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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

OS GUARANI E OS JESUÍTAS NAS FLORESTAS DO PARAGUAI: A NOÇÃO DE ENCONTRO COLONIAL COMO PERSPECTIVA DE ABORDAGEM HISTÓRICA (SÉCULO XVII).

Os guarani e os jesuítas nas florestas do Paraguai: a noção de encontro colonial como perspectiva de abordagem histórica (século XVII).
Compartilho aqui uma rápida reflexão sobre a noção de encontro colonial originada nas aulas de história da América. Embora as reflexões digam respeito ao século XVII da América Espanhola, acredito que elas tenham alguma validade para pensarmos as complicadas relações – conflitos, negociações, interações e distanciamentos - dos grupos indígenas com as sociedades americanas contemporâneas. Mas este exercício deixo para vocês, caros leitores.

A noção de encontro colonial não é nova, mas também nunca foi suficientemente desenvolvida. Mary Louise Pratt a utilizou para caracterizar as diversas modalidades de contatos entre europeus e americanos no contexto colonial. Da maneira como a emprego, seguindo a autora, sugere uma situação de contato cultural inédito, no sentido de nunca antes vivenciado, que aproxima sujeitos históricos que se desconheciam mutuamente, e que, sob o signo do colonialismo, passam a conviver num espaço comum, trocando bens culturais e simbólicos. Atravessado pelos diversos interesses do colonialismo e dos povos a eles submetidos, este espaço conjugado é desigualmente compartilhado. É também marcado por relações assimétricas de poder e pela sujeição e exploração das populações locais. Estas populações, no entanto, agiam dentro dos espaços delimitados pelo colonialismo com certa margem de autonomia e alguma margem de negociação. Encarar as relações entre índios e missionários deste ponto de vista significa estar atento aos sentidos do encontro colonial para ambos os lados.
No início do século XVII, as florestas subtropicais do antigo Paraguai foram palco de um surpreendente encontro colonial numa das “zonas de contato” forjadas pelo colonialismo ibérico. De um lado, os povos guerreiros guarani, desconhecedores da escrita, caçadores-coletores e cultivadores em constantes deslocamentos geográficos, presos nas malhas do colonialismo, sujeitados a exploração de mão-de-obra e com a sua área de mobilidade geográfica cada vez mais reduzida; de outro, a Companhia de Jesus, uma ordem que se construíra sob o signo da escrita, ponta de lança do catolicismo romano reformado, que chegava à América com o firme propósito de converter os povos gentios. Os jesuítas também estavam em constantes deslocamentos geográficos, mas eram deslocamentos apostólicos. E ao contrário dos indígenas, sua área de mobilidade expandia-se cada vez mais. Quanto mais reduzido ficava o mundo guarani, mais o mundo se abria à ação missionária dos jesuítas. Foram estes deslocamentos, sob a bandeira de Cristo, que trouxeram os jesuítas à América e aproximaram os dois universos.

