MADAME SATÃ
Escrevi este texto em 2004, logo depois de assistir Madame Satã. O filme é um soco no estômago. E o texto saiu de um
golpe só. Acho que agora é um bom momento para tirá-lo do esquecimento. A vida e as batalhas de Madame Satã (João Francisco
dos Santos) são a recusa vigorosa e o autêntico contraponto a esta tentativa
obscena e desavergonhada, representada por Marco Feliciano, de interferir na
intimidade dos indivíduos.
Não alterei nada no texto.
Mantive as imprecisões e a primeira impressão que tive do filme. Saí do cinema,
cheguei em casa, abri o computador e joguei as palavras... Não lapidei o texto.
Hoje eu mudaria alguma coisa, acrescentaria outras e suprimiria algumas
passagens. Mas não fiz. Preferi manter o
texto original.
____________________________________
Aviso aos navegantes: este não é
um texto científico, acadêmico e politicamente correto. É um texto passional,
comprometido, impreciso, mal comportado, rápido e rasteiro como o jogo de
pernas do capoeira endiabrado.
Passou meio despercebido do
grande público o primeiro longa-metragem do diretor cearense Karim Aïnouz, Madame
Satã. O filme circulou apenas em algumas salas alternativas de cinema, com
baixa média de público.
O filme é baseado na história de
vida de João Francisco dos Santos, negro, boêmio, filho de escravos recém-libertos,
homossexual, malandro, capoeira, analfabeto, afável e violento, pai adotivo e transformista,
que viveu no Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e1970. Karim enfoca parte
da vida de Madame Satã, nome adotado por João Francisco, quando ele começa
apresentar-se na noite carioca com shows de transformismo. Shows que parecem evocar
a ancestralidade de “Priscila, a Rainha do Deserto”, só que sem o charme, o
otimismo e o tom jocoso que embala a Odisseia Gay das bichas australianas.
Karim Aïnouz optou por fazer uma espécie
de crônica íntima do cotidiano de João Francisco, antes da criação do mito
Madame Satã. O que chamou a atenção do diretor para a história desse personagem
singular da história carioca foi o tema da exclusão. Karim tenta reconstruir o
cotidiano pobre de uma parcela da população carioca, que gravitava em torno de
João Francisco, e o modo como estas pessoas, especialmente o personagem em
foco, reagiam à exclusão. O filme reconstrói com impressionante realismo toda a
atmosfera boêmia e marginal da Lapa da década de 1930. Sombrio, depressivo, perturbador,
marginal e lírico, Madame Satã definitivamente não é um filme feito para
agradar espectadores eventuais que buscam diversão nas salas de cinema. É um
filme bastante ousado e corajoso, com interpretações vigorosas, viscerais e
inspiradíssimas, principalmente de Lázaro Ramos, ator estreante que interpreta
de forma marcante e hipnótica Madame Satã.
As cenas de amor entre os homens,
os beijos lambidos, as trocas de carinhos, delicadas e violentas, são de tirar
o fôlego. De fazer heterossexuais moralistas corar, abandonar o cinema (o que
realmente aconteceu durante a exibição do filme no festival de Cannes). São os
beijos mais verdadeiros e sensuais, entre homens, que vi no cinema. O filme não
tem pudor, não usa de meias palavras. É sujo, violento e depravado, como era o
cotidiano pobre e marginal do subúrbio do Rio de Janeiro (na imaginação de
Karim Aïnouz). É o reverso da Belle Époque carioca, é o outro lado da bossa. É
a Lapa sem ilusões, não idealizada. Onde preto pobre e bicha, se não tem
navalha e não luta capoeira, dá o cú ou vive com o cú na mão. Universo
destituído do glamour burguês, mas onde a burguesia dos bairros elegantes e
higienizados realizava suas fantasias impossíveis, inconfessáveis. Tipo aquela
de “Botinha, mas Ordinária”, em que uma moça da classe média é estuprada na
chuva, sob a capota de um fusca por um bando de negros molhados e suados. E
adora. Quantos moços de famílias brancas tradicionais do Rio, “bonitinhos e
ordinários”, não foram “sodomizados” pelo membro negro de Madame Satã? Mas por
favor, não vamos confundir isto com “democracia racial” ou “democracia sexual”.
João Francisco é o furacão negro que desorganiza a paisagem do bem arranjado
mundo patriarcal de Casa Grande & Senzala. No filme, a Lapa se
metamorfoseia numa espécie de quilombo moderno, urbano, onde Zumbi da Lapa ou
Satã dos Palmares protege e abriga nos mocambos/cortiços improvisados, os desafortunados
da Ordem e do Progresso.
João Francisco adotou o nome de Madame
Satã inspirado num filme homônimo de 1930, de Cecil B de Mille. Filme que viu e
adorou. Verdadeira antropofagia do glamour hollywoodiano adaptado ao cotidiano
pobre dos redutos marginalizados da capital de um país periférico.
Madame Satã era malandro numa
época em que a malandragem passou a ser vista como um mal a ser combatido pelo
estado em nome da paz social. Era negro e bicha num país racista e moralista, recém-egresso
da escravidão. Mas não era uma vítima indefesa de um sistema injusto que não
dava oportunidades aos despossuídos. Satã não cabe numa explicação sociológica,
histórica, e não pode ser explicado pela velha fórmula dos intelectuais de
esquerda que reduzem tudo à questão da injustiça social capitalista. Ele é
escorregadio, evasivo, resiste aos conceitos e escapa dos enquadramentos
sociológicos com a mesma facilidade com que escapava da polícia. Madame Satã
jogava o jogo, invertia os papéis, improvisava a vida, com sua inteligência
iletrada conquistada nas ruas, e driblava as dificuldades com um jogo de pernas
de capoeira endiabrado. Era a vingança tardia dos escravos, do negro que não
esperou a Lei Áurea para chutar a porta da senzala. Era filho de Iansã e Ogum,
do despudor e da guerra. Exu capoeira, terror da sociedade disciplinar e
ordeira, antítese do mundo do trabalho produtivo. Demônio negro que vivia nas
brechas da sociedade normatizada, a perturbar-lhe o sono, que repunha as
energias para o trabalho, e a debochar do sonho cor de rosa da prosperidade
burguesa. Madame Satã era a crítica não
racionalizada do mundo ordenado pelo trabalho produtivo e pela promessa liberal
da ascensão social. É a contrapartida do cinema do sul do mundo à epopeia liberal
de Forest Gump. E Lázaro Ramos não ficou devendo nada a Tom Hanks.
Satã não era uma bicha delicada,
frágil. Era dono de um rebolado macho, de uma voz potente e de um olhar
intimidador. Desmunhecava com charme vigoroso. Foi durante muito tempo
personagem singular do carnaval carioca. Mas encarnava e traduzia o lado menos
apoteótico e mais indisciplinado do carnaval. E neste carnaval, Madame Satã era
rei e rainha, a Carmen Miranda dos desajustados, dos que foram barrados no
american way of life tropical.
Para quem gosta de ser
surpreendido por um filme e ser invadido pela intimidade alheia, eu diria, vá
correndo na locadora mais próxima e reserve a fita. Não espere pelos cinemas,
especialmente dos shoppings. Não é o
tipo de filme para ser exibido nestes espaços. Não atrai público, constrange os
desavisados e leva os donos das salas de cinema a falência. É o preço que se
paga pela ousadia. A sensibilidade cinematográfica não afina no mesmo diapasão
do mercado consumidor de filmes. Glauber Rocha que o diga. Orson Welles também.
Valeu Karim Aïnouz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário