuldades foi a produção de home vídeos. Toda produção cinematográfica nigeriana é de home vídeos e 90% da produção não é oficial ou legalizada. O fenômeno acontece no mercado informal sem qualquer tipo de incentivo do governo. Segundo dados de 2006, o cinema nigeriano empregava, entre produção e distribuição, cerca de um milhão de pessoas. Era, depois da agricultura, o setor que mais gerava emprego no país.

Os filmes são produções artesanais, com equipamentos baratos, a custos muito baixos, voltados para o gosto local. Custam em média entre 10 e 20 mil dólares e os atores, quase sempre amadores, faturam algo em torno de 300 dólares por filme. Os filmes são rodados e comercializados, em média, em uma semana. Custam alguns dólares (três dólares, segundo algumas fontes) e vendem algo em torne de 20 mil cópias (os grandes sucessos ultrapassam esta marca). Portanto, não esperem dos filmes de Nollywood superproduções com acabamento técnico apurado, narrativas sofisticadas, montagens de cair o queixo e roteiros fodões.


Apesar dos baixos custos de produção e do amadorismo, os lucros alcançados pelo cinema nigeriano são impressionantes. Em 2011 foram movimentados cerca 250 milhões de dólares. Sucessos caseiros, os filmes nigerianos começam também a conquistar os mercados dos países vizinhos (Gana, Quênia, Uganda, Gâmbia, Níger, Camarões, Benin, Zâmbia, Togo o Sudão). Na África do Sul, a MultiChoice, uma empresa de televisão via satélite, oferece um canal exclusivo para os filmes nigerianos, que também são transmitidos para Botsuana, Zimbábue, Suazilândia, Namíbia. E a coisa não para por aí. Nollywood vem despertando o interesse fora da África. A Zenithfilms, uma empresa britânica que distribui a programação da Nigéria para as companhias aéreas, anunciou que vai lançar um novo canal, chamado de Nollywood filmes, na British Sky Broadcasting Group (BSkyB) a famosa operadora de televisão britânica controlada por Rupert Murdoch (dados de 2006, da The Economist).



O sucesso e a ascensão relampado de Nollywood se devem a uma conjunção de fatores. De um lado, o empreendedorismo local associado à tecnologia digital, de outro, a sacada de fazer filmes em vídeo visando o gosto local, numa época de escassez de salas de cinemas (Em 2013 havia apenas 12 salas de cinema no país).

The Day They Came.

A mais recente e curiosa produção do cinema nigeriano é o filme de ficção científica “The day they came”. O enredo é simples, manjado, mas... Um homem abre a porta da casa e sai para fumar um cigarro na rua. Parece ser um dia como outro qualquer. Sons familiares e cotidianos como o canto de um galo e o latido de cachorros ao longe sugerem tranquilidade. A normalidade de súbito é rompida por ruídos estranhos que inesperadamente rasgam o véu plácido da manhã de domingo. Em segundos o homem se vê em meio a uma invasão de gigantescos robôs alienígenas e naves espaciais que disparam com poderosas armas de laser pulverizando o mundo a sua volta. O homem não é Tom Cruise nem Will Smith, e a ação não se passa em New York ou em alguma cidade norte-americana. A invasão alienígena começou na periferia de Lagos, na Nigéria. É este o argumento do curta-metragem “The day they came”, produzido em 2014 pela “Ficsion film”, uma promissora produtora de filmes nigeriana. O curta, de 3 minutos, que brinca com o enredo de “Guerra dos Mundos”, é o primeiro de uma série de episódios que ainda estão por vir. Aguardemos. A ficção científica nigeriana esta só começando. Os efeitos especiais são soluções caseiras precárias, quase risíveis, se comparados com a tecnologia dos efeitos de Hollywood, mas alguma coisa está acontecendo por lá.
(Link para quem quiser conferir: http://www.youtube.com/watch?v=SSKwKJtezU0).

O filme, em parte, é uma reação, ou uma resposta cinematográfica, às imagens degradantes dos nigerianos apresentadas no filme “District 9”. O filme, de 2009, dirigido pelo sul-africano Neill Blomkamp, é uma coprodução Estados Unidos-África do Sul, Canadá e Nova Zelândia, que custou 30 milhões de dólares. Foi filmado como um pseudo documentário que narra a história de alienígenas que por problemas técnicos ficaram presos no nosso planeta. A nave enguiçada paira sobre Johanesburgo. Os alienígenas, resgatados com vida do interior da nave, foram instalados numa espécie de campo de refugiados. O lugar, cercado com muros altos e apartado da cidade, logo adquiriu aspecto de favala. Os Ets, ilhados e discriminados, vivem em conflitos com a populaçõa local, que não aceita a presença das criaturas com desgradável aspecto de camarão. O filme é uma alegoria do apartheid. Os Ets vivem isolados, cercados, são vistos com preconceito e comem comida de animais. Na favela vivem também os imigrantes nigerianos, que formam uma gang criminosa que atua no submundo de Johanesburgo traficando armas, explorando a prostituição e a feitiçaria. São eles que fornecem comida de gato, apreciada pelos alienígenas, em troca das poderosas armas extraterrestres. O líder dos nigerianos é um sujeito de aspecto amedrontador chamado Obesandjo que busca obstinadamente, por meio da feitiçaria, se apossar da tecnologia dos Ets.


O modo como os nigerianos foram retratados provocou uma onda de indignação e revoltas (Uma página no facebook, chamada “Distrito 9 odeia a nigéria”, foi criada para canalisar os protestos). A reação oficial do governo nigeriano foi contundente. As autoridades consideraram que o filme ofendia e denegria o país. A Silverbird Cinemas, maior distribuidora de filmes da Nigéria, teve que suspender a circulação do filme, obedecendo à decisão do governo (No entanto, a decisão de proibir o longa só fez aumentar o interesse do público. Milhares de cópias da produção foram baixadas da internet). Já a ministra de Informação e Comunicação, Dora Akunyli, exigiu da Sony Pictures um pedido oficil de desculpas por apresentar os nigerianos como “canibais, criminosos e prostitutas”. Dora indignou-se também pela referência ao sobrenome do ex-presidente nigeriano – Obasanjo – ser usado como apelido do chefe dos criminosos nigerianos no filme e convocou a população a “resistir a qualquer tentativa de apresentar os nigerianos como crimonosos”. “O filme, afirmou a ministra, mostra mulheres nigerianas mantendo relações sexuais com não humanos.”

O escritor nigeriano-americano Nnedi Okorafor assistiu ao filme a irritou-se com o que considerou um estereótipo abismal dos nigerianos. Em resposta começou a escrever um romance de ficção intitulado “Lagos”, que narra uma invasão alienígena na cidade de Lagos. Nas palavras do escritor: “Trata-se de uma invasão alienígena na cidade de Lagos e como os Lagosians de todas as esferas da vida lidam com isso. I started writing it as a screenplay for Nollywood director Tchidi Chikere.Eu comecei a escrevê-lo como um roteiro para o diretor de Nollywood Tchidi Chikere. He and I were both deeply irritated with the South African science fiction film District 9′s abysmal stereotyping of Nigerians. Ele e eu estávamos profundamente irritados com o filme Sul Africano de ficção científica District 9, de estereótipo abismal dos nigerianos. Once I started writing it, it quickly became something other than a response to District 9; Quando comecei a escrevê-lo, rapidamente se tornou algo diferente de uma resposta ao Distrito 9; it became its own story with its own soul. tornou-se a sua própria história com a sua própria alma.”

“The day they came”, inspirado no romance de Okorafor, é, portanto, parte de uma reação nacional a “Distrito 9”. Mas não é só isso. É a primeira produção nigeriana relevante no campo da ficção científica que, a sua maneira, e a partir de sua deficiência técnica, retira dos Estados Unidos o protagonismo exclusivo nesta área. Claro, “The day they came” não tem como competir com o vertiginoso “Independence Day”, e não é esta a ideia. O que conta é a iniciativa e a ousadia de narrar uma invasão alienígena da perspectiva africana.


O cinema nigeriano, quase desconhecido fora da África, não é um cinema para satisfazer as exigências de quem foi educado pelo padrão hollywoodiano e se contenta com o que vem da terra do Tio Sam. Os Estados Unidos fazem o pior e o melhor cinema do mundo, mas o mundo dos filmes não se esgota nos Estados Unidos. Para compreendermos o cinema nigeriano, e o cinema africano de um modo geral, não podemos compará-lo com o cinema hollywoodiano. É preciso conhecer as particularidades do fazer cinematográfico na África. Os filmes norte-americanos servem de inspiração para parte das produções nigerianas, que os adaptam ao gosto popular, a estética e as condições técnicas locais. Filmes de zumbis (Witchdoctor of the Living Dead), de terror (House of Horror), de ficção científica (The day they came), super-heróis (Oya: Rise of the Orisha) e thriller policial (October 1), são alguns exemplos dos empréstimos fílmicos tomados de Hollywood. Nestes casos, pratica-se verdadeira antropofagia cinematográfica. Temas e gêneros característicos do cinema norte-americano, consumidos globalmente, são retrabalhados pelos cineastas nigerianos, com atores, idiomas e cores locais, e adaptados ao paladar e a sensibilidade do público. Na releitura nollywoodiana das temáticas hollywoodianas os super-heróis são os orixás, os zumbis estão associados às práticas mágicas e a invasão extraterrestre não vai começar nos Estados Unidos.


Mas na maior parte, os filmes narram histórias sobre situações comuns da vida e do imaginário popular, como a prostituição, a corrupção, os amores mal resolvidos, a feitiçaria, a ganância, os medos. São temas nos quais o público se reconhece. Parece-me que vem desta identificação a explicação para a gigantesca expansão da indústria do home vídeo nigeriana.  As situações dramáticas, cômicas e assustadoras interpretadas por atores nigerianos, carregam mensagens que levam o expectador à reflexão. Na fórmula nollywoodiana o conteúdo é mais importante que a forma. Isso explica em parte o descuido com os aspectos técnicos, a simplicidade dos enredos, o apelo ao dramalhão e a falta de sutilezas estéticas. Mas foi assim, com interpretações bastante amadoras, com efeitos especiais precários e enredos considerados pobres que os filmes conquistaram o público, abriram espaço e consolidaram um mercado muito lucrativo. Os críticos, com alguma razão, dizem que tudo não passa de um fenômeno comercial, visando apenas o lucro fácil, sem nenhuma preocupação com a qualidade, com a estética e com a tradição autoral do cinema africano. Por esta razão, os filmes nigerianos não teriam condições de participar de festivais e mostras africanas e internacionais de cinema. Por outro lado, sustentam os defensores do home vídeo, os filmes são voltados não para o gosto internacional e refinado de cinema, mas para o gosto popular, e são amplamente consumidos no mercado local e regional.

O governo nigeriano, interessado na projeção do país, resolveu apostar no cinema e aprovou em 2010 uma linha de crédito de 200 milhões de dólares. O primeiro cineasta a receber o incentivo foi Abulu, um nigeriano que vive no Harlem e está empenhado na produção de filmes com mais qualidade. Abulo recebeu 250 mil dólares para rodar um filme chamado “Dr Bello”, que narra a história de um oncologista afro-americano que tenta salvar um paciente com a ajuda de um médico nigeriano. O apoio do governo representa um esforço para produzir filmes com mais qualidade técnica, capazes de serem exibidos em salas de cinema no mundo todo, e derrubar o estigma da precariedade, do improviso e da baixa qualidade que acompanha o cinema nigeriano. Abulu contou com astros renomados em Nolywood, como Genevieve Nnaji e Stephanie Okereke e convidou os atores hollywoodianos Isaiah Washington (da série "Grey's Anatomy") e Vivica A. Fox (de "Independence Day"). (Folha de São Paulo, 8 de outubro de 2012). O filme pode ser visto no canal YouTube. Assistam e tirem suas próprias conclusões.

Gostem ou não, Nollywood esta aí. É uma nova maneira de fazer cinema. Num mundo cada vez mais marcado pelo gosto padronizado por filmes, e pelo confinamento do cinema nas hiper-salas de shopping centers, a novidade que vem da Nigéria é, no mínimo, provocante.



quarta-feira, 16 de julho de 2014

PETRALHA, NEOLIBERAL, ESQUERDOPATA E REAÇA: Os Nomes da Intolerância no Léxico Simplificador dos Patrulheiros Virtuais.

