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sábado, 29 de fevereiro de 2020

NEM “REVOLUÇÃO”, NEM “MOVIMENTO DE 1964”: FOI G O L P E.


NEM “REVOLUÇÃO”, NEM “MOVIMENTO DE 1964”: FOI G O L P E.



A situação política do Brasil é preocupante. Mais uma vez, em nome da democracia, atropelam-na sem constrangimentos. Fala-se abertamente no fechamento do Congresso e do STF e se referem ao tempo da ditadura como uma idade heroica e de ouro, quando o suposto perigo comunista foi varrido do Brasil. O presidente da república, o chanceler e um ministro do STF declararam recentemente que a tomada do poder pelos militares em março de 1964 não foi golpe. As declarações foram públicas e sintonizadas com o relativismo histórico peculiar (porque meramente opinativo) de setores da classe média, do empresariado e de alas das forças armadas, que se populariza no Brasil do WhatsApp.

Não sou avesso às revisões históricas, muito menos à reformulação ou ao questionamento dos conceitos e noções que explicam acontecimentos do passado. Pelo contrário. As demandas e as novas perspectivas do presente exigem dos historiadores e dos cientistas sociais, de tempos em tempos, uma reavaliação rigorosa dos seus pressupostos, categorias e a proposição de novos ângulos de observação que nos permitam um olhar mais amplo e matizado sobre o passado. Sem isso, corremos o risco de naturalizar conceitos e absolutizar certas interpretações. Revisão, no entanto, não pode ser confundida com relativismo conveniente. É preciso ter muito cuidado, especialmente quando o tema revisto mexe com questões ainda muito vivas na sociedade brasileira, como o golpe de 64 e a subsequente ditadura civil-militar. Opinar irresponsavelmente para plateias volúveis e leitores desinformados sobre assuntos delicados é colocar a bola na marca do pênalti para aventureiros oportunistas e milícias digitais.


“Movimento de 1964”

Em outubro de 2018, numa palestra na Faculdade de Direito da USP sobre os 30 anos da Constituição de 1988, o ministro do STF, Dias Toffoli, expôs sua mais recente convicção: “Hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro à movimento de 1964”.

Toffoli não detalhou nem fundamentou as razões da mudança de posição. Apenas disparou-a na direção da plateia. Neste caso, estamos diante de um relativismo inconsequente, baseado no mero achismo. Não se trata de uma revisão séria do passado, com base em pesquisas e estudos.

Uma afirmação como esta - no momento delicado que estamos vivendo, com a ascensão política de militares abertamente identificados com a intervenção de 1964, apoiados por setores expressivos da classe média e do empresariado - pode ser lida de duas maneiras: Toffoli está sendo ingenuamente inoportuno e irresponsável (o que me parece mais provável) ou manifesta uma tendência política em conformidade com o conservadorismo antidemocrático em voga.

O ministro atribui a mudança de perspectiva ao aprendizado que teve com o ministro da Justiça do governo Temer, Torquato Jardim. No caso do Torquato, o emprego da terminologia “movimento” tem um que de auto-absolvição. Ele exerceu inúmeros cargos e funções nas décadas de 1970 e 1980, sob os governos Médici, Geisel e Figueiredo. Entre outras ocupações, foi chefe do Gabinete Civil da Presidência da República durante o governo do general João Figueiredo. Assumir que houve um golpe que resultou numa ditadura é admitir que prestou serviços importantes para um regime ilegítimo e anticonstitucional.

Ainda que entendamos que se trata apenas de uma visão (inoportuna) do ministro sobre os acontecimentos, a situação é mais delicada. A posição que ocupa exige dele mais cuidado com certas afirmações e um olhar mais acurado sobre o passado recente. Na sequência do discurso, Toffoli detalhou um pouco mais o argumento: “Os militares foram um instrumento de intervenção. Se algum erro cometeram foi de, ao invés de serem o [poder] moderador, que, em outros momentos da história, interveio e saiu, eles acabaram optando por ficar, e o desgaste de toda a legitimidade desse período acabou recaindo sobre essa importante instituição nacional que são as Forças Armadas, também responsáveis pela nossa unidade nacional.”

Se algum erro cometeram”, ministro? O senhor tem alguma dúvida? E o erro, se é que foi cometido, foi o de “ficar” no comando político do país? Só isso? A tomada do poder pela força das armas foi acertada? A violência de estado, a derrubada de um presidente democraticamente eleito, as perseguições políticas, a censura, os expurgos das instituições, as torturas, nada disso, na sua avaliação, pode ser visto como erro?

Chamar o Golpe de “movimento” é descaracterizar a violência política que o presidiu, atenuar o caráter disruptivo da ação dos militares e relativizar o ataque à Constituição (Logo ele, um juiz, num evento sobre a Constituição). A ideia de “movimento” empresta certa legitimidade à intervenção de 64 e tira das costas dos militares o peso e a responsabilidade pelo que se fez.

A opinião do ministro não espelha um novo olhar, que nos ajuda a entender melhor o que aconteceu há 50 anos. Não conheço as intenções do ministro, mas a declaração, da maneira como foi dada, e observando o momento político do país, acaba por reforçar os argumentos em favor de uma nova intervenção das forças armadas. É um flerte público com a indecência.

A terminologia “movimento” absolve os militares e reforça, mesmo que não seja esta a intenção, a versão de que a intervenção foi necessária. Aliás, o conteúdo do discurso de Toffoli tem um indisfarçável tom de absolvição. A ideia de que “os militares foram um instrumento de intervenção”, sobre os quais recaiu todo o ônus, é quase um pedido de desculpas às forças armadas por terem sido levadas pela pressão que vinha da sociedade a intervir e, posteriormente, arcarem sozinhas com a culpa. No limite, o argumento infantiliza as forças armadas e as transforma num joguete de forças políticas mais consistentes.

Pare reforçar seu ponto de vista, Toffoli citou o historiador Daniel Aarão Reis Filho e sugeriu que, na época, tanto a esquerda quanto a direita conservadora tiveram a conveniência de não assumir seus erros que antecederam 1964, passando a atribuir os problemas aos militares. De acordo. Mas isso não é argumento para sustentar que não houve um Golpe.

O apoio que Toffoli foi buscar no Daniel Aarão foi indevido e equivocado. O próprio historiador o desacreditou. Segundo Aarão: “foi muito infeliz da parte dele dizer que abandona a terminologia ditadura, que expressa perfeitamente o estado de exceção que se passou no País, para assumir um outro conceito. Vindo da parte de um juiz, presidente do STF, é uma coisa que provoca espanto. Eu estou estarrecido de ver um juiz, que deveria ser o guardião da lei, relativizando o desrespeito à lei”. Aarão foi ainda mais incisivo: “Toffoli imagina amaciar a extrema direita com acenos conciliadores”.

A ideia de “movimento” só é possível se considerarmos que houve manifestações em favor de uma intervenção militar, que levaram ao Golpe e, consequentemente, à ditadura. Os anos anteriores a 64 foram de fato marcados por articulações políticas, explicitas e veladas, passeatas e apelos à intervenção dos quarteis. A confluência destas manifestações, civis e militares, que poderíamos caracterizar como um movimento, levou ao Golpe. Uma coisa não elimina a outra. Os termos (movimento e golpe) não são excludentes. Enfatizar o “movimento” e descaracterizar o golpe, como fez Toffoli, é uma escolha política desamparada de estudos sérios.

