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sexta-feira, 22 de março de 2013

A REVOLUÇÃO COMO MITO (o ópio dos intelectuais).



A REVOLUÇÃO COMO MITO (o ópio dos intelectuais).


Ferreira Gullar está em forma. É um crítico atento dos autoritarismos de esquerda e de direita. Usa o calibre poético e a invulgar veia literária para desmascarar os falsos messias da liberdade dos povos. Afiado, como sempre, desmontou o mito da “revolução bolivariana”. O texto do poeta, que reproduzo mais abaixo, mesmo com possíveis imprecisões, é necessário e urgente. É um manifesto contra o delírio “bolivariano” que ronda a América do Sul. Claro, a postura do poeta desagrada muita gente. Max Altman, por exemplo, que não aceita que um escritor que durante décadas militou no campo da esquerda seja agora um crítico das esquerdas, tentou desacreditá-lo mostrando-o como uma espécie de lacaio da velha direita. Destaquei um parágrafo do texto de Altman:

 “Como necessitam ser bem recebidos pelos novos correligionários, mostram-se crescentemente mais realistas que o rei. Ou seja, homens com uma história de esquerda passam a defender algumas das teses mais caras à direita. Mudar de lado não é um ato gratuito. Há que se pagar pedágio sempre – e ele é caro e exigente -, demonstrando por atos e palavras que são leais à nova trincheira e aos seus valores. É o caso de Arnaldo Jabor, Roberto Freire, Marcelo Madureira, Alberto Goldman e tantos outros. E do poeta e cronista Ferreira Gullar.” (Max Altman: “Há sim uma revolução na Venezuela, Ferreira Gullar”).

Quem disse para o Sr. Altman que Gullar é agora um homem de direita, que precisa ser recebido pelos “novos correligionários”? Gostaria que o Sr. Altman demonstrasse, com alguns exemplos, que Gullar “mudou de lado”. Gullar, como podemos ler em algumas entrevistas, é crítico da direita e da esquerda. Chamá-lo de direitista é um insulto à inteligência. Textos como este servem apenas para abastecer a militância, que o reproduz vertiginosamente na rede, e desfazer nas redes sociais os efeitos da critica de Gullar. Como são parecidos, nos métodos, com a velha direita. Vamos em frente. Quem disse ao Sr, Altman que Gullar defende teses de direita? Mostre-me uma. Apenas uma. Que tipo de pedágio Gullar paga? Que tipo de fidelidade ele presta? Textos difamatórios como este não podem ser levados a sério. Foi exatamente está impostura, esta “ignomínia” (devolvo a palavra que Altman usou para se referir a Gullar), dos intelectuais de esquerda que me fez desejar estar bem longe deles. Não tenho a menor dúvida, estou com Ferreira Gullar. Estou do lado da independência e da honestidade intelectual.

O texto de Gullar é um alerta. O processo de mitificação do herói revolucionário, que em nome do povo humilde e marginalizado enfrentou a tirania das oligarquias, esta em curso. Prestemos atenção aos textos e aos gestos mistificadores. 

O poeta sugere, ao final do texto, e eu insisto: “Não resta dúvida, estamos em Macondo.”

Está mais do que na hora de revermos os enredos e as narrativas construídas sobre as “revoluções”. As narrativas histórias elaboradas de um ponto de vista liberal ou conservador - a história vista de cima, ou tradicional, como se diz - já foram desmontadas e dissecadas. Está na hora de questionarmos também a história escrita, pretensamente, de uma perspectiva popular, ou das classes populares. Os enredos das revoluções, do passado e do presente, seguem uma fórmula clássica, e gasta, que precisa ser interrogada. O elogio das revoluções, e dos seus líderes, foi flagrantemente eletivo. Muita sujeira foi jogada para baixo do tapete. Fez-se vista grossa para inacreditáveis atrocidades. A sugestão poderia ser uma nova versão da história a contrapelo, só que desta vez aplicada à historiografia de esquerda. Vamos escovar a história das revoluções a contrapelo para ver o que as narrativas apologéticas esconderam?

