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quarta-feira, 27 de julho de 2016

E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.

E ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: OS DIFERENTES SENTIDOS DAS CAMINHADAS E A PERCEPÇÃO HISTÓRICA DAS DISTÂNCIAS.


“É bom colecionar coisas, mas é melhor caminhar. Porque caminhar também é uma forma de colecionar coisas: as coisas que a pessoa vê, as coisas que a pessoa pensa” (Anatole France).











Idoso caminhando no campo de centeio. Óleo sobre tela (Laurits Andersen Ring). 



Pensar historicamente, por mais óbvio que possa parecer, é entender que as “coisas” não são sempre do mesmo jeito.  De uma maneira mais sofisticada, é entender que “aquilo que foi nem sempre é” (Foucault). As distâncias, em termos culturais, que nos separam de passados nem tão distantes são tão grandes que, por vezes, não nos reconhecemos nas narrativas que ouvimos de pessoas mais velhas. Olhar historicamente para trás, sem perder de vista a nossa condição no tempo, é a melhor forma de nos darmos conta das mudanças de valores, de comportamentos, das percepções de tempo e espaço (longe, perto) que singularizam o nosso presente. Embora a referência ao filme no título possa denotar o contrário, o post é um livre exercício de descontinuidade histórica.

Quando criança adorava ouvir as histórias do meu pai sobre as enormes distâncias que percorria, a pé ou a cavalo, para trabalhar na feira com meu avô ou visitar um parente no interior de Santa Maria (RS). As narrativas de vidas de pessoas mais velhas, ainda que com boas doses de exagero e de romantizações, são algumas das melhores formas de retorno ao passado. Na década de 1950 meu pai namorava uma menina numa localidade de Santa Maria chamada Caturrita. Saía de casa bem cedinho, antes do sol nascer, andava o dia todo a pé e chegava a tardinha. No dia seguinte, bem cedinho, iniciava a marcha de volta. Na ida, levava presentes. Na volta, trazia algum pedaço de carne e banha de porco, boa para fritar peixes e modelar o cabelo (nos tempos da brilhantina, os rapazes pobres do interior usavam banha de porco como cosmético). Quando perguntado sobre a distância, dizia sempre: “não era longe não, era logo ali, era um pulinho.”

Ouvia curioso e ficava imaginando as longas caminhadas e as dificuldades encontradas pelo caminho (as estradas eram de chão batido, as picadas no meio da mata eram perigosas e a travessia dos rios e córregos era sobre pinguelas improvisadas ou um troco de árvore). Anos depois, como historiador e pesquisador, procurando boas histórias, me deparei com narrativas semelhantes. Ouvindo os moradores mais velhos de cidades do Alto Vale do Itajaí (Santa Catarina) sobre os primeiros tempos da colonização fiquei sabendo das longas caminhadas para chegar às localidades, entre as décadas de 1920 e 1950. A região onde se situam os municípios de Petrolândia e Ituporanga, antes conhecidas respectivamente como Perimbó e Salto Grande, foi povoada por colonos que subiam de colônias mais antigas como Santo Amaro, Angelina e São Bonifácio, a pé, empurrando carroças carregadas com pertences, em caminhadas que duravam mais de uma semana. Uma viagem de carro hoje percorre essa distância em uma hora. (A região para onde se dirigiam era habitada sazonalmente pelos xokleng e temporariamente por tropeiros que subiam ou desciam de Lages). Naqueles tempos, tudo estava por ser construído e as ligações entre os lugares eram por estradas ou picadas pouco transitáveis. Os vínculos com a antiga colônia, fundamentais para se estabelecer nas novas áreas, os obrigavam amiúde a percorrer grandes distâncias. Seu Evaldo Schistel, numa divertida conversa, contou que para visitar parentes ou “buscar uma coisa ou outra” em Angelina, distante 130 km aproximadamente, andava 30 km num dia. Era “fácil”, dizia, uma “coisa normal’. Tudo era muito longe. Para ir à missa, para visitar a namorada ou para buscar mantimentos na venda mais próxima, se não tivesse um bom cavalo, o jeito era caminhar. Mas isso não desanimava aquela gente, especialmente se a caminhada os levasse para um baile em Angelina.