O nome correto, portanto, para a intervenção militar de 64, com apoio de parte da sociedade civil, é GOLPE. Ainda que o governo do presidente João Goulart não agradasse aos militares, à classe média, à igreja e a setores da imprensa e do empresariado, a ação dos militares foi um ataque direto à democracia e a Constituição. Havia de fato um movimento pela renúncia ou deposição do presidente, orquestrado pela mídia, principalmente o jornal carioca Correio da Manhã que, por meio de sucessivos editoriais às vésperas do golpe, atacando o governo de Jango, construiu o caminho para a legitimidade da ação militar. Num dos editoriais mais famosos e inflamados, intitulado “Basta”, estampava-se o apelo: “O Brasil já sofreu demasiado com o atual governo. Agora basta!” De mãos dadas com o jornalismo lacerdista, a igreja católica, na linha de frente do golpismo, distribuía livrinhos anticomunistas nas missas, demonizando a esquerda e alertando para o perigo que estava a caminho. Este material, que circulou fartamente em todo o Brasil, muito contribuiu para a histeria anticomunista que precedeu e, em larga medida, legitimou socialmente o Golpe. Mas nada disso autoriza dizer que não houve um Golpe. Jango fora eleito democraticamente pelo voto popular e ocupava a cadeira presidencial, conforme mandava a Constituição, por conta da renúncia de Jânio Quadros. Depor o seu governo sem um fundamento constitucional foi um Golpe de Estado. E não se trata de simpatia ou antipatia pelo Jango. Trata-se de precisão conceitual e da utilização da terminologia correta, do ponto de vista da ciência política. Se o governo desagradava tanto, havia uma solução democrática para “depô-lo”: as eleições presidências marcadas para 1965.

Norberto Bobbio, filósofo político e historiador do pensamento político, defensor da democracia social liberal, crítico de Marx, do bolchevismo e do fascismo, nos ajuda a colocar os pingos nos is. “Na maioria dos casos”, diz Bobbio, “o Golpe de Estado moderno consiste em apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante uma ação repentina, que tenha uma certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física”. O golpe militar, ou pronunciamento, segundo palavra cunhada pela tradição espanhola, tornou-se, na segunda metade do século XX, a forma mais frequente do Golpe de Estado.

O que aconteceu em março de 64 foi um golpe perpetrado pela direita golpista, que no Brasil nunca conviveu bem com a diferença política. Direita e esquerda, naquele contexto, não eram nada democráticas. A diferença é que a esquerda não tinha força e não tinha base popular para uma revolução do tipo socialista. Politicamente, a esquerda era pouco expressiva, embora bastante ativa nos meios estudantil, sindical e cultural. A suposta esquerdização do governo Jango foi a desculpa (ou farsa) que as forças golpistas ofereceram para justificar uma intervenção para “salvar” o Brasil do perigo comunista (naquele momento, representado pelas reformas de base do governo Jango). Um parêntese (Sobre a acusação falaciosa de que Jango transformaria o Brasil numa nova Cuba, vale a pena ler as declarações de sua esposa, Maria Thereza Goulart, numa entrevista à Paula Sperb, da Folha de São Paulo. Em resposta à pergunta sobre a implantação de um regime comunista no Brasil, Maria Thereza respondeu: “Imagina, comunista! Nunca passou pela cabeça dele. Ele vem de uma família extremamente católica, uma família bonita, dedicada, muito católicos. Era uma coisa que não tinha explicação. Não tinha nada de comunista.” Jango era um rico fazendeiro, nacionalista e desenvolvimentistas, que, a exemplo de outros políticos da época, como JK, recebeu apoio dos comunistas. No comício das reformas de base, Maria Tereza, quando viu as bandeiras vermelhas na multidão, disse ao então ministro da educação Darcy Ribeiro: “São muitas bandeiras vermelhas. Isso não é coisa boa!”).
No Brasil de 64 e no Brasil de hoje, a tática empregada pela direita farisaica é a mesma: acusar de comunistas e esquerdistas todos os que discordam de suas visões conspiratórias e se opõe ao seu projeto fascista e autoritário.
Menos de um mês depois do discurso pronunciado na USP, Toffoli tropeçou na própria fala. Em reação ao vídeo desastroso de Eduardo Bolsonaro, sugerindo que um soldado e um cabo eram suficientes para fechar o STF, disse que “atacar o judiciário é atacar democracia”. De acordo, ministro. Então não custa lembrar que o ataque à democracia promovido pelo golpe de 64 também atingiu duramente o STF. Dois casos se tornaram celebres e emblemáticos: “o caso das chaves” e o da “lei da mordaça”. Assim que tomou posse, Castelo Branco fez uma visita de “cortesia” ao STF. Era uma tentativa de enquadrar o Tribunal nas diretrizes e orientações “da revolução”. A resposta do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do STF, foi corajosa e exemplar. Disse que o Tribunal não deveria seguir nenhuma ideologia revolucionária, sobretudo um golpe. Diante da resposta de Castelo Branco de que quem mandava era o Executivo, Ribeiro da Costa retrucou que se algum ministro fosse cassado, ele fecharia as portas do Tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do palácio. As coisas não ficaram apenas nesta troca dura de palavras entre o ministro e o presidente. Castelo Branco não cassou os ministrou, mas, por meio do AI2, em outubro de 1965, aumentos de 11 para 16 o número de magistrados e nomeou 5 ministros, alinhados com o regime. Pretendia com este gesto ter a maioria dos juízes a favor do governo. Em 1967 nomeou Adaucto Lucio Cardoso, para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria de Ribeiro da Costa. Mas o tiro saiu pela culatra. No governo Médici, foi aprovado pelo Congresso o decreto-lei 1.077, de março de 1971, que trazia para o ordenamento jurídico brasileiro a censura prévia de qualquer livro que se desejasse publicar (A fiscalização dos escritos ficaria a cargo da Polícia Federal). O decreto, no entender da oposição, e do MDB, era inconstitucional e atentava contra a liberdade de expressão. Muito apropriadamente, a norma ficou conhecida como “lei da mordaça”. Acionado, o STF informou que não se intrometeria nos assuntos da “revolução”. Na sessão que examinaria a reclamação da oposição, Adaucto Cardoso, o ministro indicado por Castelo Branco, levantou-se inconformado, tirou a toga e anunciou que não voltaria mais ao Tribunal. Em seguida, o ministro solicitou a aposentadoria. Adaucto dava uma lição de autonomia e inconformismo aos seus pares que, se comportando como rebanho ilustrado, abaixavam docilmente a cabeça para a truculência da ditadura. O STF, criado para ser o guardião da Constituição, havia se tornado um “enfeite institucional” (expressão utilizada por Ivan Furman), inútil e indecoroso. Toffoli deveria se espelhar nas lições de independência de Álvaro Ribeiro e Adaucto Cardoso e não nos ensinamentos duvidosos de Torquato Jardim.


A “revolução de 64”.