O roteiro das ditas revoluções em nome da liberdade e da igualdade é conhecido. Primeiro identifica-se um passado de opressão com o qual pretendem romper. Inscrevem este passado na ordem histórica da superação e o decretam, com sofisticadas elucubrações teóricas, como em fase terminal. Elegem nesta fase em vias de superação os tiranos e os inimigos do povo. Depois, acionando os princípios de liberdade e igualdade, esforçam-se para mobilizar o que chamam de “massas” para dar o golpe final na ordem moribunda. As "massas", depois de cumprirem seu papel “revolucionário”, são afastadas da cena (Ou contidas com benefícios do estado-pai). Cabe agora aos iluminados construir o novo regime. O passado deixado para traz recebe pejorativamente o nome de antigo regime (ou passado oligárquico). Tudo e todos os que são identificados com o passado passam a ser vistos como inimigos do povo e da revolução (Hoje o inimigo é a mídia, e a dita revolução, dizem, não será televisionada). Esta qualificação autoriza os mais insanos atos de violência e covardia (o “paredón” cubano ou os abusos do poder discricionário). O mais surpreendente: os tiranos encontram nos intelectuais uma disposição “científica” para declarar a legitimidade das suas ações. Não se trata de negar a importância das lutas sociais, nem de negar, no caso da América Latina, um passado de exploração e opressão. O que não se pode aceitar é a instrumentalização deste passado para a instauração de novas formas de autoritarismo e de exploração política do “povo”, em nome do “povo”. Alguém se lembra da advertência de Bakunin, lá na Primeira Internacional? 

“Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.”

Embora pareça, Bakunin não tinha uma bola de cristal. Ele simplesmente desconfiava dos autoproclamados defensores e representantes desta abstração chamada “povo”. Ele nunca acreditou nas sanguessugas sociais que parasitam o corpo das ditas classes populares.

Mas afinal, o que é uma revolução? Aconteceu ou está acontecendo uma revolução na América do Sul? O texto abaixo oferece um bom ponto de partida para uma reflexão.

Trecho do texto que Ferreira Gullar publicou no dia 17 de março na Folha de São Paulo sobre a “revolução bolivariana”. Abaixo, o texto na íntegra.

“Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder -Chávez-- está ali para defendê-los.”


A REVOLUÇÃO QUE NÃO HOUVE.
Ferreira Gullar

Hugo Chávez foi, sem qualquer dúvida, um líder carismático que aliava, em sua atuação, a audácia e a esperteza política. Desde cedo, a ambição de poder determinou suas ações, que o levaram da conspiração nos quartéis às manobras populistas características de seu projeto de governo.
Sempre soube o que deveria fazer. Compreendeu, desde logo, que teria de atender às necessidades de grande parte da população que, ignorada pela oligarquia venezuelana, vivia na miséria.
Ganhar a confiança dessa gente, atendê-la em suas carências, era a providência eticamente correta e, ao mesmo tempo, o caminho certo para tornar-se um líder de imbatível popularidade. Mas, para isso, teria que enfrentar os poderosos e obter o respaldo das forças armadas, às quais, aliás, pertencia. Foi o que fez e ganhou a parada.
Outro traço característico de Hugo Chávez era o pouco respeito às normas democráticas. Se é verdade que ele chegou ao poder pelo voto e pelo voto nele se manteve, é certo também que se valeu do prestígio popular e de alguns erros dos opositores para controlar os diferentes poderes da nação venezuelana, impor sua vontade e consolidar o poder discricionário.
Nesse sentido, o que ocorreu na Venezuela é um exemplo de como o regime democrático, dependendo do nível econômico e cultural da população de um país, pode abrir caminho para um governo autoritário que, dependendo da vontade do líder, anulará a ação política dos adversários, como o fez Hugo Chávez.
Ele não só fechou emissoras de televisão como criou as Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista, inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do governo.
Para culminar, fez mudarem a Constituição para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder. Está subentendido que sua presença no governo garante a justiça social com a simples exclusão da classe exploradora e, portanto, como são o povo no poder, não há por que sair dele.
Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder --Chávez-- está ali para defendê-los.
O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele tentou encobrir. Quando já não pôde mais, lançou mão da teoria conspiratória, segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos. Como isso ocorreu, nem Nicolás Maduro nem Evo Morales se atrevem a explicar.
De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença, que o obrigaria a deixar o governo. Sucede que o câncer não cedeu à onipotência do líder, obrigando-o a ausentar-se da Venezuela e da chefia do governo, por meses seguidos. O povo venezuelano, naturalmente, desejava saber o que se passava com o seu presidente, mas nada lhe era dito.
No entanto, Chávez deveria disputar eleições em 2012 para manter-se no governo e, por isso, voltou à Venezuela dizendo-se curado. Foi reeleito, mas teve que voltar às pressas à UTI em Havana. Daí em diante, mais do que nunca, o sigilo foi total: está vivo? Está morto? Vai voltar? Não vai voltar? Pela primeira vez, alguém governou um país de dentro de uma UTI.
Chega a data em que teria que tomar posse, mas continuava em Cuba. Contra a Constituição, Nicolás Maduro, que ele nomeara seu vice-presidente, assume o governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que o mandato do próprio Chávez terminara.
Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça --de maioria chavista, claro-- legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu.
Durante o enterro, Nicolás Maduro anunciou que Chávez seria embalsamado e exposto para sempre à visitação pública, como Lênin e Mao Tse-tung. Um líder revolucionário de uma revolução que não houve. Não resta dúvida, estamos em Macondo.