Os guarani, guiados pelas palavras proféticas dos pajés, tinham na oralidade o meio de transmissão dos conhecimentos, dos valores, dos ritos e das tradições míticas e cosmológicas, enquanto os jesuítas tinham as verdades do deus único reveladas num livro, e na escrita epistolar a sua principal forma de comunicação. Embora a oralidade e a escrita sejam sistemas de comunicação distintos, não estou sugerindo uma dualidade. A comunicação não se restringe ao universo da palavra. Entre a palavra falada e a escrita, abrem-se inúmeras possibilidades de comunicação como a dança, o canto, o desenho, a pintura, os gestos, os sons, que sugerem outras formas de entendimento.  Entre o dito e o escrito insinuam-se a improvisação e o entrelaçamento das formas de comunicação, característicos de um contato cultural marcado pelo ineditismo. Do contato entre a oralidade primária dos guarani e a cultura letrada dos jesuítas ocorreram inúmeros arranjos semânticos e ajustes linguísticos, originando uma espécie de linguagem de conversão. Neste esforço de criar um horizonte de entendimento, a escrita foi um suporte fundamental para o sucesso da catequese. As dificuldades de comunicação impuseram aos missionários a elaboração de gramáticas e catecismos em línguas indígenas. Em outras palavras, operou-se uma redução gramatical da língua falada dos índios aos códigos escritos dos missionários. A gramaticalização das línguas indígenas valeu-se da comparação, isto é, da busca por equivalências entre as línguas indígenas e as línguas conhecidas pelos missionários. Esta busca por equivalências aproximou simbolicamente os dois universos e criou uma linguagem composta de elementos da tradição religiosa e escrituraria católica dos jesuítas e da tradição religiosa e cosmológica indígena.
O encontro entre a mística cristã e a cosmologia guarani, sob o signo do colonialismo, resultou na “invenção” de novos sujeitos: índios cristãos, índios infiéis, feiticeiros endiabrados, padres feiticeiros (O termo invenção é, em parte, inspirado em Edmundo O´Gorman. Segundo o historiador mexicano “a opção pelo termo invenção” é sugestiva pela ambiguidade que possibilita: de um lado, o termo vem acompanhado de toda uma visão da América na qual predomina o fantástico, o fabuloso, o legendário, o mítico; de outro, o termo pode lembrar algo que é construído racionalmente. Por isso mesmo, sua narrativa tem o sentido da construção de uma visão. Sua crítica tem o caráter de uma crítica à historiografia que produziu o conceito de “descoberta”. O uso que faço do termo sugere também os novos arranjos culturais, linguísticos e identitários que resultam da interpenetração entre as formas culturais trazidas pelos conquistadores e as das populações locais. Invenção tem portanto o sentido de criação e recriação de sentidos para o mundo, de formas de convívio, que considera os dois lados da relação colonial). Esta simbiose entre o colonialismo e a evangelização criou, opôs e fundiu no imaginário da conquista personagens como o missionário jesuíta Roque González e o cacique/pajé guarani Ñezú. Roque González, canonizado em 1988, dispensa apresentações. Ñezú era um poderoso líder que concentrava poderes políticos e religiosos, e que vivia num lugar conhecido como Pirapó, no Yjuí, na margem oriental do rio Uruguai. Foi descrito nas crônicas jesuíticas como cacique e feiticeiro. Estes dois personagens podem servir de guias para as nossas reflexões. Por vezes, o jesuíta convertia-se no feiticeiro e incorporava poderes mágicos, andando de povoado em povoado realizando curas e batizando crianças, ou então o feiticeiro se apoderava da mística cristã e improvisava missas no interior das florestas para desfazer o feitiço do padre. Roque foi morto em 1628 na redução de Caaró a mando de Ñezú, até então seu aliado na evangelização do Yjuí. O corpo foi esquartejado, queimado e o coração arrancado do peito. As vestes litúrgicas foram rasgadas e entregues a Ñezú, que as vestiu. Símbolos cristãos – cruzes e a imagem da Virgem Conquistadora - foram destruídos e os batismos realizados pelo missionário foram desfeitos. O chefe guarani se apoderava das vestes do padre, destruía os símbolos que traduziam o seu poder e se apropriava de ritos cristãos para reafirmar o seu poder na comunidade. Depois da morte de Roque, e das diligências para capturar os indígenas envolvidos, Ñezú desapareceu e nunca mais foi visto. A morte do padre Roque, no entroncamento cultural onde as místicas se cruzaram, reúne vários elementos destas apropriações recíprocas e traduz as tensões e fusões culturais daquele momento. A conquista traumática da América aproximou universos mentais e fundiu práticas religiosas, modos de expressão, originando criações híbridas e improvisações culturais, sob o signo do conflito ou da conciliação. A morte do padre Roque foi marcada por este jogo de oposições e fusões, a dupla face do encontro colonial.
Por encontro, entendo o movimento de duas culturas que, em determinadas situações, estabelecem contato e passam a coexistir num espaço compartilhado. A palavra encontro, como forma de abordagem histórica, tem suscitado fortes reações e, frequentemente, alguns mal entendidos. A proximidade do Quinto Centenário de Descobrimento da América reavivou a polêmica em torno dos termos utilizados para descrever a chegada dos europeus à América. As acaloradas discussões se deram em torno das palavras descoberta e encontro. Para alguns não houve descoberta, pois já haviam povos desenvolvidos vivendo por aqui, para outros não houve um encontro, mas um confronto. Outros, negando as duas possibilidades, sustentaram não ter ocorrido nem um encontro, tampouco uma descoberta, mas uma invasão.