Caminhadas longas, em terrenos acidentados, ou no meio da mata, é hoje um esporte radical. O praticante deve seguir uma série de recomendações, usar roupas especiais e escolher bem o modelo de tênis que melhor responda à intensidade da caminhada. Meu pai andava de sapatos, e vestia calça de tergal, os senhores que entrevistei também. O máximo que usavam para se proteger do sol forte era um chapéu. As sensibilidades e as susceptibilidades eram outras. O perigo não era o sol, eram as cobras, os “bugres”.

Antes, caminhava-se por necessidade. Não tinha outro jeito. Em alguns lugares mais acidentados nem cavalo adiantava. Os colonos abriam picadas na mata, que mais tarde viravam estradas, e iam desbravando os caminhos.  Hoje se caminha por esporte e para manter a saúde em dia. Embora não como antes, as longas caminhadas ainda fazem parte da rotina de muita gente no interior do Brasil. Quando estou subindo a Serra, rumo a Petrolândia/Ituporanga, vejo, nas laterais das estradas, pessoas caminhando, de chinelos de dedos, muitas vezes, vindo da roça ou da casa de parentes (imagino). Olho para trás, para frente e para os lados e não vejo um ponto de partida nem um possível ponto de chegada. 

Não há dúvida de que as distancia encurtaram e o ato de caminhar adquiriu novos significados. As distâncias encurtaram com os sofisticados meios de transportes. O que era longe ficou perto. Todavia, o que parecia perto para o seu Evaldo parece tão longe para mim. Uma viagem de duas horas, de Florianópolis a Ituporanga, no conforto do carro, com música e água gelada, parece uma eternidade.
É isso. Fico por aqui. Vou calçar meu tênis, fazer alguns alongamentos e caminhar meus seis quilômetros na beira mar sul. Seis quilômetros, ou mais, meu pai andava para ir à escola, todo dia. E carregava o material escolar.  Os tempos são outros, as prioridades, as sensibilidades e as urgências não são as mesmas.

Let´s walk? A motivação do meu pai era a namorada, a do seu Evaldo era um baile em Angelina. A minha? Vamos andar que eu te conto. Gosto de pensar e conversar enquanto caminho. Caminhadas são dispositivos filosóficos. Nietzsche andava para pensar, pois “os grandes pensamentos, dizia, resultam da caminhada”. Onde quer que estivesse, se entregava à longas caminhadas diárias, que podiam chegar a 8 horas. Depois, se entregava à reflexão sistemática e à escrita. Deixou um aforismo sobre escrita e caminhadas: "Não escrevo apenas com a mão: o pé também quer sempre participar". Rousseau, que também gostava das caminhadas, disse que a sua mente só trabalhava junto com as pernas. Caminhar para eles era um ato filosófico. Aristóteles lecionava caminhando pelo peripatos, uma alameda dos jardins do Liceu. Jesus pregava aos seus discípulos enquanto caminhava. Caminhar era um ato pedagógico. A fórmula de Santo Agostinho de “resolver problemas caminhado” (solvitur ambulando) reforça as propriedades inspiradoras e reflexivas de uma boa caminhada. A arte de caminhar ajuda a organizar as ideias e a pensar as coisas com mais clareza. Henry Thoureau, no século XIX, mergulhava nos bosques de Massachussets em longas caminhadas, para se encontrar consigo mesmo. Deixava tudo para trás, a cidade e os afazeres diários, e voltava aos seus sentidos. Colocava “um pé metodicamente adiante do outro” e seguia em frente. Nas suas metacaminhadas, refletia, a cada passo, sobre o significado de estar caminhado. Eram caminhadas autoconscientes. “Walden, a vida nos bosques”, publicado originalmente em 1854, é, em parte, uma elegia e uma reflexão sobre as caminhadas e um manifesto radical contra a civilização industrial. Caminhar era um ato vital.

Certamente meu pai e o seu Evaldo pensavam enquanto caminhavam. Pensavam nas coisas deles, nas chances de melhorar de vida, inventavam planos, avaliavam as situações e resolviam seus problemas andando. Não era o andar meditativo de Santo Agostinho, com as mãos atrás das costas, nem o andar aristocrático e pausado de Nietzsche. Era a marcha das urgências cotidianas, da sobrevivência.