PETRALHA, NEOLIBERAL, ESQUERDOPATA E REAÇA: Os Nomes da Intolerância no Léxico Simplificador dos Patrulheiros Virtuais.



Em agosto 1978, depois do lançamento de Chuvas de Verão, Cacá Diegues deu uma entrevista, publicado no Jornal O Estado de São Paulo, comentando a recepção do filme e a perseguição sistemática sofrida pelas produções culturais brasileiras não alinhadas às orientações políticas ditadas pelo partido comunista e pelos jornalistas engajados (segundo Diegues, a maioria dos críticos de cinema estava ligada ao PCB). O filme - uma crônica de costumes sobre a amizade, o sexo e o amor na terceira idade – não agradou aos vigilantes, que exigiam um cinema politizado (uma arte politicamente correta) de acordo com os cânones estéticos da época. Foi nesta entrevista que apareceu pela primeira vez a expressão “patrulhas ideológicas”, para definir a depreciação e desqualificação sistemática que as obras dos artistas não engajados sofriam. Dois anos depois era publicado o livro “Patrulhas Ideológicas” (escrito por Heloísa Buarque de Holanda e Carlos Alberto Pereira). No livro, Cacá Diegues pode definir melhor, numa nova entrevista, o modo de agir das patrulhas: “O que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo o que escapa a esta codificação será necessariamente patrulhado.” O cineasta exagerou, foi dramático? Não lidou bem com a frieza da crítica que já o havia detonado em 1976, com Xica da Silva, seu primeiro filme de grande sucesso de público? Pode ser. Mas nada disso diminui ou invalida o achado da expressão. “Patrulhas ideológicas” define um modo vigilante de agir politicamente que, em nome de uma ortodoxia, desautoriza sistematicamente as vozes que desafiam ou estão em desacordo com o cânon.

 Nos dias de hoje a expressão achada por Cacá Diegues faz algum sentido? Deixando para trás o que era específico daquela época (a ditadura, o conceito de ideologia corrente e as particularidades do marxismo dos anos 70), eu diria que a noção de “patrulhas ideológicas”, infelizmente, ainda não perdeu o “prazo de validade”. Os tempos são outros, os cânones não são mais os mesmos, o partido comunista virou um fóssil político, mas o “sistema de pressão” e de cobrança e a “tentativa de codificar”, realinhados no ambiente digital e democrático, estão aí, mais vivos do que nunca. Grupos de pressão, que agem em bloco, ou indivíduos dotados de certezas inabaláveis e investidos do poder de julgar implacavelmente a opinião alheia, pagos ou não, ligados a partidos ou avulso, fazem vigília, farejam as manifestações discordantes e vasculham o ambiente virtual como cães policiais. Os patrulheiros, ontem e hoje, estão sempre certos, andam de mãos dadas com a verdade e sequer cogitam a possibilidade do engano. São portadores de verdades históricas (ou de um historicismo das conveniências), praticam uma sociologia das certezas, detém o monopólio das virtudes e navegam conformados no mar imutável das essências. Quando se enganam jamais se desculpam, afinal, o inimigo – seja ele de classe ou de fé - se define pela vilania e torpeza de caráter. A fórmula é mais ou menos a seguinte: a causa é justa, e o inimigo, opaco e equívoco, induz ao erro. O engano, portanto, é justificável.  

O ambiente virtual e as redes sociais, como territórios da intolerância política, deram novo sentido ao patrulhamento. Tudo o que se diz, tudo o que se escreve, todo pensamento tornado público é monitorado e instantaneamente julgado, patrolado e desqualificado. Não parece um tribunal online? (Tom Zé chamou de “Tribunal do Feicebuqui”) Vivemos numa espécie de juízo final virtual: os avatares, em eterna vigília, não dormem, não piscam, sabem de tudo, sabem de todos. Os formadores de opinião, verdadeiras entidades digitais divinizadas, destilam ressentimentos, exercitam-se em duelos sofísticos semanticamente acrobáticos, apedrejam impiedosamente os adversários, vomitam mandamentos políticos, e seus acólitos os divulgam nas redes sociais. (Um tanto dramático, eu sei. Mas me deem um desconto. Deve ser algum alinhamento planetário mexendo com a minha Lua). 

Vamos ao ponto.
Meu blog é um armazém virtual para os meus escritos. Nada mais que isso. Embora não muito lido, se comparado aos blogs mais famosos, recebe uma média diária considerável de leitores de várias tendências políticas, a julgar pelos comentários, de várias partes do mundo - o que muito me surpreende - e com interesses bastante diversos. Não sei exatamente quem são meus leitores. Não faço questão de saber. Uma parcela deles, no entanto, me deixa bastante intrigado. São patrulheiros virtuais que frequentam meu armazém para monitorar o que escrevo e, ocasionalmente, demarcar território e deixar uma ofensa qualquer. Coleciono xingamentos e tentativas de desqualificação. Às vezes tenho a impressão que meus textos são mais lidos por pessoas que não gostam do que escrevo. Não gostam, mas estão sempre ali, anonimamente, policiando, monitorando, patrulhando. São os fiscais do pensamento alheio.

No meu armazém, sou o escritor e o faxineiro. Lido com a palavra e com o lixo. Nas faxinas regulares que faço, para manter a coisa com alguma decência, me deparo com a palavra-lixo deixada por alguns visitantes. Aí, não tem jeito. Desinfeto mesmo. Invariavelmente, excluo os xingamentos e os comentários pilantras. Não vou deixar essa gente fincar suas bandeiras/prisões na minha Lua.

 Abaixo, uma pequena amostra do que os inspetores do pensamento escrevem no blog.
Na semana passada um rapaz furioso, que se declarou em defesa “do que é certo” e contra o “conservadorismo espúrio que infesta o Brasil”, deixou um comentário no post sobre o filme “Juan de los Muertos”. Um comentário a meu respeito, não sobre o filme. O rapaz não me conhece, e não viu o filme, mas afirmou em caixa alta, gritando, que eu sou um “fascista direitoso” e um “reaça a serviço do capital e das elites conservadoras”. No final do comentário, a cereja do bolo progressista: “Acho que você deveria ir morar em Miami”. Repararam que está na moda mandar os indesejáveis embora. A turma que se auto define como “de direita” manda o povo “da esquerda” ir morar em Cuba. Parece que na democracia dessa gente a melhor saída para resolver as diferenças políticas é uma passagem só de ida para o opositor. Cuba e Miami são lugares preferenciais, simbolicamente carregados. Em Miami um “fascista direitoso” como eu se sentiria à vontade ao lado da “burguesia cubana” expatriada que, em conluio com a CIA, tenta desestabilizar a “democracia cubana”.