Aqueles que condenam o emprego da palavra para se referir à chegada dos espanhóis na América, costumam afirmar que a ideia de um encontro esconde, ou minimiza, o violento choque cultural e a dominação europeia sobre as culturas nativas. Sustentam também que o termo encontro, assim como descoberta, possui um forte conteúdo eurocêntrico e colonialista. Por conta disso, preferem o emprego de categorias como conquista, choque, invasão, encobrimento, supostamente mais críticas. Na coletânea de ensaios intitulada Tempo e História publicada em 1992, organizada por Adauto Novaes, alguns autores discutem a terminologia adotada para descrever os acontecimentos ligados ao ano de 1492. Catherine Darbo-Peschanski, por exemplo, afirma que o termo “encontro” sugere uma perspectiva mais neutra. “Se por ‘descoberta’ entende-se ‘revelação’ e quase ‘nascimento’, a palavra veicula uma ideologia eurocêntrica e colonialista, pois as culturas do continente americano existiram e se desenvolveram bem antes de 1492. Quanto ao ‘encontro’, antes assumiu a forma de um enfrentamento.” Numa linha semelhante de argumentação, Eduardo Subirats diz que em vão “os nomes de encontro ou descoberta (...) tentam encobrir a palavra proibida desde o século XIV: conquista.”

Como tento mostrar, o uso do termo encontro não implica no encobrimento de conflitos nem no ocultamento da “palavra proibida”. A terminologia encontro, ao contrário de encobrir alguma coisa, explora faces não muito visíveis em outras nomeações das relações entre europeus e americanos. Penso que o uso de um termo ou outro – conquista, encontro, invasão ou descoberta – depende muito do que se pretende historiar. Não os vejo como excludentes, mas como termos com diferentes cargas semânticas. Essas expressões mais contundentes, embora focalizem o lado dramático e violento da conquista, conservam um ponto cego em relação ao que escapa à lógica do conflito. Além disso, estes termos empregados para fazer um contraponto à ótica eurocêntrica e colonialista acabam por reforçar o que pretendem denunciar. A invasão, a conquista e o encobrimento são, afinal, as ações do invasor, do conquistador, daquele que encobre. Mudam-se os termos, explicitam-se os mecanismos de dominação, mas os sujeitos, o verbo, a ação, continuam com aqueles que chegam através do mar.
Sustento, em defesa do emprego da palavra, que encontro não tem exclusivamente um sentido de aproximação amistosa, amigável ou amorosa. A palavra indica tanto a possibilidade do entendimento, quanto do choque e do conflito (No dicionário Aurélio, por exemplo, a palavra Encontro sinaliza uma variedade de significados que vai desde um encontro amoroso a uma rivalidade, uma briga: ato de encontrar; luta, briga e reencontro; confluência de rios; encontro de duas pessoas, de finalidade amorosa, sem que as partes se conheçam; ajuste de contas. Ou ainda: ao encontro de, em busca de, em favor de, na direção de; de encontro a; no sentido oposto a, em contradição com, contra). A serviço dos interesses coloniais ou realizando os ideais missionários da Companhia de Jesus, os jesuítas foram ao encontro dos índios para convertê-los e salvá-los, ou então vários grupos indígenas motivados por seus próprios interesses foram ao encontro dos padres para escapar do jugo colonial. Mas o mesmo ideal missionário dos jesuítas os fazia ir de encontro aos costumes indígenas, às suas tradições, ao seu modo de vida, e colidirem contra grupos menos dispostos à sua pregação ou lideranças que se sentiam ameaçadas com a sua presença. É exatamente esta ambivalência da palavra que pretendo explorar. Um encontro tanto pode ser um entendimento cultural como pode ser uma violenta colisão. A ideia de um encontro pressupõe existirem dois lados, mesmo que a correlação de forças não seja igual. Pressupõe também um desconhecimento do outro, de ambas as partes. O contato dos guarani com os primeiros padres no final do século XVI e início do XVII foi marcado por este ineditismo e descobertas recíprocas da alteridade. Já os jesuítas que chegavam à América ou ao Paraguai no século XVII, depois do estabelecimento das reduções, possuíam um conhecimento prévio do que iriam encontrar. As cartas dos primeiros padres, lidas nos colégios da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo, já haviam se encarregado de informar sobre estes povos.  Mesmo assim, o conhecimento do outro é relativo, indireto. Para os guarani os padres que adentravam seus territórios, salvo nos primeiros encontros, também não eram totalmente desconhecidos. A mística e a fama dos “novos xamãs” já corriam o mundo indígena. Este desconhecimento total, ou parcial do outro, é o pressuposto da ideia do encontro, do estar diante imprevisível.