Tão equivocado quanto o conceito de “movimento” é o de “revolução”. Os militares golpistas chamavam, e continuam chamando, o golpe de 64 de “revolução redentora”, ou contrarrevolução, argumentado que havia uma revolução socialista em curso. Apoiadores civis, como Roberto Marinho, também denominavam o golpe de revolução. No editorial do jornal O Globo, em março de 1984, por ocasião dos 20 anos do golpe, o jornalista deixou o seguinte testemunho: “Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada.”]

Em nenhum sentido podemos afirmar, a não ser por conveniência, que os militares, apoiados pelos civis, foram protagonistas de uma “revolução”. Nem o movimento que levou ao golpe nem os desdobramentos do golpe foram revolucionários. Um golpe na democracia, que encurralou o país numa ditadura vergonhosa e criminosa que durou 21 anos, não pode ser chamado de revolução. A bem da verdade, o Brasil retrocedeu, tropeçou na democracia e deixou para o futuro, para a nossa cultura política, uma herança de violência, autoritarismo e impunidade com a qual nos defrontamos hoje (O bolsonarismo é herdeiro do que de pior o golpe de 64 legou para o Brasil). Chamar o golpe de 64 de revolução, a exemplo do que se fez com o golpe de 1930, consagrado até hoje na historiografia como “Revolução de 1930”, é uma tentativa de conferir legitimidade à ação truculenta de derrubada de governos pela força das armas, característico da instabilidade política brasileira (Mas é importante destacar que o golpe de 1930, diferentemente do golpe de 64, abriu caminho para mudanças sociais e políticas significativas no Brasil. A legislação trabalhista, o projeto nacional baseado na industrialização e o sepultamento das práticas políticas da república oligárquica, são alguns exemplos das transformações, revolucionárias do ponto vista político e sociológico, que modernizaram o país, ainda que de forma autoritária).

O argumento da contrarrevolução é ainda mais vazio. Nem de longe havia uma revolução em curso no Brasil, para admitir uma contrarrevolução. As reformas de base propostas pelo governo de João Goulart visavam o desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. O apoio que Jango recebia de parte da esquerda não fazia do seu governo um governo com tendências socialistas. Era um apoio estratégico que tinha a ver com as expectativas da esquerda, não de Jango. Além disso, as forças de esquerda no Brasil, naquele momento, não tinham a força e a articulação que a cabeça conspiratória dos militares e dos grupos civis anticomunistas imaginavam. Não passava de paranoia anticomunista. A mesma paranoia que vimos renascer recentemente e que embalou a eleição de Jair Bolsonaro. Naquela época, a estrutura de poder mundial conhecida como guerra fria explicava, de alguma forma, a histeria anticomunista. Hoje, não passa de conspiracionismo requintado, de charlatanice. Para o delírio dos fanáticos, vamos lembrar a ironia mordaz do velho Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Pegando carona na sacada de Marx, e modelando-a à nossa tragicômica paróquia, diria que farsescamente o presidente Jair Bolsonaro declarou, às vésperas do 55º aniversário do golpe, que o exército deveria comemorar a tragédia política de 64.

Otávio Rêgo Barros, porta voz da presidência, explicou a posição do presidente: “O presidente não considera 31 de março de 1964 o golpe militar. Ele considera que a sociedade reunida, e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que, salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém. E o presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo uma Ordem do Dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”.

Nenhuma surpresa em relação a Bolsonaro. Se até o presidente do STF suavizou a intervenção dos quartéis em 64, o que esperar de um presidente da república que se declara publicamente admirador do coronel Ustra, um torturador covarde que foi condenado duas vezes pela justiça brasileira!

Sob o efeito da declaração da presidência, o vice-presidente e um empresário bolsonarista realimentaram a retórica anticomunista. Hamilton Mourão disse que as celebrações do 31 de março deveriam ter um tom conciliador. “O que vai ser feito em termos de ordem do dia vai ser algo muito conciliador, colocando que as Forças Armadas combateram o nazi-fascismo, combateram o comunismo e isso é passado, faz parte da história”. Luciano Hang, dono da Havan, costuma dizer que se lançou nas redes sociais para evitar que o Brasil se torne um país comunista/socialista. A fala do Mourão é previsível, e o tom moderado e conciliador, adotado já nos primeiros dias do governo, é o de quem sabe, ou presume, que a presidência pode, mais cedo ou mais tarde, cair no seu colo. Mourão é um defensor da velha guarda dos militares de 64, e já foi mais inflamado nas suas declarações. Na condição de vice-presidente, atento aos efeitos políticos da polarização, que tornou Bolsonaro refém das próprias falas, soube adaptar seu discurso aos novos tempos. O caso de Luciano Hang é um pouco mais sério. O empresário, popular nas mídias sociais, se julga numa cruzada heroica, do bem contra o mal, típica dos fanáticos maniqueístas, contra o fantasma do comunismo, tema que ele demonstra desconhecer profundamente. Popular e desinformado, misto de empresário bem-sucedido com macartista fora de época, tornou-se uma celebridade proferindo discursos rasos e espalhando bobagens nas redes sociais. Hang é figura emblemática do bolsonarismo. No twitter, o empresário manifestou-se pela comemoração das vitórias contra o comunismo, em 1964 e em 2018, e negou que tenha havido um golpe em 64: “Jamais o Brasil irá reconhecer o que nunca ouve. Sem os militares o país seria uma Cuba desde 1964. Viva os militares que venceram os guerrilheiros”. Daqui alguns anos, quando estes tempos tiverem passado, ele será lembrado como figura caricata e folclórica do conservadorismo truculento, autoritário e vazio de ideias que ameaçou a jovem democracia brasileira.

A mais recente declaração de que não houve golpe em 1964 foi a do chanceler Ernesto Araújo. Em audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, em 27 de março de 2019, em resposta à pergunta sobre à orientação dada pelo presidente Jair Bolsonaro para que os quartéis celebrassem o 31 de março, Araújo disse: “Vossa Excelência me perguntava se eu considero 1964 um golpe. Eu não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida disso. Essa é minha leitura da história”.

Araújo, como alguns militares, tem uma visão salvacionista e patriótica da intervenção militar. Mas o curioso é que o “movimento” que deveria salvar o Brasil de uma ditadura, meteu o país numa ditadura que durou 21 anos. A “leitura da história” do ministro não passa de conveniência que ajusta o passado histórico às suas convicções políticas. É uma simples rejeição do que ele, equivocadamente, considera ser uma interpretação de esquerda.

Para o chanceler, e para esta turma patriótica que quer celebrar o 31 de março, ditadura mesmo só em Cuba e na Venezuela. É uma “leitura da história” bem conveniente, com dois pesos e duas medidas, avaliada com base numa moral dupla (O que vale lá para fora não vale aqui dentro).

Deixo com os ministros do STF e das Relações Exteriores, e com os “patriotas” de plantão, convertidos ao bolsonarismo, a lição de Rui Barbosa, que não praticava a moral dupla. Entre 1893 e 1895, Rui combateu energicamente o militarismo dos tempos de Floriano Peixoto. Numa polêmica com o militar autoproclamado “patriota” Carlos Sampaio, Rui lembrou que: “todos os violentos fizeram sempre, a seu favor, monopólio do patriotismo. Todos eles têm o privilégio tradicional de patriotas por decreto próprio e patriotas com exclusão dos que com eles não militam”. Como não era um patriota de ocasião, nem adulador de ditadores, Rui teve que exilar-se em Buenos Aires por dois anos, até o furacão florianista passar.