Tentei imaginar o que se passa na cabeça da criatura. Ele deve acreditar piamente que o meu blog é um blog de fachada mantido por uma espécie obscura de maçonaria anti-progressista e anti-cubana, sediada quem sabe em Miami, e financiado por dragões ultra liberais, como o Instituto Milenium, a Editora Abril e o Instituto von Mises. Deve crer também que recebo incentivos de “burgueses” e banqueiros inescrupulosos para atacar as forças progressistas. Deve ser isso. A versão patrulheira do “santo guerreiro”, que percorre as redes sociais e vasculhas os blogs em busca do “dragão da maldade” – para brincar com as metáforas glauberianas -, encontrou na minha Lua terreno fértil para exercitar seu ciber-heroísmo-progressista.

 Já estou acostumado com este tipo de coisa. Já fui xingado, anonimamente, de coisa pior. Já insinuaram, por exemplo, que eu deveria “escrever na Veja”, que sou “um neoliberal desumano” e, acreditem, que estou “contra o Brasil”. Mas o mais curioso nisso tudo é que tem outra turma, igualmente exaltada, que diz o contrário. Várias vezes deixaram comentários no blog me chamando de “petralha”, de “comunista disfarçado” e de “fascista esquerdopata” (Essa tendência de “patologizar” as orientações políticas dos outros, como bem disse Cristian Dunker numa polêmica recente, carrega alguma coisa de “fóbico” e de “francamente não resolvido”). Uma moça bastante irritada com o post que escrevi sobre “Os esqueletos no armário da Revista Veja” perguntou se eu era “a favor da ditadura comunista” e me chamou de “esquerdista intolerante”. No post “A Ressurreição do Tenentismo”, um rapaz, que declarou ódio ao PT e se disse “honestamente a favor de uma intervenção militar”, me chamou de “comuna” e de “PeTezinho de merda”. Os anti-petistas se imaginam numa cruzada moralizadora e redentora pela “salvação do Brasil”. Enxergam comunismo em tudo e não economizam adjetivos ofensivos para desqualificar o suposto inimigo. Exibem nas redes sociais um anticomunismo anacônico e esquizofrênico, de causar vergonha.

Desde que o PT virou governo, a patrulha não é mais exclusividade das esquerdas. Os vigilantes “de direita” se espalharam no mundo virtual e, cada vez mais agressivos, agem como verdadeira polícia do pensamento. Esta turma vê o meu blog, imagino, como um robô de opinião orientado pelo partido ou como um agente da MAV (Militância em Ambientes Virtuais) criado para rebater as críticas ao governo (Neste caso, o destino certo para um “comuna” como eu seria Cuba). Os neopatrulheiros - macarthistas de ocasião e iletrados barulhentos – manejam um vocabulário assustadoramente pobre e praticam nas redes sociais um conservadorismo azedo, burro, que empobrece o cristianismo, que dizem professar, e envergonha o liberalismo, que julgam seguir. Recomendaria aos vigilantes a leitura de José Guilherme Merquior (De Praga à paris, quem sabe), de Hayek (O Caminho da Servidão), de Stuart Mill (Ensaio sobre a Liberdade), mas suspeito que estaria jogando pérolas aos porcos.

Atribuo a ambivalência dos comentários à polarização política dos últimos anos no Brasil e a incapacidade crônica de ler de algumas pessoas. Num ambiente de polarização ideológica se você não se define clara e inequivocamente em favor de um dos lados (levantar bandeira mesmo), você vira alvo dos dois lados. O rapaz que me chamou de “fascista direitoso” terminou o comentário perguntando: “e aí fascista tá torcendo contra o Brasil na Copa?” (risos). Olhei para bandeirinha que pendurei em casa, do lado de dentro, e lembrei-me da Copa de 82.  Se este rapaz vivesse naqueles dias, certamente estaria torcendo contra o Brasil, seguindo a tendência de boa parte da esquerda da época, que torcia pela URSS, do grande Dasayev, porque uma vitória do Brasil favoreceria a ditadura militar. A vitória da URSS significava a vitória do socialismo. As criaturas estabelecem uma relação mecânica e reducionista entre futebol e política, como se o esporte fosse um mero reflexo dos interesses políticos. Vem daí o uso deslocado do conceito romano da “política do pão e circo” (panis et circenses), para caracterizar o futebol como um instrumento de “manipulação das massas” e, por tabelinha, imbecilizar os apreciadores do esporte. Os usos do futebol como estratégia política e as relações/interações entre futebol e política, bastante conhecidas e estudadas, não fazem do esporte um acessório de luxo dos arranjos políticos. No senso comum, este tipo de associação é responsável por aberrações do tipo: “a copa foi comprada”. Na cabeça ilumi(nada) do sujeito que me chamou de “fascista”, eu torceria contra o Brasil porque, segundo sua ótica, sou anti-petista. Para ti, camarada, nada de pão e circo. Teu metabolismo não seria capaz de digerir tal combinação. Recomendo grama, em grandes quantidades, e um daqueles manuais de doutrinação escrito por V. Kachine e N. Tcherkassov.

 Na semana passada alguém deixou um comentário no post que escrevi sobre Eduardo Campos. O “leitor” não gostou do texto (eu também não gostei muito) e esbravejou: “só pode que tu também é contra o Brasil e a favor da canalha petista”. A grosseira polarização resume-se a estar contra ou a favor do PT. Para a turma que serrou fileira nas hostes petistas, quem se manifesta contra o governo ou o partido está contra o Brasil. Para a turma que odeia o PT, quem apoia o partido também está inapelavelmente contra o Brasil. De um lado a crença de que o PT é o único caminho, de que não existe alternativa para o país fora do universo político dito “progressista”. Quem não está de acordo ou ousa fazer críticas à ortodoxia governista é atropelado pela vigilância política, desacreditado e lançado no pântano nebuloso do conservadorismo e da entidade fantasmagórica e perversa que eles chamam de “neoliberalismo”. De outro, a certeza de que com o PT o Brasil caminha rumo a cubanização ou a venezualização, o que, na linguagem desta gente, quer dizer uma forma decadente e anacrônica de (acreditem!) comunismo. Os mais exaltados e delirantes falam em “ditadura comunista”!