A perspectiva do encontro tampouco encobre as relações de dominação e exploração, apenas as recoloca de outra maneira. Ao invés do dualismo reducionista que opõe dominadores e dominados ou exploradores e explorados, insuficiente para dar conta da rica e complexa dinâmica da vida social, proponho um olhar que inclua as mesclas e improvisações culturais, as formas ambíguas e escorregadias de existência social e o imponderável dos contatos culturais.

O avanço do colonialismo sobre os territórios indígenas da bacia do Prata, aproximou estes universos estranhos e forjou um espaço de convivência. Mas não se trata evidentemente de uma convivência entre iguais. O desequilíbrio de forças em favor do poder colonial e, por extensão, dos jesuítas era enorme. No entanto, se observarmos as primeiras décadas da conquista espiritual, desconsiderando momentaneamente a nossa visão retrospectiva privilegiada que nos mostra a o avanço implacável da colonização, o que vamos encontrar é um quadro de relativo equilíbrio entre os dois lados. E em diversas situações veremos os missionários e conquistadores em visível desvantagem. Não podemos esquecer que naqueles espaços de selvas onde foram erguidas as primeiras reduções o poder colonial ainda não se fazia presente. Embora sob jurisdição espanhola, a autoridade colonial nestes espaços era fraca ou inexistente. Os guarani ainda eram os senhores das planícies, das florestas e dos rios e a entrada dos padres nestes territórios era mediada pelos chefes indígenas (Ñezú afiançou a entrada do padre Roque no Yjuí).  Nestas condições, o encontro entre jesuítas e guarani nas fronteiras difusas do mundo colonial foi marcado por negociações, arranjos e acordos. Mas também foi marcada por tensões, intolerâncias e violentos conflitos, físicos e simbólicos, sobretudo entre os padres e os líderes espirituais guarani, os pajés. Portadores de outra espiritualidade, os inacianos chegavam à região trazendo nas suas palavras eloquentes discursos condenatórios e promessas de salvação. Outros homens, não menos eloquentes, que até então eram os guias espirituais dos guarani, se recusaram a aceitar a redução e opuseram dura resistência aos padres. Quero dizer com isso que o estabelecimento das reduções em território guarani não foi uma simples imposição colonial-jesuítica. Foi um projeto colonial estratégico, mas a sua realização dependeu de mediações e interesses de ambos os lados. É necessário, pois, examinar tanto o lado do redutor quanto o do reduzido.
           
A ideia de um encontro, no sentido de troca cultural, permite fugir das visões dualistas e polarizadas sobre os sujeitos em questão. Os jesuítas ora foram vistos como santos, abnegados protetores e salvadores dos pobres índios, ora foram pintados como demônios, farsantes e intransigentes, que estabeleceram um regime coercitivo nas reduções. Os índios, por sua vez, foram bons ou maus selvagens, dependendo do projeto ou da teoria a ser comprovada. Foram a página em branco ou o canibal inveterado. O mesmo dualismo que demonizava os conquistadores e missionários, vitimizava os índios, transformando-os em meros objetos de catequese, conquista e exploração. Quando não foi vítima indefesa, o índio resistiu heroicamente às imposições do colonialismo na defesa do seu modo de vida. De uma maneira ou de outra, o que prevalece é a lógica colonial ou a denúncia dela. O historiador Héctor Bruit, por exemplo, construiu a célebre tese da dissimulação dos vencidos. De acordo com esta hipótese o fracasso relativo da conquista espanhola deveu-se à resistência camuflada dos índios. Abalados inicialmente pelo trauma psicológico da conquista e movidos, posteriormente, por uma “vontade de resistir”, os índios desenvolveram “uma série de atitudes que enganaram e desorientaram os conquistadores”. A “resistência indígena” à dominação e exploração europeia valeu-se de armas como o silêncio, a teimosia, a mentira e a bebedeira como instrumentos de defesa e de manifestação do inconformismo “perante a nova sociedade que os explorava”. Graças a esta resistência sub-reptícia conseguiram sobreviver à destruição e ao genocídio e conservaram as suas “tradições culturais”. Bruit examina a conquista hispânica e a sociedade colonial a partir da dualidade entre dominação e resistência, vencedor e vencido. De um lado, os espanhóis invasores e exploradores, impondo sua dominação, seus valores e crenças, de outro, os índios explorados, massacrados, resistindo à destruição das suas culturas. Esta perspectiva que aprisiona o índio dentro de categorias como vencido, explorado e massacrado, acaba por vitimizá-lo e não percebê-lo como sujeito de ação, mas apenas de reação a uma determinada situação. Restava aos vencidos resistir à aculturação. Não existe nesta lógica a possibilidade da integração, pois isto significaria a concretização da conquista hispânica.