As caminhadas, sejam elas filosóficas, ecológicas, terapêuticas, forçadas, meditativas, laborais ou pedagógicas, acompanham a trajetória humana. De Aristóteles ao seu Evaldo, as pessoas sempre andaram. O que não quer dizer que caminhar é simplesmente caminhar, independente do tempo e do lugar. As caminhadas têm suas próprias historicidades. Não são práticas atemporais. Perder de vista os aspectos que as singularizam em diferentes momentos e contextos é perder o pé da história, do sentido histórico. Os próprios adjetivos elencados acima nos dizem muito sobre os diferentes sentidos e motivos que envolvem o ato de caminhar.

Vamos caminhar enquanto estamos vivos. Os mortos só caminham no cinema!


quarta-feira, 13 de julho de 2016

MEU NOME: a constância que se impõe à inconstância do meu ser.

MEU NOME: a constância que se impõe à inconstância do meu ser.









Glossário dos Nomes Próprios – Alex Cerveny - 2015.








Nomes são entidades imutáveis, totalizantes e unificadoras. São regularidades que se impõe à trajetória irregular da nossa existência.  Independente de quem fui nos meus muitos passados ou de quem virei a ser nos possíveis  futuros, o nome que recebi  e carrego desde o nascimento é uma constante que se sobrepõe à inconstância do meu ser.

Nossos nomes, a face mais conhecida de nossas identidades sociais, são confirmados nos ritos batismais e institucionalizados nos documentos que portamos. Por nos acompanharem do nascimento à morte, passam a impressão de que nossas vidas correm linearmente, num fluxo contínuo e coerente, e que seguem uma sequência lógica inabalável e inevitável de eventos. Na bela definição de Paul Ziff, o nome próprio é um ponto fixo num mundo em movimento. Ou, à minha maneira, um dado estático no turbilhão da vida, indiferente às metamorfoses do nosso ser social.

O efeito uniformizador dos nomes sobre as nossas histórias de vida é semelhante ao da filosofia da história sobre o conjunto disperso e caótico de dados do passado humano. As filosofias da história tentam organizar o caos do passado, lançando sobre ele um olhar generalizante e totalizante, visando capturar teleologicamente o movimento contínuo da história, dotando-a de sentido e de finalidade. Tal como os nomes próprios, as filosofias da história emprestam regularidade e uniformidade ao curso absolutamente irregular da história.

Nos acostumamos e nos afeiçoamos aos nossos nomes, por mais estranhos que sejam. Não nos imaginamos sem eles. Não nos imaginamos com outros nomes. Nosso nome é o nosso nome e pronto. Não poderia ser outro. Embora seja só um nome, dado por um motivo qualquer, supomos que ele traduz a essência de quem somos. Alguns vão buscar na etimologia os significados mais profundos de seus nomes, e se convencem de que eles dizem realmente algo importante sobre nós. Outros recorrem à numerologia para descobrir o seu número pessoal (resultados da soma das letras do nome) e saber mais sobre suas personalidades. Crentes de que os números carregam significados e influenciam em nossos destinos, alteram os nomes para alcançar o número que melhor realça os aspectos positivos, ou corrige os negativos, da sua personalidade.

 O nome, como um “designador rígido” (Pierre Bourdieu - A ilusão biográfica), é um atestado da nossa identidade social através dos tempos e em todos os espaços. O nome que recebi, Paulo, foi uma homenagem ao meu pai, também batizado de Paulo. Os ritos de nominação inauguram nossa identidade social. Ou, como disse Paul Ziff, institui uma identidade social para o indivíduo biológico. Aos dois anos de idade, sem a menor noção de quem era, eu já era o Paulo. Já atendia pelo nome, sem entender direito o que isso significava. Estava dado ali, no berço, o “designador rígido” da minha identidade. Aos dez anos, na escola, era também o Paulo. A chamada diária me lembrava do meu nome, de quem eu era. Na preparação e na cerimônia da crisma, sacramento católico de confirmação do batismo, lá estava o Paulo. Aos vinte anos de idade, anarquista, ateu e sem a menor noção de quem seria no futuro, em nada lembrava o Paulo dos 15 ou dos dez anos de idade. Com vinte cinco anos, na universidade, cursando história, já era bem diferente do Paulo de cinco anos atrás. Abandonei os cabelos compridos e minha visão politica sofreu sensíveis alterações. Mas continuava sendo o Paulo. Aos trinta anos, em quase nada lembrava o Paulo de dez anos atrás. Morava noutra cidade, convivia com pessoas que até então não conhecia e levava uma vida bem diferente das anteriores.  