Rui não era contra o exército. Era contra a presença do exército na política. E chamou esta intromissão de militarismo. Para Rui, analogamente, “o militarismo está para o exército, como o clericalismo para a religião, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a monarquia, como o demagogismo para o governo popular, como o egoísmo para o eu”.

Nossa república nasceu sob o signo do militarismo. Foi o nosso pecado político original. A sucessão de golpes perpetrados pelos militares (1889, 1930, 1937 e 1964) parece não deixar dúvidas de que o militarismo paira sobre a república como uma sombra tutelar. Por isso, nos dias que correm, com o STF na mira do conservadorismo bolsonarista, que marcha “patrioticamente” pelas ruas, aliado à pior linhagem evangélica e aos setores golpistas e militaristas do exército, é bom tomar cuidado com o que se diz sobre o passado. Absolver o golpismo da forma como Toffoli fez abre uma porta perigosa para certos “movimentos” do presente. Militares pouco afeitos à democracia, que acumulam cargos no governo, podem se sentir muito à vontade e encorajados a manifestar seu desprezo pelas instituições democráticas (Como fez recentemente o general Heleno, mandando um “foda-se” ao Congresso).

Em certos momentos, senhor ministro, guardar silêncio é uma grande virtude. Declarações inconsequentes e infundadas ajudam a normalizar o absurdo e autorizam pronunciamentos, como o do filho do presidente, que ressuscitam instrumentos pavorosos, como o AI5, para ameaçar e silenciar a oposição.



      
          Mensagem compartilhada pela rede bolsonarista do WhatApp.


Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986.
CHAGAS, Carlos. A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe (1964-1969). Editora Record, 2014.
D´ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Célio. Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Relume Dumará, 1994.
FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Editora Record, 2004.
FILHO, Daniel Aarão. Entrevista ao El País. Neste endereço: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538497133_463693.html
MACHADO, Juremir. 1964: golpe midiático-civil-militar. Editora Sulina, 2014.
MARINHO, Roberto. Editorial do jornal O Globo de 1984.
RECONDO, Felipe. Tanques e Togas: o STF e a ditadura militar. São Paulo: Cia das Letras, 2018.







sábado, 11 de maio de 2019

OS PODERES DA INVISIBILIDADE E OS DILEMAS DO SUJEITO ÉTICO: DO ANEL DE GIGES AO SENHOR DOS ANÉIS.


Os poderes da invisibilidade E OS DILEMAS DO SUJEITO ÉTICO: do Anel de Giges ao Senhor dos Anéis.


Quem já não se imaginou, por diferentes razões, dominando a técnica ou o poder da invisibilidade? Nas minhas fantasias de menino desejava me tornar invisível para apanhar bergamotas, peras e butiás no pomar de um velho beberrão da vizinhança, que tinha uma arminha de pressão para derrubar chumbo e sal na molecada invasora. Era difícil enganá-lo. O sujeito parecia invisível. Do nada ele aparecia e atirava sem dó. Eu nunca fui atingido, mas alguns amigos não tiveram a mesma sorte e foram feridos nas pernas. Imaginávamos que o homem fosse um bruxo, com uma bola de cristal, capaz de adivinhar as nossas intenções e se antecipar. Nem dos galhos carregados que pendiam para fora dos muros podíamos apanhar os frutos. Para alcançar os galhos tínhamos que subir no muro. E aí começavam os problemas.

Michel de Certeau nos ajuda a decifrar os segredos do cobiçado pomar e da incansável luta para defendê-lo ou invadi-lo. Nada de bruxaria e bolas de cristal. A invisibilidade do vizinho era estratégica; ficava escondido, longe do nosso campo de visão, para pegar-nos de surpresa. Conhecia o terreno, se posicionava bem, e cobria vários ângulos ao mesmo tempo. A nossa, era tática. Inventávamos mil maneiras de entrar no pomar sem sermos vistos. Dividíamos as funções: enquanto uns chamavam a atenção na parte da frente do terreno, outros subiam no muro na parte de trás. Agíamos à tardinha, certos de que a pouca claridade nos favoreceria. Era um jogo de gato e rato. O vizinho, na defesa dos seus domínios, montava as armadilhas; nós, com molecagens astutas, procurávamos driblá-las. Quem conseguisse ficar sem ser visto levava a melhor. Mas o jogo podia mudar no dia seguinte. Para nós era uma brincadeira, ligeiramente perigosa, que, se bem-sucedida, poderia render bons frutos. Para ele talvez também fosse. O velho era solitário, não recebia visitas e bebia o dia inteiro. Dá para imaginá-lo de tocaia, paciente, bebericando alguma coisa para calibrar a mira, à espera dos endiabrados adversários! Acho que os belos pés de frutas eram apenas chamarizes para atrair a gurizada e se exercitar no tiro ao alvo.

Quando o velho morreu, perdemos o interesse pelo pomar. A brincadeira perdeu a graça. O lugar ficou abandonado durante anos e nós raramente subíamos no muro para apanhar frutas. No começo dizíamos que o fantasma dele estava lá, rondando, vigilante e invisível, para espantar os intrusos. A imaginação infantil, estimulada pelos causos de assombração que ouvíamos dos adultos, até que rendeu bons sustos. Mas logo perdeu a graça também. Nosso valoroso e respeitado adversário não merecia ser reduzido a uma triste e vingativa assombração. Acho que por esta época meu interesse pelas frutas foi diminuindo à medida que aumentava meu interesse pelas meninas. Tímido, e nada descolado, desejava me tornar invisível para saber o que as gurias da rua de cima falavam sobre nós, sobre mim. Evitaria o constrangimento de um não. A invisibilidade seria a arma secreta perfeita contra os terríveis dramas da insegurança adolescente.

Minha referência de invisibilidade era o seriado estadunidense “O Homem Invisível”, com 13 episódios, de 1975, que estreou no Brasil em 1978. Os efeitos especiais, empregando a técnica de chroma key, eram de arrasar. Basicamente, eliminava-se o fundo de uma imagem para isolar, ou descontextualizar, personagens ou objetos de interesse que, posteriormente, seriam combinados com outra imagem de fundo (A técnica é usada hoje, por exemplo, nos programas de previsão do tempo, na televisão). No seriado, era possível criar a ilusão do telefone que flutuava e das portas que se abriam sozinhas. Para a época eram efeitos extraordinários!

Tanto o seriado quanto os filmes de 1933, de 1940 e de 1958, foram inspirados na obra O Homem Invisível, de H. G. Welles. Nos filmes, o homem invisível era um assassino. No seriado, Daniel Westin, o cientista que descobriu a fórmula da invisibilidade, tornou-se herói. Quando percebeu que suas descobertas seriam utilizadas pelos militares para fins bélicos e políticos, usou o poder que descobriu para destruir o equipamento e a fórmula, para que ninguém pudesse utilizá-las para outros fins. Daniel Westin foi um dos meus heróis da infância. Eu queria ser o Homem Invisível (Embora meus propósitos não fossem tão elevados).