 As rotulações seguem a risca o esquema toscamente binário que rege o universo mental dessas pessoas. Entrar no blog e deixar um comentário acusando o blogueiro de “petralha” ou de “reaça” é um ato heroico, um gozo purificador, verdadeiro descarrego de consciência cívica das milícias virtuais. É a masturbação ideológica deles(as).


quinta-feira, 24 de abril de 2014

AS AVENTURAS DE EDUARDO CAMPOS E A FAMÍLIA BORNHAUSEN CONTRA AS “VELHAS RAPOSAS” DEVORADORAS DE SONHOS.


AS AVENTURAS DE EDUARDO CAMPOS E A FAMÍLIA BORNHAUSEN CONTRA AS “VELHAS RAPOSAS” DEVORADORAS DE SONHOS.




Quem lê/ouve e se deixa levar pelas declarações de Eduardo Campos e não o conhece de outros carnavais pode estar comprando “gato por lebre”. Ontem, 23, em Cascavel, no Paraná, o sujeito garantiu que vai "quebrar o pacto político" vigente no Brasil. Entre outras bravatas, bem ao estilo demagógico que o caracteriza, disse que:

"Nós vamos subir a rampa e vai descer àquela turma que está lá de costas para o Brasil. Não vamos governar com aquelas velhas raposas que estão lá roubando o sonho do povo brasileiro de construir uma nação melhor. É insustentável esse padrão político brasileiro, com 39 ministérios que os partidos chamam de seus. Vamos fazer de outro jeito."

Vamos relembrar rapidamente a trajetória recente do homem que pretende ser a alternativa às “velhas raposas que estão lá roubando o sonho do povo brasileiro”?

Em 2002 Eduardo Campos foi articulador no Governo Lula. Em 2003 foi nomeado para o Ministério de Ciência e Tecnologia, do governo Lula. Em 2006, com o apoio de Lula, candidatou-se ao Governo do Estado de Pernambuco, vencendo com 65% dos votos. Em 2010, foi reeleito, com o mesmo apoio, com 82% dos votos válidos. Até ontem, o bom moço que hoje se apresenta como novidade, apoiava o governo Dilma e se sentia a vontade ao lado das “velhas raposas”. Eduardo Campos passou os últimos dez anos confortavelmente instalado na base aliada dos governos petistas. Foi, portanto, co-autor e articulador do “pacto político” que diz governar o Brasil. Então, afinal, de que “raposas” e de que “pacto político” ele está falando?

“Vamos fazer de outro jeito”, afirmou Campos. De que jeito (?), me pergunto. Desalojando as raposas estabelecidas e reentronando raposas antigas ressentidas?

Eduardo Campos tem o apoio, e palanque garantido em Santa Catarina, de Jorge Bornhausen, ex-governador biônico e raposa veterana dos tempos da ditadura. Paulo Bornhausen, raposinha oportunista conhecida por estas paragens, pegou carona na chapa Campos/Marina e filiou-se, seguindo o exemplo do pai, ao PSB (Partido do Sonho Brasileiro. Ops, ... Socialista). Heráclito Fortes e Ronaldo Caiado, raposas ultra felpudas da política brasileira, também fazem parte desta insólita raposada “neossocialista”.

Raposas por raposas, Eduardo Campos está muito bem acompanhado. Não pode se queixar. Diria até que as “raposas” que o apoiam nesta épica aventura para salvaguardar o “sonho dos brasileiros” são de meter medo em Freddy Krueger, conhecido devorador de sonhos. É de arrepiar imaginar esta turma toda reunida para zelar pelo sonho do brasileiro por um país melhor.  

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

OS GUARANI E OS JESUÍTAS NAS FLORESTAS DO PARAGUAI: A NOÇÃO DE ENCONTRO COLONIAL COMO PERSPECTIVA DE ABORDAGEM HISTÓRICA (SÉCULO XVII).

Os guarani e os jesuítas nas florestas do Paraguai: a noção de encontro colonial como perspectiva de abordagem histórica (século XVII).
Compartilho aqui uma rápida reflexão sobre a noção de encontro colonial originada nas aulas de história da América. Embora as reflexões digam respeito ao século XVII da América Espanhola, acredito que elas tenham alguma validade para pensarmos as complicadas relações – conflitos, negociações, interações e distanciamentos - dos grupos indígenas com as sociedades americanas contemporâneas. Mas este exercício deixo para vocês, caros leitores.

A noção de encontro colonial não é nova, mas também nunca foi suficientemente desenvolvida. Mary Louise Pratt a utilizou para caracterizar as diversas modalidades de contatos entre europeus e americanos no contexto colonial. Da maneira como a emprego, seguindo a autora, sugere uma situação de contato cultural inédito, no sentido de nunca antes vivenciado, que aproxima sujeitos históricos que se desconheciam mutuamente, e que, sob o signo do colonialismo, passam a conviver num espaço comum, trocando bens culturais e simbólicos. Atravessado pelos diversos interesses do colonialismo e dos povos a eles submetidos, este espaço conjugado é desigualmente compartilhado. É também marcado por relações assimétricas de poder e pela sujeição e exploração das populações locais. Estas populações, no entanto, agiam dentro dos espaços delimitados pelo colonialismo com certa margem de autonomia e alguma margem de negociação. Encarar as relações entre índios e missionários deste ponto de vista significa estar atento aos sentidos do encontro colonial para ambos os lados.
No início do século XVII, as florestas subtropicais do antigo Paraguai foram palco de um surpreendente encontro colonial numa das “zonas de contato” forjadas pelo colonialismo ibérico. De um lado, os povos guerreiros guarani, desconhecedores da escrita, caçadores-coletores e cultivadores em constantes deslocamentos geográficos, presos nas malhas do colonialismo, sujeitados a exploração de mão-de-obra e com a sua área de mobilidade geográfica cada vez mais reduzida; de outro, a Companhia de Jesus, uma ordem que se construíra sob o signo da escrita, ponta de lança do catolicismo romano reformado, que chegava à América com o firme propósito de converter os povos gentios. Os jesuítas também estavam em constantes deslocamentos geográficos, mas eram deslocamentos apostólicos. E ao contrário dos indígenas, sua área de mobilidade expandia-se cada vez mais. Quanto mais reduzido ficava o mundo guarani, mais o mundo se abria à ação missionária dos jesuítas. Foram estes deslocamentos, sob a bandeira de Cristo, que trouxeram os jesuítas à América e aproximaram os dois universos.