A “constância nominal” atravessa os tempos. Fui, sou e sempre serei o Paulo. Embora meus amigos inseparáveis da adolescência vissem em mim hoje um perfeito estranho, continuaria sendo para eles o Paulo. Agora, bem distante dos trinta anos, sou outra pessoa. Não evoluí, como dizem. Eu mudei. Em vários aspectos. As certezas de outros tempos deram lugar às dúvidas. Quando me pego, por algum motivo, relembrando coisas do passado, por certo que vejo lá atrás o Paulo de hoje. Mas, na maioria das vezes, a despeito da imperturbável continuidade e da regularidade que o nome sugere, vejo o curso da minha vida bastante irregular e descontínuo. Não sei o que serei, nem onde estarei, daqui vinte anos, mas continuarei sendo o Paulo.

Nosso nome define nossa identidade “em qualquer universo possível” (Saul Kripke).  Em casa, sou Paulo. Na sala de aula, com os alunos, embora muito diferente daquele Paulo, continuo- o sendo. O Paulo namorado/esposo, ou o que se apresenta aos amigos, é bastante diferente do professor, mas continua sendo o Paulo, que é também assim chamado no futebol. É claro que sou a mesma pessoa, e linhas da minha personalidade são reconhecíveis aqui e ali, mas revelo e apresento facetas distintas em diferentes ambientes. Seguramente meus colegas do futebol não me reconheceriam em sala de aula. Não é a mesma pessoa, diriam. Todavia, meu nome é uma Identidade fixa que me acompanha indiferente às múltiplas facetas e identidades que assumo na vida.


E os apelidos e os diminutivos dos nossos nomes? São designadores flexíveis das identidades plurais que nos habitam? São sugestões nominais de como os outros nos vêm? Tive muitos apelidos, na escola, no futebol, em casa. Alguns carinhosos (dão, paulinho, paulão), outros de pura sacanagem (diabinho, maradona) e outros ainda por coisas que disse ou fiz de bom ou de engraçado (negrão, mestre). Mas essa reflexão eu deixo com vocês.

sábado, 14 de maio de 2016

LENDA, MEMÓRIA E HISTÓRIA: A LENDA DA MBOI GUAÇU E OS ”CAUSOS” QUE MINHA AVÓ GUARANI CONTAVA.

LENDA, MEMÓRIA E HISTÓRIA: A LENDA DA MBOI GUAÇU E OS ”CAUSOS” QUE MINHA AVÓ GUARANI CONTAVA.

   
Dedicado à dona Adiles e à dona Sebastiana, duas mestiças guarani contadoras de “causos”.
 
Minha avó paterna (Adiles Andrades de Oliveira), uma mestiça guarani, adorava contar “causos”. Sentada ao lado do fogão à lenha, com uma cuia de chimarrão na mão, voz grave e olhar afetuoso, contou-me histórias que ouvira de sua mãe, uma índia guarani. Lembro vagamente dos “causos”. As imagens e as falas são lacunares, como as lembranças de um sonho. Mas, à medida que me ponho a rememorar, uma imagem puxa a outra, e situações, pessoas e coisas que foram importantes para mim, mas que estavam esquecidas, reaparecem e se tornam presentes novamente como se nunca as tivesse esquecido. Um dos “causos”, até onde a memória alcança, parecia ser uma variação descontextualizada da lenda da cobra grande de São Miguel, adaptada às necessidades pedagógicas de uma avó às voltas com netos endiabrados. “A cobra, grande que nem um trem, dizia ela, dorme enroscada no sino da igreja. Ela só acorda com o barulho das crianças arteiras. E quando acorda, ela come as crianças que não respeitam os mais velhos.” Do quintal da casa avistávamos o campanário da linda igreja de Santa Catarina, do outro lado da ferrovia.  Não havia dúvidas de onde a cobra morava. A analogia com o trem não era sem motivos. O trem passava em frente à casa dos meus avós e minha avó tinha verdadeiro fascínio pela velha Maria Fumaça. Sempre que podia subia no trem, alegre feito criança, e ia para Porto Alegre visitar as filhas, os filhos e os netos. Nós corríamos para uma parada de trem improvisada, no bairro onde morávamos, e abanávamos para ela, que devolvia os acenos com a vasta cabeleira grisalha ao vento. A cobra grande de ferro emitia o potente apito e seguia em frente, serpenteando os morros, atravessando rios e pontes. Vó Adiles, abastecida de chimarrão e um vasto repertório de “causos”, era aguardada com entusiasmo pelos netos que moravam na capital. Ela sabia como poucos entreter as crianças e mantê-las ao seu redor.