A ideia de tornar-se invisível e desfrutar dos privilégios da invisibilidade ocupa a imaginação humana há mais de três mil anos. O tema atravessa os tempos, perpassa diferentes culturas, com diferentes significados, e é recorrente nas diversas expressões humanas: está presente nas narrativas míticas, na filosofia, na literatura e nas narrativas cinematográficas, graças às quais o tema sobreviveu até os dias de hoje. Parece-me um exercício oportuno, de fundo ético e histórico, perceber os diferentes sentidos atribuídos à invisibilidade e refletir sobre o que faríamos se pudéssemos fazer o que bem entendêssemos sem ser vistos ou descobertos.

Como a invisibilidade não depende da vontade humana, ela é adquirida, nas diferentes narrativas, por meio de objetos divinos (o capacete de Hades), de objetos mágicos (anéis), de acidentes cósmicos (a mulher invisível do Quarteto Fantástico) ou de experiências científicas clandestinas (O Homem Invisível).

Uma das narrativas mais antigas e conhecidas é o mito de Perseu. O herói, que se lançou na missão de trazer ao rei Polidectes a cabeça da terrível Medusa, ganhou de presente das Ninfas o capacete de Hades, que assegurava a invisibilidade para quem o portasse. O capacete fora um presente dos Cíclopes a Hades, uma arma poderosa para ser usada na guerra contra Cronos (A Titanomaquia, a guerra do Titãs, liderados por Cronos, contra os deuses Olímpicos). Sem ser visto, Hades desarmou Cronos enquanto Posídon e Zeus se encarregaram de derrotar o Titã. A etimologia de Hades - á (a - não) e ’ideîn (idêin - ver) - faz referência à invisibilidade (não visto), tanto do deus quanto do reino subterrâneo que preside (o reino dos mortos).


De posse do capacete de Hades, Perseu pode se aproximar da Medusa sem ser notado. Decepou a cabeça do monstro e a guardou prudentemente numa bolsa especial, que também ganhara das Ninfas (Um alforje conhecido como quíbisis). A invisibilidade era uma dádiva dos deuses para o filho mortal de Zeus. O privilégio era para poucos. Foi assim que Perseu pode cumprir sua imprudente promessa a Polidectes e, no seu papel de herói, tornar a terra (Geia) um lugar menos perigoso de se viver. Havia um monstro a menos no mundo.

A Tentação dos Anéis Mágicos

Do mito, passamos à filosofia, embora sem abandonar a narrativa mítica. Platão, no Livro II da República, nos apresenta Giges, um pastor que servia na casa do soberano da Lídia. Glauco, irmão mais velho de Platão, debatendo com Sócrates o tema da Justiça, usa o caso de Giges para ilustrar um argumento sobre dar aos homens, justos e injustos, o poder de fazer o que quisessem. O que fariam eles? Uma grande tempestade e um tremor de terra, conta Glauco, abriu uma fenda no solo, onde Giges apascentava o rebanho. Admirado, desceu pelo buraco e viu um cavalo de bronze oco, dentro do qual encontrou um cadáver, provavelmente de um gigante, que trazia um Anel de ouro na mão. O pastor se apossou do Anel e retornou à superfície.

Numa reunião com o Rei, para comunicar sobre os rebanhos, como era habitual, Giges, com seu Anel, sentou-se ao lado dos pastores. Ao girar distraidamente o engaste do Anel tornou-se invisível e pode ouvir o que os outros falavam sobre ele. Surpreso, girou o engaste na direção contrária e voltou a ser visível. Experimentou novamente, para se certificar do poder no Anel. Cheio de si, fez-se delegado de um grupo de pastores que se reuniriam com o Rei para prestar contas das ovelhas. Lá chegando, seduziu a esposa do soberano e, com sua ajuda, matou-o e tomou o poder.

O mito encerra algumas lições. Na imaginação filosófica de Platão a narrativa da invisibilidade serve de pano de fundo para refletir sobre a justiça. Ponderando sobre a postura de Giges, Glauco concluiu que, se houvesse dois anéis, e um fosse colocado no dedo de um homem justo e outro no dedo de um injusto, nenhum dos dois seria suficientemente inabalável que permanecesse no caminho da justiça e fosse capaz de resistir à tentação de se apossar do que não era seu. A fronteira entre o que é justo e injusto se dissolveria como num passe de mágica. Dispondo de um grande poder, e certo da impunidade, o ser humano se comporta como se fosse um deus. Ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, sentencia Glauco. Não existe uma moral essencial que habita, desde sempre, as profundezas ontológicas do ser! Tudo não passa de um jogo de convenções e aparências. O Anel da invisibilidade derrubaria a máscara das convenções e faria emergir a amoralidade constitutiva da natureza humana, que se esconde sob o véu das obrigações morais.

Glauco, segundo o filósofo francês André Comte-Sponville, quer provar que o justo e o injusto, o bom e o mau, ambos, conduzidos pelo desejo, perseguem o mesmo fim, divergindo apenas pela escolha tática dos meios. O Anel mágico, dispensando quem o usa de toda e qualquer preocupação tática, tornaria os fins visíveis à luz do dia. O Anel de Giges é um espelho singular, que reflete e escancara os nossos vícios.

Giges era um pastor da Lídia. Hoje, poderia ser qualquer um, cada um de nós - um médico, um professor, um pedreiro, um homem, uma mulher -, que teve a sorte ou o azar de encontrar um Anel mágico. Todos nós, segundo Glauco, seríamos profundamente abalados e modificados pelo poder da invisibilidade. Nossos comportamentos morais desapareceriam e, longe do alcance dos julgamentos alheios, atenderíamos apenas ao chamado, sem freios, do nosso desejo.

Sócrates, herói trágico de Platão, demonstrará, de forma magistral, que a justiça é mais vantajosa que a injustiça, e em si mesma o maior dos bens. Giges encontrou o Anel, trapaceou e se tornou Rei. Se Sócrates tivesse encontrado o Anel, teria continuado a ser o velho e virtuoso Sócrates? Para Platão sim. É a sua aposta da moral (André Comte-Sponville. Viver: O mito de Ícaro. 2º volume). O Anel é um espelho singular, que pode também realçar nossas virtudes. É o espelho do sujeito ético. O discurso e os exemplos de Glauco são eloquentes, tentadores e convincentes. É isca atraente lançada em bom anzol. Porém, a contra argumentação serena, mas incisiva, de Sócrates, demonstrando pacientemente as fragilidades do discurso do interlocutor, o põe por terra. No horizonte filosófico de Platão haviam essências a serem encontradas e cultivadas. Para além das opiniões e das convenções, havia uma moral essencial, ideal, que a filosofia (como meio) poderia acessar. Sócrates, o homem mais justo e sábio que Platão conheceu (Carta Sétima), era a encarnação deste ideal. Sócrates preferiu morrer a usar o Anel da invisibilidade (o plano de fuga preparado pelos amigos) para escapar sorrateiramente da prisão.

Da imaginação filosófica, passamos à imaginação literária e cinematográfica. Na saga épica o Senhor do Anéis, os Hobbits Bilbo e Frodo, da linhagem dos bolseiros, carregam um pesado fardo: guardar o “Um Anel” do Poder. Bilbo, nas aventuras que viveu ao lado do mago Gandalf e dos Anões, encontrou o “Um Anel”, forjado por Sauron na Montanha da Perdição, em Mordor, que outorgava enormes poderes para quem o portasse. Não era um Anel qualquer. Era o Anel Mestre, forjado com o propósito de dominar e governar os outros Anéis. Os versos, conhecidos na tradição élfica, que Gandalf diz a Frodo, resumem a história dos Anéis:

“Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para os Homens Mortais fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.”