Os guarani, guiados pelas palavras proféticas dos pajés, tinham na oralidade o meio de transmissão dos conhecimentos, dos valores, dos ritos e das tradições míticas e cosmológicas, enquanto os jesuítas tinham as verdades do deus único reveladas num livro, e na escrita epistolar a sua principal forma de comunicação. Embora a oralidade e a escrita sejam sistemas de comunicação distintos, não estou sugerindo uma dualidade. A comunicação não se restringe ao universo da palavra. Entre a palavra falada e a escrita, abrem-se inúmeras possibilidades de comunicação como a dança, o canto, o desenho, a pintura, os gestos, os sons, que sugerem outras formas de entendimento.  Entre o dito e o escrito insinuam-se a improvisação e o entrelaçamento das formas de comunicação, característicos de um contato cultural marcado pelo ineditismo. Do contato entre a oralidade primária dos guarani e a cultura letrada dos jesuítas ocorreram inúmeros arranjos semânticos e ajustes linguísticos, originando uma espécie de linguagem de conversão. Neste esforço de criar um horizonte de entendimento, a escrita foi um suporte fundamental para o sucesso da catequese. As dificuldades de comunicação impuseram aos missionários a elaboração de gramáticas e catecismos em línguas indígenas. Em outras palavras, operou-se uma redução gramatical da língua falada dos índios aos códigos escritos dos missionários. A gramaticalização das línguas indígenas valeu-se da comparação, isto é, da busca por equivalências entre as línguas indígenas e as línguas conhecidas pelos missionários. Esta busca por equivalências aproximou simbolicamente os dois universos e criou uma linguagem composta de elementos da tradição religiosa e escrituraria católica dos jesuítas e da tradição religiosa e cosmológica indígena.
O encontro entre a mística cristã e a cosmologia guarani, sob o signo do colonialismo, resultou na “invenção” de novos sujeitos: índios cristãos, índios infiéis, feiticeiros endiabrados, padres feiticeiros (O termo invenção é, em parte, inspirado em Edmundo O´Gorman. Segundo o historiador mexicano “a opção pelo termo invenção” é sugestiva pela ambiguidade que possibilita: de um lado, o termo vem acompanhado de toda uma visão da América na qual predomina o fantástico, o fabuloso, o legendário, o mítico; de outro, o termo pode lembrar algo que é construído racionalmente. Por isso mesmo, sua narrativa tem o sentido da construção de uma visão. Sua crítica tem o caráter de uma crítica à historiografia que produziu o conceito de “descoberta”. O uso que faço do termo sugere também os novos arranjos culturais, linguísticos e identitários que resultam da interpenetração entre as formas culturais trazidas pelos conquistadores e as das populações locais. Invenção tem portanto o sentido de criação e recriação de sentidos para o mundo, de formas de convívio, que considera os dois lados da relação colonial). Esta simbiose entre o colonialismo e a evangelização criou, opôs e fundiu no imaginário da conquista personagens como o missionário jesuíta Roque González e o cacique/pajé guarani Ñezú. Roque González, canonizado em 1988, dispensa apresentações. Ñezú era um poderoso líder que concentrava poderes políticos e religiosos, e que vivia num lugar conhecido como Pirapó, no Yjuí, na margem oriental do rio Uruguai. Foi descrito nas crônicas jesuíticas como cacique e feiticeiro. Estes dois personagens podem servir de guias para as nossas reflexões. Por vezes, o jesuíta convertia-se no feiticeiro e incorporava poderes mágicos, andando de povoado em povoado realizando curas e batizando crianças, ou então o feiticeiro se apoderava da mística cristã e improvisava missas no interior das florestas para desfazer o feitiço do padre. Roque foi morto em 1628 na redução de Caaró a mando de Ñezú, até então seu aliado na evangelização do Yjuí. O corpo foi esquartejado, queimado e o coração arrancado do peito. As vestes litúrgicas foram rasgadas e entregues a Ñezú, que as vestiu. Símbolos cristãos – cruzes e a imagem da Virgem Conquistadora - foram destruídos e os batismos realizados pelo missionário foram desfeitos. O chefe guarani se apoderava das vestes do padre, destruía os símbolos que traduziam o seu poder e se apropriava de ritos cristãos para reafirmar o seu poder na comunidade. Depois da morte de Roque, e das diligências para capturar os indígenas envolvidos, Ñezú desapareceu e nunca mais foi visto. A morte do padre Roque, no entroncamento cultural onde as místicas se cruzaram, reúne vários elementos destas apropriações recíprocas e traduz as tensões e fusões culturais daquele momento. A conquista traumática da América aproximou universos mentais e fundiu práticas religiosas, modos de expressão, originando criações híbridas e improvisações culturais, sob o signo do conflito ou da conciliação. A morte do padre Roque foi marcada por este jogo de oposições e fusões, a dupla face do encontro colonial.
Por encontro, entendo o movimento de duas culturas que, em determinadas situações, estabelecem contato e passam a coexistir num espaço compartilhado. A palavra encontro, como forma de abordagem histórica, tem suscitado fortes reações e, frequentemente, alguns mal entendidos. A proximidade do Quinto Centenário de Descobrimento da América reavivou a polêmica em torno dos termos utilizados para descrever a chegada dos europeus à América. As acaloradas discussões se deram em torno das palavras descoberta e encontro. Para alguns não houve descoberta, pois já haviam povos desenvolvidos vivendo por aqui, para outros não houve um encontro, mas um confronto. Outros, negando as duas possibilidades, sustentaram não ter ocorrido nem um encontro, tampouco uma descoberta, mas uma invasão.