Bruit questiona a noção da miscigenação e o seu corolário, isto é, a criação de uma nova sociedade a partir da fusão de aspectos das culturas indígenas com traços da cultura europeia. A hipótese da miscigenação encobriria o fracasso relativo dos conquistadores perante as performances indígenas.  Esta abordagem supõe uma impermeabilidade cultural que impede as mesclas, as mestiçagens. Os espanhóis parecem vestir uma armadura cultural impenetrável, enquanto os índios fingem incorporar os novos valores para preservar alguma essência cultural de um passado longínquo. Algumas situações que sugerem um hibridismo entre formas religiosas indígenas e o catolicismo, Bruit vê um jogo de esconder indígena que teria “claramente” enganado os espanhóis. Recorrendo a um fragmento da crônica peruana de Poma de Ayala, revela as máscaras usadas pelos índios para ludibriar os conquistadores e agir sobre a sociedade que eles organizavam: “Que os mencionados índios bêbados, cristãos, sabendo ler e escrever, usando rosário, vestidos como espanhóis, com colarinhos, e parecendo santos, na bebedeira falam com o demônio e reverenciam as guacas, os ídolos e o Sol.”
         
Héctor Bruit não enxerga na descrição do cronista uma possível fusão do catolicismo com a espiritualidade andina, mas uma dupla atitude indígena. Os traços espanhóis e cristãos incorporados pelos índios são interpretados como um jogo de faz de conta, de aparência e opacidade, sugerindo um falso efeito de integração. Os gestos dos indígenas e dos conquistadores são percebidos exclusivamente a partir da relação colonizador/colonizado. Esta dicotomia, que secciona os sujeitos em identidades fixas, é tomada como um dado e não como categorias historicamente construídas, que respondiam a determinadas expectativas. Em estudos mais recentes de historiadores, antropólogos e etno-historiadores, têm-se sistematicamente apontado o eurocentrismo e o reducionismo destas abordagens. Examinando e revisitando o tema do encontro entre culturas, alguns pesquisadores vêm focalizando as mesclas culturais e as redefinições de identidades num mundo em transe pelos efeitos da conquista. Com isso, estão se multiplicando pesquisas que dedicam especial interesse pelas culturas indígenas e pelas formas como reagiram/interagiram com os europeus. Para além das construções binárias, e na esteira destes novos estudos, índios e jesuíta são vistos aqui a partir de uma multiplicidade de olhares, relativos à complexidade das formas de contatos que estabeleceram.
Ñezú e Roque González são os fios condutores privilegiados para refletir sobre as diversas faces deste encontro. Não os considero como representativos dos jesuítas e dos indígenas, tampouco de uma suposta cultura ocidental e outra indígena. Sob vários aspectos, o jesuíta crioulo que virou santo e o feiticeiro guarani perseguido e desterrado, são figuras singulares e deslizantes do universo colonial que escapam a uma tentativa de classificação: um como modelo de evangelizador, o outro como modelo de resistência indígena. Eles traduzem o jogo de interesses dos dois lados, as negociações e as fusões de horizontes simbólicos, que presidiu o colonialismo, quer sob o signo do conflito quer da conciliação. A morte do padre Roque é um acontecimento de enorme apelo simbólico que revela as incertezas, as angústias, as aproximações e as diferenças irredutíveis de ambos os lados do encontro. Por isso mesmo é um acontecimento que nos abre inúmeras possibilidades de interpretação sobre um tema já bastante visitado pelos historiadores.



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