Tive a sorte de ter tido avós contadores de histórias. Cresci ouvindo as narrativas deles, e depois dos meus pais e tios, sobre as “coisas do tempo antigo” (como eles diziam). Eram histórias de pescarias, de assombrações, dos bailes antigos, dos namoros, das brincadeiras, das coisas que os seus avós contavam. Às vezes eram histórias despretensiosas, para entreter apenas. Mas quase sempre elas encerravam lições de vida e aprendizados éticos (embora eles nunca tenham empregado esta palavra). Vó Adiles falava devagar, com longas e significativas pausas. Olhava para baixo, balançava a cabeça em silêncio, remoendo o que havia dito, e voltava à narrativa. A criança que fui, a maneira como construí meu mundo, e o adulto que me tornei, foram marcados por estas experiências.  

Mais ou menos quinze anos depois da morte da minha avó, experimentei uma estranha sensação de familiaridade, um déjà vu, lendo algumas lendas recolhidas da tradição popular por Barbosa Lessa (O boi das aspas de ouro. Contos gauchescos. 1956). Os temas, o vocabulário e a sintaxe coloquiais, e as expressões usadas em alguns “causos” (pruxirão, feemeiro, bichos malevas, chinas, moita), evocavam as narrativas que iluminaram minha infância. O trem já não apitava com a mesma regularidade de antes, a Maria Fumaça fora substituída pela locomotiva a diesel, o velho campanário fora desmistificado, desde que passei a jogar futebol de salão na quadra da igreja, mas o gosto pelas narrativas populares já estava inoculado em mim.

As lendas de um povo, guardadas na memória e transmitidas pela tradição oral, traduzem, em linguagem simbólica, valores, crenças e momentos significativos do passado. Por meio delas, penetramos no modo particular de significação do mundo e de apreensão da realidade de um grupo. Os guarani exprimem seu mundo por meio de um rico repertório de mitos e lendas. Uma delas é a mboi guaçu (cobra grande), uma antiga lenda missioneira, surgida provavelmente durante o período de dispersão das missões jesuíticas, em algum momento entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, na região dos sete povos, no RS, que se conservou na tradição oral guarani, especialmente entre as mulheres. Durante dois séculos foi repassada de mãe para filha (até chegar à minha avó). A cobra grande é uma figura mítica da mitologia guarani. A lenda da mboi guaçu é, possivelmente, uma variação, ou uma adaptação, do mito ancestral. Barbosa Lessa, em 1951, ouviu a lenda de uma mestiça guarani, de 97 anos, chamada Sebastiana Gonçalves de Oliveira, que vivia num rancho na região missioneira do Rio Grande do Sul, nas proximidades das ruinas de São Miguel. Sebastiana ouvira o “causo” de sua mãe que, por sua vez, ouvira de sua mãe, avó de Sebastiana, “que era do tempo dos padres” (ou seja, do tempo em que os jesuítas administravam as missões). Muitos, disse a velha guarani, vêm por aqui, olham a igreja, sobem na torre, descem na escada, “mas não tem olhos para enxergar aquela massa preta, hoje dura que nem pedra, que escorreu do alto da escada”. A massa preta eram restos da mboi-guaçu que se instalou na torre da igreja de São Miguel e, “de tanto comer carne tenra, estourou”. Nas três ou quatro vezes que estive nas ruínas da igreja fiquei horas olhando para a torre e para a escada, procurando vestígios da lendária cobra. Os “causos” de minha avó se misturavam com a narrativa de Sebastiana e a torre da igreja em ruínas parecia-me atavicamente familiar.