Bilbo guardou o “precioso” objeto por 60 anos na sua casa, no Condado dos Hobbits, e se manteve imune à tentação, embora tenha se afeiçoado a ele. O Anel lhe trouxe longevidade e, aos 111 anos, quando deixou o Condado para ir em busca de novas aventuras, deixou o objeto de estimação sob os cuidados do seu sobrinho Frodo, que também demonstrou incrível capacidade de resistir. Coube a Frodo a difícil missão de levar o Anel à Mordor para destruí-lo e evitar que Sauron o recuperasse para realizar suas ambições de poder. Apesar de ser tentado diversas vezes, e quase sucumbir, Frodo usou o Anel, como também o fizera Bilbo, para passar despercebido em situações difíceis, não ser capturado e ajudar seus companheiros a se livrar de perigosas enrascadas.


Com exceção dos Hobbits, que resistem virtuosamente aos poderes do Anel, a tentação de tomar o objeto desejado perturba os personagens ao longo da saga. Uns o desejam para conquistar o poder e impor a tirania sobre a Terra Média, outros, para se opor à tirania e defender o mundo dos humanos. Mas ninguém, mesmo que movido pelas melhores intenções, como era o caso de Boromir, teria força para resistir às tentações. O Anel, na saga de Tolkien, pode ser visto como uma metáfora sobre o que cada um de nós faria com um poder desses nas mãos e sobre os efeitos de um grande poder sobre nós.
Frodo, a certa altura da jornada à Mordor, cansado do pesado fardo, entregou-o espontaneamente a Galadriel, a Senhora de Lorién, o ser mais antigo, poderoso e respeitado da Terra Média, que o recusou temerosa do que poderia se tornar tendo-o em sua posse. Nem ela, nem Gandalf, nem Elrond, se sentiam fortes o suficiente para portarem o Anel e recusaram a sua posse. Ele conferia poderes proporcionais à estatura do seu portador. No que se tornaria Galadriel, transformada pela força corruptora do Anel? Mesmo desejando fazer o bem, como seria o caso destes três personagens, seria muito difícil não sucumbir às tentações do poder de a todos governar. Mas os pequeninos Bilbo e Frodo permaneceram inabaláveis e não cederam à tentação de usar os poderes mágicos para seus próprios fins. Se mantiveram os mesmos. A estatura, física e política, e a ética Hobbit, por assim dizer, os tornavam menos apegados e menos vulneráveis aos chamados do Anel. Eles representam, no universo mítico criado por Tolkien, a rejeição da tese de Glauco de que não haveria distinção entre um homem justo e um injusto, quando expostos a tamanho poder. A grandeza dos pequeninos Hobbits, contrastando com a fraqueza dos humanos, é a aposta da moral numa terra assolada pelos terríveis Orcs e pelas sinistras ambições de Sauron! O caráter e a integridade moral de Bilbo, Frodo e Sam, são postos à prova diversas vezes ao longo das duras e perigosas jornadas, e eles respondem com ações virtuosas, com gestos de coragem, de grandeza, de solidariedade, de amizade e de desapego. Frodo carrega o Anel, sofre física e psiquicamente com o peso da responsabilidade, mas não o faz esperando algum tipo de recompensa. Não busca a glória, perseguida pelos homens, e não se lança na jornada como um herói típico, que deseja ser lembrado no futuro. Seu heroísmo é silencioso, humilde, feito de pequenas e invisíveis atitudes. Ele assume a árdua missão de levar o Anel à Mordor porque pensa que este é o seu dever, a sua responsabilidade. A ética Hobbit é eudemonológica, é a ética das virtudes, que pode conduzir à felicidade natural, que parece predominar no mundo sem grandes ambições do Condado (Tão apreciado por Gandalf).


E você, o que faria de posse de um destes Anéis? Usaria para propósitos elevados, como os adoráveis Hobbits? Ou se entregaria aos caprichos dos poderes do Anel, como Giges, para tirar vantagens das situações e realizar os seus sonhos secretos e inconfessáveis?

De posse de um Anel mágico, nos tempos de criança, eu não teria dúvidas de onde e de como usá-lo. Hoje, dono do meu próprio e modesto pomar, e consciente dos direitos alheios e dos limites que a vida em sociedade impõe ao meu querer, eu o usaria em duas situações declaráveis: para passar despercebido em certas situações (sou um tanto avesso a eventos sociais e continuo sendo um menino tímido) e para descobrir o que minha cachorra faz quando saio de casa. O resto eu não conto. Não sou puro como um Hobbit, nem ganancioso como Giges.

domingo, 28 de outubro de 2018

USTRA IS THE NEW BLACK


USTRA IS THE NEW BLACK



É impressionante como em determinadas conjunções políticas perde-se completamente o senso de decência, de humanidade e ultrapassa-se perigosamente os limites do que é moralmente aceitável.  Em tempos assim, o grotesco sai dos cantos escuros e ganha o centro do palco e monstros são cultuados como heróis nacionais.

Você usaria uma camiseta com o rosto de um criminoso julgado e condenado? Existem limites éticos para a moda, para o vestir-se?

A moda não é apenas funcional e não se limita a proteger e vestir o corpo. É uma linguagem, um constructo social e cultural que projeta valores e afirma identidades individuais e/ou coletivas. É uma forma de estarmos e nos expressarmos no mundo. Nossas roupas dizem muito sobre quem nós somos.
O vermelho saiu de moda na política nacional. Desbotou, perdeu o brilho e foi engolido pela onda conservadora que varre as ruas e domina as correntes de WhatsApp. Estão em alta agora as tonalidades marciais e bélicas de verde e amarelo, que também marcaram as tendências em 1964 e em 1989.

A moda da próxima estação vai aos poucos se delineando. A família Bolsonaro é quem está ditando as tendências. O estilo é mais primitivo, autoritário, truculento, deselegante mesmo. Promete banir das ruas as camisetas com estampas do Che Guevara. Na guerra das camisetas, travada na political catwalk, autoritarismo se combate com mais autoritarismo (“Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse o Messias da costura “sem ideologia”).

Eduardo Bolsonaro, o deputado mais votado da história do Brasil, exibe orgulhoso a camiseta em homenagem ao coronel Brilhante Ustra. Vestindo um modelo básico,  estival e intimidador, o modelo apresenta uma tendência retrô, que resgata um passado sinistro e obscuro que, na versão prêt-à-porter bolsonariana, é anunciado como NOVO e RENOVADOR.

A moda promete revolucionar o guarda-roupa das “pessoas de bem”, das famílias e salvaguardar a inocência das crianças. Nada da porcaria afeminada, imposta pela “ideologia de gênero”, lançada por costureiros gays europeus (O gênero também saiu de moda!). A nova tendência da moda bolsonariana busca inspiração no DOI-Codi e no DOPS, exemplos de masculinidade hétero patriótica para fazer, de uma vez por todas, a moda virar à direita, nem que seja no pau-de-arara, na linha dura de Ustra, o estilista da tortura (Ustra foi condenado em 2008 pelo crime de tortura e teve a sentença confirmada em 2012. Bolsonaro o reabilitou na votação do impeachment em 2016. De lá para cá, o coronel foi transformado num ícone da moda política anti-esquerdista). 

Será que a moda vai pegar? Ou vai ser como aquela NOVA tendência lançada em 1989, que não chegou a terminar a estação? A maioria dos brasileiros vestiu a camiseta do “caçador de marajás”, os políticos pegavam carona na onda CoLLorida e todos entoavam em coro: eLLe é o  NOVO, é o NOVO. Menos de dois anos depois o novo havia se tornado muito velho. O preto ganhou as ruas e o CoLLorido saiu de moda. Foi nessa época que o jovem Messias se elegeu deputado e começou a costurar uma dinastia, de corte e estilo inconfundíveis.

Enfim, as semelhanças chamam a atenção, embora o estilo atual seja mais agressivo e militaresco.

Seja como for, passageira ou não, a ditadura está na moda e a tortura (visual) está de volta.



A ideia Brilhante de estampar o rosto do torturador nas roupas foi da marca Camisetas Opressoras, que as apresenta no seu site como “camisetas divertidas e personalizadas de direita”, moda “inspirada no Grande coronel Ustra”. A loja está lucrando com o terror, com a covardia e com o que de pior o nosso país já produziu (Tenho certeza que a direita democrática se sente horrorizada com o mal gosto das estampas opressoras).

Para os estilistas da Opressão tudo não passa de uma brincadeira divertida e lucrativa, que afirma uma identidade política. Para mim não. Minha consultora sobre a estética fascista e a moda totalitária, Hannah Arendt, diria que se trata, mais uma vez, da “banalização do mal”. Estamos de tal modo anestesiados pela violência que alguns grupos passaram a vesti-la. E vesti-la significa estimulá-la e praticá-la simbolicamente. O que poderia ser visto, num primeiro momento, como um protesto bem-humorado da turma que se identifica como “de direita”, é, na verdade, a mais completa trivialização da violência. A “banalidade do mal” é expressão do vazio de pensamento e da perda de sensibilidade. O terror virou moda!

Vamos ver até quando os valentões fashion e os opressores descolados vão vestir a camiseta do herói deles.

O catálogo da “moda opressora” é sortido e atende à todas as estações. Abaixo, os modelos de camisetas e moletons nas mais variadas cores e estilos. Vai do básico do dia-a-dia ao modelo patriótico-militar, recomendado para eventos cívicos e desfiles do sete de setembro, que ao que tudo indica voltarão a ser obrigatórios nas escolas (Escolas que, dependendo da vontade do Messias, adotarão um estilo e uma disciplina militar). Tem Ustra para todos os gostos.










Aprendam a diferença entre discordância de posições políticas e fanatismo político e a diferença entre democracia e apologia da tortura e nós voltamos a conversar.

Diga-me o que vestes que te direis quem és.


domingo, 19 de agosto de 2018

DUMBIER: O ELEFANTE PSICODÉLICO COM OLHOS DE LÚPULO, DE COQUEIROS.


DUMBIER: O ELEFANTE PSICODÉLICO COM OLHOS DE LÚPULO, DE COQUEIROS.


Outro dia o Eduardo (Dudu), um amigão que mora em Coqueiros (Florianópolis), me ligou: “Paulo, tô fazendo uma cerveja, uma New England IPA, e quero dar a ela o nome de uma música de uma banda de Rock. A cerveja é forte e encorpada. Tens alguma sugestão? ”. Não tive dúvidas: “Dudu, chama ela de Ace of Spades, do Motörhead ”.

Outro dia fui visita-lo em Coqueiros e degustamos a tal da cerveja. Não sou especialista na área para avaliar uma cerveja e muito menos para indica-la para alguém. Apenas gosto de beber e experimentar. Mas para o meu paladar, de apreciador de cervejas fortes e robustas, a Ás de Espadas do Dudu é uma baita cerveja! Me conquistou no primeiro gole. Ou antes, quando observei a cor, no meio termo entre o cobre e o dourado, a espuma densa, e senti o aroma forte do lúpulo. É uma cerveja deliciosa, descomplicada, uma IPA das boas, que desce fácil e anima a conversa. É forte e direta, como o som do Motörhead. Dudu soube valorizar a banda do Lemmy.

Dudu é um skatista das antigas, cervejeiro dos bons e um apreciador de boas cervejas. É dedicado, caprichoso, exigente, meticuloso, e faz cervejas porque gosta. É um cara de personalidade, e muito generoso, que empresta estas qualidades à cerveja que produz.

O elefante tem a ver com o apelido de infância do Dudu (Dumbo). Daí o nome da cerveja: DUMBIER, uma sacada do Rodrigo, amigo do Dudu e bebedor de cervejas.

A arte foi criação de uma menina de Coqueiros, vizinha do Dudu.

Se toparem com a DUMBIER, não hesitem: bebam, saboreiem. É uma ótima cerveja, produzida artesanalmente por um cara que sabe o que faz. Ao som do Motörhead, um rock and roll britânico clássico, direto, sem muita firula, a experiência fica ainda mais intensa!

Agora saiu uma leva de Double IPA. Estou curioso para provar.

Let´s drink?



terça-feira, 22 de maio de 2018

“EXECUÇÃO SUMÁRIA DE SUBVERSIVOS” ERA POLÍTICA DE ESTADO NO PERÍODO DE ABERTURA DO REGIME CIVIL- MILITAR, COMANDADA POR GEISEL E FIGUEIREDO.


“EXECUÇÃO SUMÁRIA DE SUBVERSIVOS” ERA POLÍTICA DE ESTADO NO PERÍODO DE ABERTURA DO REGIME CIVIL- MILITAR, COMANDADA POR GEISEL E FIGUEIREDO.

Geisel e Figueiredo

Existem várias zonas obscuras e lacunares na ditadura civil-militar brasileira que ainda precisam ser melhor conhecidas. Mas aos poucos, a cada descoberta, novas luzes vão sendo lançadas, pontos nebulosos vão sendo esclarecidos e alguns mitos vão desmoronando. Desta vez foi o mito do presidente moderado, que encaminhou o processo de abertura, que veio abaixo.

Ernesto Geisel, presidente militar que governou o Brasil entre 1974 e 1979, é visto, às vezes com certa simpatia, como o presidente que deu início ao processo de abertura (lenta, gradual e segura, conforme o slogan oficial), que pôs fim aos anos de chumbo, às repressões violentas, às sessões de tortura e aos assassinatos, que marcaram os governos dos militares linha-dura Costa e Silva e Médici. Na conhecida polarização entre os militares, Geisel pertenceria ao grupo denominado castelista, que se diferenciava do grupo linha-dura por ser mais moderado e mais brando no tratamento dispensado aos adversários políticos. João Batista Figueiredo, seu sucessor, seguiria a mesma linha. O adjetivo castelista deriva do perfil atribuído a Castelo Branco, considerado um militar legalista, com uma formação intelectual mais refinada, se comparado aos troupiers, militares linha-dura e nacionalistas. O adjetivo viria, posteriormente, caracterizar um grupo de militares com perfil semelhante ao de Castelo Branco. Com o tempo, a distinção configurou-se numa sólida dicotomia. Os dois perfis, por antinomia, caracterizariam formas distintas de atuar, com métodos mais ou menos contundentes. Na semana passada, um documento da Cia, que veio a público pelas mãos de Mathias Spektor, pesquisador da FGV, colocou, no mínimo, um enorme ponto de interrogação sobre este assunto.