Aqueles que condenam o emprego da palavra para se referir à chegada dos espanhóis na América, costumam afirmar que a ideia de um encontro esconde, ou minimiza, o violento choque cultural e a dominação europeia sobre as culturas nativas. Sustentam também que o termo encontro, assim como descoberta, possui um forte conteúdo eurocêntrico e colonialista. Por conta disso, preferem o emprego de categorias como conquista, choque, invasão, encobrimento, supostamente mais críticas. Na coletânea de ensaios intitulada Tempo e História publicada em 1992, organizada por Adauto Novaes, alguns autores discutem a terminologia adotada para descrever os acontecimentos ligados ao ano de 1492. Catherine Darbo-Peschanski, por exemplo, afirma que o termo “encontro” sugere uma perspectiva mais neutra. “Se por ‘descoberta’ entende-se ‘revelação’ e quase ‘nascimento’, a palavra veicula uma ideologia eurocêntrica e colonialista, pois as culturas do continente americano existiram e se desenvolveram bem antes de 1492. Quanto ao ‘encontro’, antes assumiu a forma de um enfrentamento.” Numa linha semelhante de argumentação, Eduardo Subirats diz que em vão “os nomes de encontro ou descoberta (...) tentam encobrir a palavra proibida desde o século XIV: conquista.”

Como tento mostrar, o uso do termo encontro não implica no encobrimento de conflitos nem no ocultamento da “palavra proibida”. A terminologia encontro, ao contrário de encobrir alguma coisa, explora faces não muito visíveis em outras nomeações das relações entre europeus e americanos. Penso que o uso de um termo ou outro – conquista, encontro, invasão ou descoberta – depende muito do que se pretende historiar. Não os vejo como excludentes, mas como termos com diferentes cargas semânticas. Essas expressões mais contundentes, embora focalizem o lado dramático e violento da conquista, conservam um ponto cego em relação ao que escapa à lógica do conflito. Além disso, estes termos empregados para fazer um contraponto à ótica eurocêntrica e colonialista acabam por reforçar o que pretendem denunciar. A invasão, a conquista e o encobrimento são, afinal, as ações do invasor, do conquistador, daquele que encobre. Mudam-se os termos, explicitam-se os mecanismos de dominação, mas os sujeitos, o verbo, a ação, continuam com aqueles que chegam através do mar.
Sustento, em defesa do emprego da palavra, que encontro não tem exclusivamente um sentido de aproximação amistosa, amigável ou amorosa. A palavra indica tanto a possibilidade do entendimento, quanto do choque e do conflito (No dicionário Aurélio, por exemplo, a palavra Encontro sinaliza uma variedade de significados que vai desde um encontro amoroso a uma rivalidade, uma briga: ato de encontrar; luta, briga e reencontro; confluência de rios; encontro de duas pessoas, de finalidade amorosa, sem que as partes se conheçam; ajuste de contas. Ou ainda: ao encontro de, em busca de, em favor de, na direção de; de encontro a; no sentido oposto a, em contradição com, contra). A serviço dos interesses coloniais ou realizando os ideais missionários da Companhia de Jesus, os jesuítas foram ao encontro dos índios para convertê-los e salvá-los, ou então vários grupos indígenas motivados por seus próprios interesses foram ao encontro dos padres para escapar do jugo colonial. Mas o mesmo ideal missionário dos jesuítas os fazia ir de encontro aos costumes indígenas, às suas tradições, ao seu modo de vida, e colidirem contra grupos menos dispostos à sua pregação ou lideranças que se sentiam ameaçadas com a sua presença. É exatamente esta ambivalência da palavra que pretendo explorar. Um encontro tanto pode ser um entendimento cultural como pode ser uma violenta colisão. A ideia de um encontro pressupõe existirem dois lados, mesmo que a correlação de forças não seja igual. Pressupõe também um desconhecimento do outro, de ambas as partes. O contato dos guarani com os primeiros padres no final do século XVI e início do XVII foi marcado por este ineditismo e descobertas recíprocas da alteridade. Já os jesuítas que chegavam à América ou ao Paraguai no século XVII, depois do estabelecimento das reduções, possuíam um conhecimento prévio do que iriam encontrar. As cartas dos primeiros padres, lidas nos colégios da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo, já haviam se encarregado de informar sobre estes povos.  Mesmo assim, o conhecimento do outro é relativo, indireto. Para os guarani os padres que adentravam seus territórios, salvo nos primeiros encontros, também não eram totalmente desconhecidos. A mística e a fama dos “novos xamãs” já corriam o mundo indígena. Este desconhecimento total, ou parcial do outro, é o pressuposto da ideia do encontro, do estar diante imprevisível.

A perspectiva do encontro tampouco encobre as relações de dominação e exploração, apenas as recoloca de outra maneira. Ao invés do dualismo reducionista que opõe dominadores e dominados ou exploradores e explorados, insuficiente para dar conta da rica e complexa dinâmica da vida social, proponho um olhar que inclua as mesclas e improvisações culturais, as formas ambíguas e escorregadias de existência social e o imponderável dos contatos culturais.

O avanço do colonialismo sobre os territórios indígenas da bacia do Prata, aproximou estes universos estranhos e forjou um espaço de convivência. Mas não se trata evidentemente de uma convivência entre iguais. O desequilíbrio de forças em favor do poder colonial e, por extensão, dos jesuítas era enorme. No entanto, se observarmos as primeiras décadas da conquista espiritual, desconsiderando momentaneamente a nossa visão retrospectiva privilegiada que nos mostra a o avanço implacável da colonização, o que vamos encontrar é um quadro de relativo equilíbrio entre os dois lados. E em diversas situações veremos os missionários e conquistadores em visível desvantagem. Não podemos esquecer que naqueles espaços de selvas onde foram erguidas as primeiras reduções o poder colonial ainda não se fazia presente. Embora sob jurisdição espanhola, a autoridade colonial nestes espaços era fraca ou inexistente. Os guarani ainda eram os senhores das planícies, das florestas e dos rios e a entrada dos padres nestes territórios era mediada pelos chefes indígenas (Ñezú afiançou a entrada do padre Roque no Yjuí).  Nestas condições, o encontro entre jesuítas e guarani nas fronteiras difusas do mundo colonial foi marcado por negociações, arranjos e acordos. Mas também foi marcada por tensões, intolerâncias e violentos conflitos, físicos e simbólicos, sobretudo entre os padres e os líderes espirituais guarani, os pajés. Portadores de outra espiritualidade, os inacianos chegavam à região trazendo nas suas palavras eloquentes discursos condenatórios e promessas de salvação. Outros homens, não menos eloquentes, que até então eram os guias espirituais dos guarani, se recusaram a aceitar a redução e opuseram dura resistência aos padres. Quero dizer com isso que o estabelecimento das reduções em território guarani não foi uma simples imposição colonial-jesuítica. Foi um projeto colonial estratégico, mas a sua realização dependeu de mediações e interesses de ambos os lados. É necessário, pois, examinar tanto o lado do redutor quanto o do reduzido.
           