sexta-feira, 15 de março de 2013

A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.



A TRAVESSURA SEMIÓTICA DE RENÉ MAGRITTE E OS LIMITES (?) DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO.

O post não trata de filosofia nem de estética da arte. São rápidos apontamentos de um historiador inspirado em alguns quadros de René Magritte. Nada mais.


Perspicácia (1936).

O olhar fixo e compenetrado do artista para capturar, quem sabe, a forma, o volume e a essência do “objeto” que pretende pintar contrastando com a figura que toma forma na tela é a melhor tradução da expressão “dar asas à imaginação”, com o perdão da obviedade do trocadilho. O que esta diante dos olhos não o satisfaz. O ovo (a realidade diante do pintor) é apenas o motivo, não um objeto a ser fielmente retratado. 

“Perspicácia” é uma reflexão metalinguística sobre o trabalho do artista, sobre a arte de ultrapassar o aparente e trazer a tona o que está oculto. O pintor é um interprete, um semeador de sonhos e de (su)realidades, não um satisfeito retratador de realidades estanques. Seu olhar dirigi-se para o além do ovo, para o vir a ser.  

Magritte joga com a realidade e a imaginação, mas não para opô-las como esferas antagônicas e irredutíveis. O ovo, a realidade a sua frente, é uma possibilidade, não uma certeza, é um ponto de partida, não um fim a ser alcançado/retratado. Eis o sentido de perspicácia. O pintor nos convida a ver a realidade como potência, como movimento, como construção subjetiva, não como um dado objetivo que existe independente das nossas construções linguísticas, estéticas, científicas, religiosas. A perspicácia está em ver a realidade como um estímulo à imaginação, não como prisão da criatividade. É estar aberto para o inesperado. 

O tema de “Perspicácia” é bastante sugestivo para iniciar uma conversa sobre a controvertida relação do historiador com a realidade. Vamos pegar carona na super-realidade de Magritte e ver onde ela nos leva? 

René Magritte é daqueles raros pintores que desconcertam. Figuras e objetos enigmáticos, como rochas pesadas suspensas como se fossem plumas, noite e dia numa mesma cena, figuras reais em contextos oníricos e surreais, são algumas das situações ilusórias criadas pelo pintor, que provocam reflexão.


Império das luzes (1954).