Barbosa Lessa cedeu a palavra à Sebastiana, que inicia sua narrativa nos reportando aos tempos de prosperidade e pujança nos Sete Povos das Missões:

“Pois quando eu era pequena, minha mãe sempre me falava das coisas lindas do tempo em que São Miguel era cidade grande, com muita gente vivendo por aqui. Descrevia as procissões, as danças, os trabalhos de pruxirão, a colheita de erva mate com festas muito bonitas. Coisas que ela nunca viu, mas que ouviu dizer pela mãe dela, que era do tempo dos padres. Minha mãe conta que, quando os padres foram corridos, tudo isso se parou mui triste e abandonado. Quase todos os homens tinham sido reculutados para as guerras, de quando em quando apareciam para reculutar também os guris já mais grandotes e nas casas junto da igreja só tinham ficado as mulheres, com as crianças pequenas e um que outro velho já quase sem serventia.”

Aqueles tempos foram “mui brabos, continua Sebastiana, porque era só feemeiro que vivia em São Miguel. Caçar mulher não sabe. Laçar gado, também não. Cuidar da lavoura até a colheita, sim. Mas derrubar mato e escorraçar os tigres e outros bichos malevas, também não. Sem derrubar mato, plantação não tem. E em vez do mato ser vencido, foi ele que foi vencendo: invadiu cidade adentro, entrou pelos restos de rua, subiu pelas paredes dos ranchos, foi botando tudo abaixo”. Buscando resguardo, as índias levaram seus pertences e filhos para o interior da igreja, na certeza de que o mato não chagaria até lá. E o mato foi chegando, chegando, e ali parou. “Durante o dia, as mulheres levavam seus filhos e os animais para os restos de lavoura, e ali ficavam trabalhando, ali comiam, ali descansavam o corpo quando a canseira era muita”. Antes da noite chegar, voltavam para dentro da igreja, acendendo um fogo à porta para manter os tigres à distância.

Mas eis que um dia a mboi-guaçu, “que sempre tinha vivido no mato”, avançou junto com este e chegou até a igreja de São Miguel. “E quando o mato, se agarrando em cipós, trepou parede acima, ela trepou também. E quando o mato, chegando ao alto, vingou numa das torres, a cobra ali se aninhou, moita e paciente”. Até que um dia a cobra sentiu fome. Tanta fome que se enroscava nas cordas do sino e se pôs a badalar, badalar. “Badalava, badalava, e o grito dos sinos entrava pelo ouvido dos viventes, para bater lá dentro, lá no fundo, chicoteando os nervos, como se fosse uma tropilha inteira pisoteando o pensamento, machucando o coração”. Até que um dia, uma das “chinas” decifrou mistério. Era a cobra que sentia fome. Enlouquecida de tanto sofrimento, a “china” pegou sem filho pelos braços e o levou para a cobra. “Assim foi por muito tempo (...) para aquietar a maldita”. Mas um dia, de tanto comer carne, a cobra foi inchando, inchando, e estourou. “Esta é a história que contava a minha avó guarani”, termina Sebastiana.


A lenda é uma representação alegórica da decadência dos Sete Povos das Missões que se verificou após a saída dos jesuítas e a diáspora masculina para as guerras e o trabalho nas estâncias. Na narrativa de Sebastiana podemos perceber a deterioração das reduções, outrora pujantes, e a difícil situação das mulheres sobre as quais, na ausência dos homens, recaiu a responsabilidade de todo o trabalho. O mato se aproximando e tomando conta da aldeia é a metáfora da dispersão e abandono dos povos. A lenda da mboi-guaçu, conservada e transmitida pelas e entre as mulheres, e ainda muito viva na memória de Sebastiana, é o modo muito particular dos guarani se referir ao passado e contar o que se sucedeu depois da partida dos padres. 

Barbosa Lessa, na apresentação da lenda, interpretou o sacrifício que as mães faziam ao entregar os filhos para saciar a fome da cobra à dor de entregar os filhos ao recrutamento militar: “Se, dentre os leitores, encontrar-se alguém propenso a traçar simbolismos, talvez possa perceber, na história da Mboi-Guaçu, certa correlação com a compreensível angústia que as pobres viúvas guaranis – vítimas da guerra, e desamparadas em sua desdita – por certo sentiam ao entregar seus filhos às forças de recrutamento militar (BARBOSA LESSA, 1958).