A ideia de um encontro, no sentido de troca cultural, permite fugir das visões dualistas e polarizadas sobre os sujeitos em questão. Os jesuítas ora foram vistos como santos, abnegados protetores e salvadores dos pobres índios, ora foram pintados como demônios, farsantes e intransigentes, que estabeleceram um regime coercitivo nas reduções. Os índios, por sua vez, foram bons ou maus selvagens, dependendo do projeto ou da teoria a ser comprovada. Foram a página em branco ou o canibal inveterado. O mesmo dualismo que demonizava os conquistadores e missionários, vitimizava os índios, transformando-os em meros objetos de catequese, conquista e exploração. Quando não foi vítima indefesa, o índio resistiu heroicamente às imposições do colonialismo na defesa do seu modo de vida. De uma maneira ou de outra, o que prevalece é a lógica colonial ou a denúncia dela. O historiador Héctor Bruit, por exemplo, construiu a célebre tese da dissimulação dos vencidos. De acordo com esta hipótese o fracasso relativo da conquista espanhola deveu-se à resistência camuflada dos índios. Abalados inicialmente pelo trauma psicológico da conquista e movidos, posteriormente, por uma “vontade de resistir”, os índios desenvolveram “uma série de atitudes que enganaram e desorientaram os conquistadores”. A “resistência indígena” à dominação e exploração europeia valeu-se de armas como o silêncio, a teimosia, a mentira e a bebedeira como instrumentos de defesa e de manifestação do inconformismo “perante a nova sociedade que os explorava”. Graças a esta resistência sub-reptícia conseguiram sobreviver à destruição e ao genocídio e conservaram as suas “tradições culturais”. Bruit examina a conquista hispânica e a sociedade colonial a partir da dualidade entre dominação e resistência, vencedor e vencido. De um lado, os espanhóis invasores e exploradores, impondo sua dominação, seus valores e crenças, de outro, os índios explorados, massacrados, resistindo à destruição das suas culturas. Esta perspectiva que aprisiona o índio dentro de categorias como vencido, explorado e massacrado, acaba por vitimizá-lo e não percebê-lo como sujeito de ação, mas apenas de reação a uma determinada situação. Restava aos vencidos resistir à aculturação. Não existe nesta lógica a possibilidade da integração, pois isto significaria a concretização da conquista hispânica.

Bruit questiona a noção da miscigenação e o seu corolário, isto é, a criação de uma nova sociedade a partir da fusão de aspectos das culturas indígenas com traços da cultura europeia. A hipótese da miscigenação encobriria o fracasso relativo dos conquistadores perante as performances indígenas.  Esta abordagem supõe uma impermeabilidade cultural que impede as mesclas, as mestiçagens. Os espanhóis parecem vestir uma armadura cultural impenetrável, enquanto os índios fingem incorporar os novos valores para preservar alguma essência cultural de um passado longínquo. Algumas situações que sugerem um hibridismo entre formas religiosas indígenas e o catolicismo, Bruit vê um jogo de esconder indígena que teria “claramente” enganado os espanhóis. Recorrendo a um fragmento da crônica peruana de Poma de Ayala, revela as máscaras usadas pelos índios para ludibriar os conquistadores e agir sobre a sociedade que eles organizavam: “Que os mencionados índios bêbados, cristãos, sabendo ler e escrever, usando rosário, vestidos como espanhóis, com colarinhos, e parecendo santos, na bebedeira falam com o demônio e reverenciam as guacas, os ídolos e o Sol.”
         
Héctor Bruit não enxerga na descrição do cronista uma possível fusão do catolicismo com a espiritualidade andina, mas uma dupla atitude indígena. Os traços espanhóis e cristãos incorporados pelos índios são interpretados como um jogo de faz de conta, de aparência e opacidade, sugerindo um falso efeito de integração. Os gestos dos indígenas e dos conquistadores são percebidos exclusivamente a partir da relação colonizador/colonizado. Esta dicotomia, que secciona os sujeitos em identidades fixas, é tomada como um dado e não como categorias historicamente construídas, que respondiam a determinadas expectativas. Em estudos mais recentes de historiadores, antropólogos e etno-historiadores, têm-se sistematicamente apontado o eurocentrismo e o reducionismo destas abordagens. Examinando e revisitando o tema do encontro entre culturas, alguns pesquisadores vêm focalizando as mesclas culturais e as redefinições de identidades num mundo em transe pelos efeitos da conquista. Com isso, estão se multiplicando pesquisas que dedicam especial interesse pelas culturas indígenas e pelas formas como reagiram/interagiram com os europeus. Para além das construções binárias, e na esteira destes novos estudos, índios e jesuíta são vistos aqui a partir de uma multiplicidade de olhares, relativos à complexidade das formas de contatos que estabeleceram.
Ñezú e Roque González são os fios condutores privilegiados para refletir sobre as diversas faces deste encontro. Não os considero como representativos dos jesuítas e dos indígenas, tampouco de uma suposta cultura ocidental e outra indígena. Sob vários aspectos, o jesuíta crioulo que virou santo e o feiticeiro guarani perseguido e desterrado, são figuras singulares e deslizantes do universo colonial que escapam a uma tentativa de classificação: um como modelo de evangelizador, o outro como modelo de resistência indígena. Eles traduzem o jogo de interesses dos dois lados, as negociações e as fusões de horizontes simbólicos, que presidiu o colonialismo, quer sob o signo do conflito quer da conciliação. A morte do padre Roque é um acontecimento de enorme apelo simbólico que revela as incertezas, as angústias, as aproximações e as diferenças irredutíveis de ambos os lados do encontro. Por isso mesmo é um acontecimento que nos abre inúmeras possibilidades de interpretação sobre um tema já bastante visitado pelos historiadores.