Chapéus de coco, guarda chuvas, pássaros, maças, cachimbos, portas e janelas, enfim, objetos familiares, que normalmente não chamariam nossa atenção, são deslocados dos seus lugares identificáveis e colocados em contextos inesperados. Este (re)manejamento dos objetos era característico do surrealismo. Buscava-se desestabilizar e confundir a percepção, embaralhar os sentidos e confundir a fronteira entre o real e a imaginação. Magritte foi um mestre nesta arte de jogar com objetos e contextos ou de descontextualizar objetos. Queria provocar o estranhamento, o deslocamento dos sentidos, estimular um olhar novo sobre os objetos que nos cercam e sacudir o lugar comum. Queria fazer os objetos gritar. Um simples gesto do dia a dia, como olhar-se no espelho, ganha novos significados: e se o espelho não retribuir o olhar? “O que conta precisamente, nos diz Magritte, é esse instante de pânico e não a explicação.”


Retrato de Edward James (1937)

Objetos reconhecíveis e perfeitamente identificáveis ganham novos e surpreendentes arranjos e adquirem novos significados. Rompe-se o mecanismo usual de significação e de representação. A obviedade e a naturalidade das coisas se desfazem e abre-se o caminho para outras formas de percepção. 


Magritte não era apenas um pintor. Era um pintor-filósofo. Ao invés de paisagens, cenas cotidianas e figuras humanas reconhecíveis, pintava ideias e temas filosóficos. “As férias de Hegel”, por exemplo, de 1958, lança um desafio dialético explorando um objeto comum usado de maneira incomum: um guarda chuva aberto sustentando um copo com água. Deixemos o próprio pintor explicar suas intenções: “Pensava que Hegel teria sido sensível a este objeto que tem duas funções opostas: ao mesmo tempo, não admitir água (repeli-la) e admiti-la (contê-la). Ele teria ficado satisfeito, creio, ou divertido (como se estivesse de férias).Um objeto comum como um guarda chuva, apartado de sua função original, transforma-se num problema filosófico. Magritte relaciona arte e filosofia, numa brincadeira dialética para divertir Hegel.


As férias de Hegel (1958).

“A Traição das Imagens” é uma das pinturas mais significativas de Magritte. De dimensões pequenas, o quadro nos desafia com um enigma aparente. Somos confrontados com um belo e convincente cachimbo, de suaves contornos, ilusionísticamente pintado sobre um fundo neutro que realça a forma realista do desenho.

  
Abaixo do cachimbo, uma legenda escrita com “caligrafia de convento” (Foucault), nega a imagem acima representada: “Ceci n´est pas une pipe”. Um instante de desconcerto. Porque afinal a legenda nega a imagem? Ela a nega ou a afirma de outro modo? 

“A traição das imagens” é de 1928-9. Magritte foi muito censurado pela ousadia do quadro, por pintar uma imagem e em seguida negá-la. Foi mal compreendido. No entanto, se ele tivesse escrito que aquilo era um cachimbo, não estaria sendo totalmente verdadeiro. Anos mais tarde desafiou os críticos: “conseguem enchê-lo?”. Não, não conseguem, porque não é um cachimbo. É “apenas um desenho”, uma representação pictórica. E para quem ainda duvida talvez o mestre lançasse um desafio: tentem colocar fumo no cachimbo, tentem fumar.

Eis a “traição das imagens”, elas nos levam a ver e a crer em algo que não está ali. A travessura semiótica de Magritte nos faz duvidar das nossas percepções das coisas. O cachimbo salienta a distância intransponível e incontornável entre o objeto e sua representação.

O Cachimbo e a História.

O cachimbo de Magritte é o meu motivo. Se o pintor olhou para um ovo e desenhou um pássaro, porque não olhar para o cachimbo e refletir sobre o trabalho do historiador? Trazendo a advertência de Magritte para os domínios da história, diria que a representação/construção do passado é o cachimbo dos historiadores. Reconstruímos o passado de modo convincente, verossímil, desenhamos seus contornos e oferecemos uma imagem perfeitamente legível. Mas não é o passado. O cachimbo impôs-se ao pintor como forma reconhecível, da qual ele não pode esquivar-se. Da mesma forma, o passado impõe-se ao historiador como realidade da qual ele não pode fugir. Mas o que construímos não é o passado. Assim como no cachimbo pintado por Magritte não pode ser colocado fumo, a imagem que o historiador constrói do passado não tem cheiro, não tem espessura, não sua, não sente dor, não pode ser tocada.