Um Memorando enviado pelo diretor da CIA, William Egan Colby, para o secretário de estado Henry Kissinger, informando sobre a decisão do presidente Ernesto Geisel de continuar empregando “métodos extralegais” para dar combate e exterminar “subversivos perigosos”, trouxe novas luzes sobre o chamado período de abertura e abalou a visão até então dominante sobre o seu governo.

O documento, embora perturbador, não chega a surpreender. Como bem disse o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, para quem está atento às descobertas da Comissão da Verdade, que já havia responsabilizado Geisel e os outros generais pelas torturas e execuções, o conteúdo do documento apenas confirmou o que, em boa medida, já se sabia. As declarações de Geisel ao Centro de Pesquisa e Documentação da FGV também já davam fortes indícios de que o emprego de métodos violentos e “extralegais” continuaram sendo empregados no período da “abertura”. Mesmo assim, as informações são bombásticas e podem abrir novas linhas de interpretação. É claro que é preciso tomar certos cuidados e cruzar/confrontar o documento com outras fontes da época. E ainda que as intenções do documento espelhem um ponto de vista de uma agência de “inteligência” estrangeira, que operava com técnicas de espionagem, e estava diretamente interessada nos assuntos internos do Brasil, não há como negar a importância e a gravidade do conteúdo revelado.

Em síntese, o Memorando presta contas de uma reunião ocorrida em 30 de março de 1974. Estavam presentes o presidente Geisel, o general Milton Tavares de Souza (antigo chefe do Centro de Informações do Exército), o general Confúcio Danton de Paula Avelino (então chefe do Centro) e o general Figueiredo, que à época chefiava o SNI. O tema da reunião era a continuidade ou não das “execuções de subversivos perigosos”. O general Milton, que segundo Colby, falou a maior parte do tempo, deu detalhes dos trabalhos do Centro de Informações do Exército, sob o governo Médici, informou que 104 pessoas foram executadas em 1973, ou um pouco antes, e ressaltou que os “métodos extralegais” deveriam continuar sendo empregados. Figueiredo manifestou apoio à política das execuções e insistiu na sua continuidade. Geisel ponderou sobre os aspectos prejudiciais, caso fosse mantida, e pediu uma semana para se posicionar sobre o assunto. Dois dias depois, o presidente decidiu que a política deveria continuar, informou sua decisão ao general Figueiredo, e recomendou que se assegurasse “que apenas subversivos perigosos fossem executados”. Geisel, que publicamente adotava um tom conciliador, não só estava à par e de acordo, como autorizou o emprego da violência extrema contra os adversários do regime. Ao invés do presidente moderado, poderíamos dizer que o general foi o presidente de duas caras: uma cara, mais arejada, para consumo público, condizente com o clima de abertura oficialmente adotado pelo regime; outra, fechada, voltada para os assuntos internos e secretos do governo, que não abria mão, extraoficialmente, do uso da violência contra os “terroristas”.

Generais à paisana.

Na reunião ficou acordado que Figueiredo, por sugestão de Geisel, cuidaria das execuções e decidiria, “sob certas condições”, quem era ou não um “subversivo perigoso”. A teia de sinistros poderes, diretamente ligada ao gabinete do presidente, funcionaria assim: quando um “subversivo” fosse capturado, o chefe do Centro de Informações do Exército consultaria Figueiredo. A execução dependeria da aprovação do general, que deveria tomar os cuidados solicitados pelo presidente Geisel para executar de fato somente os considerados “perigosos”.

Figueiredo decidiria, portanto, quem deveria morrer. Brincava de deus no país da “abertura”. Mas afinal, quem eram os “perigosos”? Na avaliação dos generais, o jornalista Vladmir Herzog, executado em 1975, era considerado um “subversivo perigoso”, um “terrorista”? Sob que condições Herzog seria um homem perigoso a ponto de merecer a morte?

Vladimir Herzog armado com sua perigosíssima máquina de escrever!

O encontro dos generais, sob atenta observação da CIA, para decidir pela continuidade ou não das execuções, não deixa dúvidas de que os assassinatos cometidos durante a ditadura era uma política de estado. Não era uma prática acidental, decorrente dos excessos de algumas figuras truculentas. Era institucional. Geisel e Figueiredo não apenas sabiam das execuções. Eles autorizaram e decidiam quem mereceria a pena capital. O assassinato de membros do Comitê Central do PCB e os dirigentes do PCdoB, cachinados na Lapa em 1976, alguns depois de sofrer bárbaras torturas, fazem parte da estratégia do governo Geisel de limpar o terreno para encaminhar de forma “segura” a abertura política.

Não faltarão figuras folclóricas e autoritárias a declarar, com a “espada ao lado” e a “sela equipada”, a falsidade do documento (Ver a declaração do general da reserva Paulo Chagas). Lamentavelmente, o atual governo, que abandonou os trabalhos da Comissão da Verdade, vem dando voz aos militares e reabilitando certas figuras dadas a pronunciamentos. Também não faltarão “pessoas de bem” elogiando a decisão do general Geisel e lamentando não existir mais executores como naquela época. Tampouco malabarismos históricos delirantes, de certo “jornalismo” que se diz “de direita”, para mostrar que o documento foi forjado por esquerdistas infiltrados na CIA por “razões de guerra geopolítica” (O jornalismo “de direita” é semelhante ao “de esquerda”, naquilo que ele tem de pior).

As reações à divulgação do documento foram as mais diversas. A mais desprezível, sem dúvida, foi a de certo (lamentavelmente) presidenciável, que contumazmente confunde o papel do presidente da nação com o do chefe de família (a dele). Em entrevista à uma rádio de BH, o sujeito disse que: “Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”. O comentário (daqueles que só se cria em mentes perturbadas) é ignóbil nas suas intenções e cruel com os familiares das vítimas. Comparar crimes brutais com palmada em criança é revelador da descompostura e da imaturidade política deste senhor. O sujeito (vo)mitou mais uma vez!


Abaixo, trechos do Memorando que vieram a público:

Memorando do diretor da Agência Central de Inteligência Colby para o secretário de Estado Kissinger
Washington, 11 de abril de 1974.
Assunto: Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições
1. [1 parágrafo (7 linhas) não desclassificado]
2. Em 30 de março de 1974, reuniu-se presidente do Brasil, Ernesto Geisel, com o general Milton Tavares de Souza (chamado de general Milton) e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE). Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).
3. O general Milton, que falou durante a maior parte do tempo, detalhou o trabalho da CIE contra os alvos subversivos internos durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici. Ele ressaltou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e que os métodos extralegais devem continuar sendo usados contra subversivos perigosos. A este respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o ano passado, ou pouco antes. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.
4. O presidente, que comentou sobre a seriedade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.
5. [1 parágrafo (12½ linhas) não desclassificado]
6. Uma cópia deste memorando será disponibilizada ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [1½ linha não desclassificada]. Nenhuma distribuição adicional está sendo feita.