Da Tradição Oral ao Folclore: o embalsamamento da lenda.

Ao dar forma escrita à lenda contada por Sebastiana, Barbosa Lessa, ao mesmo tempo que ajudou a preservá-la do esquecimento, contribuiu para petrificá-la. Explico-me. As interações da escrita com a oralidade são ambivalentes. A escrita é uma espécie de cápsula do tempo que captura as narrativas orais e lhes empresta forma definitiva (admitindo que os significados possam mudar) e longevidade temporal. Convertida em texto escrito, as lendas passam a circular em diferentes contextos sociais e narrativos. Foi o que aconteceu com a lenda da mboi-guaçu. Depois de capturada pela escrita, projetou-se para fora do mundo oral guarani e alcançou um vasto público de leitores. Porém, ao recolhê-la da tradição oral e incorporá-la ao repertório de lendas gauchescas, ou ao folclore gaúcho, Barbosa Lessa, mesmo sem ter a intenção, suprimiu-lhe a vitalidade e destituiu-a de seus significados culturais mais profundos. A lenda, contada no círculo familiar guarani, tinha sentidos que o leitor de Barbosa Lessa desconhece. No entanto, lida como folclore tradicional do Rio Grande Sul, ela passa a ter novos significados para os leitores que os guarani desconheciam. O folclore é, em certo sentido, o embalsamamento das lendas e dos mitos. Preserva-se o conteúdo, esvaziam-se os sentidos originais e criam-se novos significados.  Para mim, por exemplo, historiador e leitor de Barbosa Lessa, a lenda da cobra grande é uma alegoria da decadência das reduções guaraníticas, surgida logo após expulsão dos jesuítas dos territórios portugueses. Mas eu só pude chegar a esta interpretação porque a lenda chegou até mim, na forma escrita, por meio de um livro.

A incorporação da lenda guarani ao folclore rio-grandense merece um pouco mais de atenção. O livro de Barbosa Lessa, do qual a lenda faz parte, foi publicado na década de 1950 em meio às acaloradas disputas historiográficas no Rio Grande do Sul, no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico, em torno da admissão ou não da história das missões jesuíticas ao patrimônio histórico e cultural rio-grandense. Parcela significativa da intelectualidade da época era contrária à ideia de conceber as missões guaraníticas, controladas pelos jesuítas, em território espanhol, como parte da história do riograndense. No início da década de 1990, Ieda Gutfreind publicou um importante estudo historiográfico situando os historiadores em dois grupos: o platino e o luso. O grupo platino sustentava a decisiva participação dos jesuítas e das missões guaraníticas na formação do Rio Grande. O grupo luso, por sua vez, desconsiderando as influências de origem jesuítico-espanholas, entendia que a formação se devia exclusivamente aos lusitanos (bandeirantes, açorianos e portugueses). Barbosa Lessa compartilhava da visão histórica do grupo platino. A publicação da mboi-guaçu no livro “O Boi de Aspas de Ouro” é uma tomada de posição. Ao incorporar a lenda guarani à memória oficial rio-grandense afirmava-se a presença e a importância da “matriz indígena” da formação do estado.

A lenda, narrada em primeira pessoa por uma mulher indígena, também exprime os embates da época. Próximo do grupo do historiador Mansueto Bernardi, que procurava ampliar a noção de sujeito histórico na formação da cultura e da identidade do RS, Barbosa Lessa registrava, por meio de Sebastiana, a voz do “povo”, o sujeito histórico esquecido pelos historiadores que cantavam em prosa e verso os feitos de um passado elitista e militarizado. O projeto de Lessa era trazer para o centro da história riograndense as “gentes humildes”, o povo simples, guardião do passado vivido e portador dos substratos psíquicos guardados na tradição oral capazes de revelar os sentidos profundos da história regional. Sebastiana era a voz do povo que a historiografia elitista havia silenciado. Representava os excluídos da história riograndense, os guaxos da historiografia (Para Lessa os guaxos eram os tipos comuns do que chamaríamos hoje de uma “história vista de baixo”: peões, mulheres das estâncias, chinocas, mestiços e descendentes de escravos). Joana Figueiredo observou bem que o “guaxo não é só a figura metafórica do filhote sem mãe, que não é amamentado e está só no mundo, mas traz uma carga emocional destinada a todos os gaúchos órfãos em sua perspectiva da vida” (Tese de Doutorado).