Assim como jamais fumaremos no cachimbo de Magritte, porque sua realidade limita-se a tela, jamais sairemos do domínio do texto para alcançar a realidade do passado. A realidade do passado é inalcançável. O contexto do cachimbo é a tela. O contexto do historiador é o texto, ou um conjunto articulado de textos. Em certo sentido, o contexto criado pelo historiador é tão arbitrário quanto o contexto em que Magritte encerrou o seu cachimbo. Os conceitos e categorias do historiador com os quais ele articula o passado não eram conhecidos no passado. As experiências de vida de outras épocas são, portanto, reconstruídas a partir de signos que lhes são estranhos. Dificilmente as pessoas que viveram no passado se reconheceriam nas tramas e narrativas dos historiadores. Mas isso não chega ser um problema. A história é uma ciência do presente e para o presente. As narrativas históricas têm que fazer sentido para nós, leitores do presente, e não para quem viveu no passado e não está mais entre nós.
Sem pretender adentrar mais do que o necessário neste terreno espinhoso, manifesto um esforço de interpretação, coerente com o entendimento que tenho da história, que não estabelece uma diferenciação fundamental entre texto e contexto. Não parto do suposto de que exista uma realidade passada pré-textual a espera de ser revelada por um conjunto de textos que nos chegam do passado. O que comumente chamamos de contexto não diz respeito a um lugar, uma realidade essencial que exista para além dos documentos. Não se trata de negar a existência de uma realidade exterior ao texto. Negá-la é negar o próprio texto que a toma como referente. O que se enfatiza é o tipo de relação que mantemos com o passado. No fundo, é o problema epistemológico da história: o que podemos conhecer no passado que, afinal de contas, esta tão distante de nós? Este passado nos chega por meio de uma complexa rede de textos: memórias, cartas, livros, etc. Não temos acesso ao mundo que existiu para além destes vestígios textuais. Esforçamo-nos para entender e explicar o mundo fora do texto, produzindo outros textos. Mas o texto é a realidade na qual estamos sempre a desembarcar. Não podemos imaginar que o texto nos conduzirá a uma realidade exterior. Eis os limites da História, e a sua sedução. Abandonando a pretensão de abraçar a realidade em si, não abandonamos o desejo de explicação da realidade. Apenas redimensionamos a noção de realidade e o alcance do nosso olhar estrangeiro de quem literalmente lê o passado. Dominic La Capra, que transformou a cômoda realidade histórica num problema, sugeriu incisivamente que a crença da maioria dos historiadores na existência de um contexto como a força causal essencial é tributária de uma tradição metafísica ocidental da busca pelo puro ser. Na mesma linha dos estudos linguísticos e suas relações com a escrita da história, Hayden White desencadeou polêmicas apaixonadas ao questionar as fronteiras tradicionais que separam a história da literatura e da filosofia, e ao sugerir o papel decisivo da linguagem nas descrições dos historiadores da realidade histórica. Robert Darton, num inspiradíssimo ensaio sobre a presunção do historiador de querer brincar de Deus, perguntou com indisfarçável ironia: por mais que os historiadores gostem de metáforas como “escavar nos arquivos”, “quem acredita na descoberta e extração de pepitas de realidade?” O que estes autores questionam é a pretensão dos historiadores de descrever realidades passadas. Mas alto lá. Daí a afirmar que o texto é uma realidade que acaba em si mesma, ou de que o texto é “apenas a prova de si próprio”, vai uma enorme diferença. A contribuição da critica literária e dos estudos linguísticos é um divisor de águas nos estudos históricos. Passado o primeiro impacto desta virada linguística, e os exageros e as adesões apressadas que a acompanhou, o momento atual é de uma reflexão serena. Muito mais do que respostas, ficam as perguntas: afinal, sobre o que versam os historiadores? Estamos presos a uma rede interminável de textos dos quais somos reféns ilustres? Nossa epistemologia resume-se a um eterno exercício textual? Ou temos alguma coisa a dizer sobre o mundo, sobre o passado? Esta discussão não é perda de tempo, como bem sustentou Ginzburg, nem um mero exercício acadêmico entre as trincheiras racionalistas e pós-modernistas. É, antes de tudo, uma busca pelo valor da história, e dos historiadores.

A história não é um produto da imaginação poética, como sugeriu Hayden White, tampouco uma mera construção da linguagem. O conhecimento histórico, embora limitado ao texto, é construído a partir de uma realidade histórica da qual não podemos fugir. Embora nunca nos afastemos da realidade textual, é ela o nosso ponto de contato com a realidade da qual o texto é um produto. Diria até que o texto não é o nosso limite (como o ovo não o foi para Magritte), mas a nossa ilimitada possibilidade de reconstrução do passado. Os textos podem ser lidos, relidos, redescobertos e reinterpretados de diferentes maneiras. É isso que faz da história uma ciência do presente. Ler o passado é um verbo que só se conjuga no presente. O passado como ele foi não pode ser alcançado, embora nos esforcemos para chegar o mais perto possível. É o nosso cachimbo. Nosso belo, verossímil e ilusionístico cachimbo. É a perspicaz “traição” da história. A imaginação do pintor o permitiu driblar o realismo conformista e ver além do ovo. Sem imaginação – o exercício poético-científico de fazer dois tempos que não coexistem dialogarem - o trabalho do historiador se tornaria um registro obituário de realidades passadas. É como se o pintor olhasse para um ovo e pintasse, imaginem!, um ovo. Por isso, quanto mais os historiadores se aproximarem da literatura, da arte e da poesia, maiores serão as chances de quebrarem a casca do ovo disciplinar e usarem perspicazmente a imaginação a seu favor. Brincando um pouco com a ótima frase de Emmanuel Le Roy Ladurie (de que para fazer história é preciso de um pouco de marxismo e o máximo possível de ciência) diria que para escrever história é preciso de um pouco de ciência e o máximo possível de imaginação.


terça-feira, 12 de março de 2013

A RAPOSA FAMINTA VAI TOMAR CONTA DO GALINHEIRO. Ou: O deputado que disse que a Aids é o “câncer dos Gays” e que a desgraça dos africanos decorre da “maldição de Noé” foi indicado para presidir a Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias.



A RAPOSA FAMINTA VAI TOMAR CONTA DO GALINHEIRO. Ou: O deputado que disse que a Aids é o “câncer dos Gays” e que a desgraça dos africanos decorre da “maldição de Noé” foi indicado para presidir a Comissão dos Direitos Humanos e das Minorias.



Não somos ingênuos. Sabemos que as indicações dos nomes para as diversas comissões do congresso nacional dependem de articulações e de arranjos partidários e dos jogos de interesses que costuram as relações no congresso. Embora saibamos disso e conheçamos a cultura política brasileira, tem coisas que nos pegam de surpresa. E não adianta apontar este ou aquele partido, por isso ou por aquilo. Todos eles fazem parte do jogo e não hesitam em atacar a decência e a dignidade, ou mesmo a vontade que por vezes emerge da sociedade, para defender seus interesses. Se o PSDB e o PMDB apoiaram no nome de Marco Feliciano, o PT bancou o nome de Renan Calheiros. Certo?

O pastor Marcos Feliciano, do PSC (Partido Social Cristão), foi indicado pela maioria do partido para presidir a Comissão de Diretos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. O deputado é conhecido pelas declarações preconceituosas e de mau gosto em relação aos gays ("Nosso medo é só esse: união homossexual não é normal. Não haveria condição de dar sequência à nossa raça. Agora, o que se faz dentro de quatro paredes não me diz respeito."). 

As pérolas do futuro presidente da Comissão dos Direitos Humanos não param por aí. Querem mais duas? “Entre meus inimigos na net (sic), estão: satanistas, homoafetivos, macumbeiros...” e “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, a rejeição”. Mais uma para fechar? “A AIDS é o câncer gay.” 

O homem que se declara inimigo dos homoafetivos vai presidir uma Comissão que cuida dos direitos das minorias? Nem entre os evangélicos existe um consenso sobre o nome de Feliciano. A Rede Fale, que congrega cristãos progressistas, manifestou preocupação com a indicação do deputado. 

Afeito a frases de efeito e declarações polêmicas, o pastor surpreendeu em 2011 ao postar no twitter que os africanos são desgraçados porque descendem de ancestral amaldiçoado de Noé. Para sustentar a declaração citou passagens bíblicas sobre Cam, o filho amaldiçoado por Noé e recorreu a Flávio Josefo, historiador e apologista judeu-romano, para mostrar que os africanos realmente descendiam de Cam. O pastor não brinca em serviço. Amparou-se na “autoridade” da bíblia e na “veracidade” da história para detratar os “africanos”. 



Vamos em busca da linhagem discursiva evocada pelo deputado? A quem possa interessar, a passagem bíblica referente à maldição de Cam está em Gênesis 9:22-25. Transcrevo:

“E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por escravo...”.

A maldição de Noé recaiu sobre os filhos de Cam. Canaã, por ser o mais moço, foi diretamente citado, mas a maldição dirigiu-se os quatro filhos: Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã (Ver Gênesis 10:6).
Flávio Josefo, a quem possa interessar também, mencionou na obra “Antiguidades Judaicas” a nação de Cuxe, um dos filhos de Cam, que teria se dirigido e reinado sobre a Etiópia. "Para um dos quatro filhos de Cam, o tempo não para toda a mágoa o nome de Cush; para a Etiópia , sobre o qual reinou, são ainda menos Neste dia, tanto por si e por todos os homens na Ásia, etíopes chamados.” (Flávio Josefo).

Estas são as obras e as passagens que Feliciano usou para sustentar suas declarações.  Mas fico com a ligeira impressão de que o pastor foi beber também em outras águas. Águas perigosas para um membro da Assembleia de Deus. Refiro-me ao jesuíta Jorge Benci SJ, um dos mais importantes autores cristãos a relacionar a maldição de Noé com os africanos trazidos para o Brasil. Benci escreveu uma obra publicada no “Brasil” em 1700 intitulada “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. (Tenho uma antiga edição da editora Grijalbo, de 1977). No capítulo em que aconselha os senhores a manterem as escravas bem vestidas, “visto que a servidão e cativeiro teve sua primeira origem do ludíbrio”, lembra da maldição de Noé sobre Cam e toda a sua descendência, que “no sentir de muitos é a mesma geração de pretos que nos servem”. Os escravos da América Portuguesa são assim diretamente ligados à descendência de Cam e, portanto, portadores de uma maldição.

Os negros, segundo Benci, tinham uma particular inclinação para os “vícios”. O próprio Deus lembrou esta singularidade a Amós ao comparar os Hebreus com os Etíopes. Recorrendo a autoridade de São Jerônimo, o jesuíta diz que nas escrituras “se chamam Etíopes não quaisquer pecadores senão os que são tintos com a cor preta de todos os vícios”. 

O reencontro deste povo apartado de Deus, e que carrega na pela a marca do pecado, com o cristianismo viria pela mão dos portugueses, “o povo escolhido entre todas as mais nações para propagar e dilatar a Fé de Jesus Cristo”. A escravidão no Brasil seria uma espécie de purgatório, conforme o padre Vieira, dos africanos. Aqui eles expiariam seus pecados e, quem sabe, se livrariam da antiga maldição. A lenda da maldição de Noé, desde o século XVI, tinha função legitimadora da escravidão africana. A obra de Benci foi publicada com o consentimento dos seus superiores, o que denota ser este, em tese, o entendimento que a igreja tinha sobre o tema. Escrita com o propósito de servir de manual para a educação cristã dos escravos, a obra, que reúne quatro sermões, expressava a pedagogia jesuítica no contexto colonial. A pedagogia corretiva e cristã de Benci articulava três categorias que, em síntese, constituíam as obrigações de um senhor cristão: trabalho, sustento e castigo. A publicação da obra foi um acontecimento da ordem jurídica da escravidão. Influenciou, sete anos depois, as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, um conjunto de normas religiosas que passou a reger o universo social colonial. A obra de Antonil (Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas), amigo de Benci, publicada em 1711, também foi influenciada pela “Economia Cristã...”. A obra “O Etíope Resgatado Empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado”, escrita na Bahia em 1756 e publicada em Lisboa pelo religioso português Manoel Ribeiro Rocha, também foi diretamente influenciada pelos sermões de Benci. 

“Economia Cristã...” pode ser vista como depositária de uma tradição teológica sobre a maldição de Noé, que pontificava a divisão da humanidade em duas grandes linhagens: a dos semitas e a dos camitas (apartados de deus). Esta interpretação do velho testamento é arbitrária. Em tempos pré-centíficos, dominados pelas especulações teológicas, tinha a sua validade.  Hoje, não se sustenta. Para dizer o mínimo, esta visão desconsidera completamente as descobertas da arqueologia sobre o continente africano e faz tabula rasa sobre os conhecimentos sobre a humanidade acumulados pelo conjunto das ciências. 

Jorge Benci retomou a lenda de Noé num contexto colonial para demonstrar a legitimidade da escravidão, e a necessidade de reformá-la, e construiu um monumento pedagógico e normativo que dali para frente exerceria um papel decisivo na edificação das normas coloniais. A obra de Benci, ancorada no velho testamento e dialogando com a Patrística, a Escolástica, os clássicos greco-romanos, o direito divino e natural, o direito romano e os cânones da Igreja, seria uma pista extraordinária para perseguirmos a matriz discursivo-teológica sobre os usos da narrativa bíblica da maldição de Noé para justificar a escravidão.

Marcos Feliciano também oferece uma saída para os africanos diminuírem o peso da desgraça lançada por Noé: “milhares de africanos têm devotado sua vida a Deus e por isso o peso da maldição tem sido retirado”. Estaria o pastor evangélico buscando argumentos na literatura católica papista? Pouco provável. Mas a provocação é irresistível. O que Feliciano fez foi resgatar o velho argumento teológico da “maldição de Noé”, da tradição judaica e muçulmana, usado pelos jesuítas para justificar a escravidão africana no Brasil, e jogá-lo maldosa e irresponsavelmente no twitter. Os jesuítas, Benci em particular, nos séculos XVI e XVII, estavam imersos numa cultura do debate teológico sobre o tema da escravidão humana. Naquele tempo, anterior a história científica e ao relativismo antropológico, as justificativas econômicas e morais sobre a escravidão andavam de mãos dadas com as preocupações religiosas e pedagógicas em relação aos escravos. A obra de Benci era uma justificativa teológica e moral da escravidão, mas era também uma obra reformista que sugeria normas para o trato cristão dos escravos. Era também uma denúncia dos abusos cometidos pelos senhores de escravos. Coisa bem diferente é, em pleno século XXI, na era dos direitos humanos, um deputado ressuscitar esta antiguidade teológica e apresentá-la como “fato” (“Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato”). A ignorância teológica do pastor/deputado só rivaliza com o seu próprio mau caratismo. 



Ultrapassando, e muito, os limites da decência e do respeito, Marco Feliciano afirmou que a maldição pode ser desfeita com o reencontro com deus. Será que este reencontro se daria na sua igreja, com os “amaldiçoados” portando cartões de crédito?  Será que é por isso, por descobrir o caminho para desfazer a maldição de Noé, que Feliciano foi escolhido pelos seus pares para presidir a Comissão dos Direitos Humanos? Brincadeiras a parte, a nomeação do deputado e pastor parece uma zombaria. Seria mais ou menos como indicar o coronel Marco Antonio Balbi para presidir a Comissão da Verdade.