Outro ponto que merece ser observado é o destaque, inovador para época, que Barbosa Lessa dá à mulher na formação do caráter regional. A mboi-guaçu é uma história de resistência indígena feminina. Ao lado ou na ausência dos homens, como acontecia também nas estâncias, eram elas que comandavam a luta cotidiana pela sobrevivência.

“Pisss... a Cobra tá ouvindo”: a narrativa pedagógica da infância.


Minha avó não era historiadora, nunca leu um livro, mas era uma boa contadora de “causos”, como o Negro Donato, domador de cavalos que contava “causos” à beira da fogueira para o menino Barbosa Lessa. Até hoje, sempre que vou a Santa Maria, observo demoradamente o campanário da velha igreja. Da casa do meu irmão, localizada a 200 metros de onde morava minha avó, o campanário se ergue numa elevação do terreno, ao pé do morro do Monumento, por sobre casas e prédios, testemunho imóvel e silencioso, como as ruínas da igreja de São Miguel, da marcha implacável do tempo e das mudanças à sua volta. Não reconheço mais o bairro, as pessoas, as ruas, mas a igreja esta lá, inalterada, exatamente a mesma de 40 anos atrás. Lá do alto, noutros tempos, a cobra imaginária e pedagógica espiava minhas molecagens. A torre da igreja era o meu panóptico. Não importava onde me escondesse, a cobra estava sempre me vendo. O toque do sino era um aviso, um sonoro puxão de orelhas para os meus deslizes. Vó Adiles dizia, com o dedo indicador encostado nos lábios: “pissss... a cobra tá ouvindo”.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

“BELA, RECATADA E DO LAR”: A EXALTAÇÃO DOS ATRIBUTOS DE MARCELA COMO ELOGIO ANTECIPADO DA PROVÁVEL ADMINISTRAÇÃO DE MICHEL TEMER.

“BELA, RECATADA E DO LAR”: A EXALTAÇÃO DOS ATRIBUTOS DE MARCELA COMO ELOGIO ANTECIPADO DA PROVÁVEL ADMINISTRAÇÃO DE MICHEL TEMER.


Na década de 1960 as revistas femininas traziam campanhas publicitárias de marcas de sabão em pó que prometiam remover as sujeiras mais pesadas. Donas de casa, felizes e recatadas, exibiam sorridentes as marcas de sabão.  


Onde eu quero chegar com isso?
Vamos lá
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Antecipando-se ao resultado do processo de impeachment, a revista veja publicou uma matéria sobre Marcela Temer, esposa do já aclamado presidente Michel Temer, chamando-a de “quase primeira-dama”. O advérbio “quase”, tomando o texto no seu conjunto, e considerando onde foi publicado, traduz o desejo e a ansiedade pela posse (É como se dissessem: “estamos quase lá”).  A matéria, assinada por Juliana Linhares, destaca, em tom elogioso, as qualidades de Marcela e a sorte de Temer pela esposa que tem. Os atributos sublinhados pela jornalista – beleza, recato e “do lar” – remetem ao ideal feminino da primeira metade do século XX, que perdurou até a década de 1960. O texto cheira a coisa velha, ultrapassada, na contramão das conquistas femininas das últimas décadas, e soa como bajulação à proclamada e badalada futura primeira-dama. A primeira impressão é que estamos lendo uma daquelas revistas femininas da década de 1950, escrita por homens. As qualidades destacadas em Marcela, e as palavras escolhidas para enuncia-las, são as mesmas que identificavam o ideal feminino no Brasil de cem anos atrás.

Marcela, segundo o cabeleireiro Marco Antonio de Biaggi, citado na matéria, pode vir a ser a “nossa” Grace Kelly: é “educadíssima” e, a exemplo do que faz Athina Onassis, deixa os seguranças do lado de fora quando vai ao salão de beleza. Biaggi está se referindo provavelmente à Grace Kelly do tempo em que foi princesa em Mônaco. A atriz abandonou a carreira em hollywood para se tornar princesa. É uma alusão à moça que deixou de lado o sonho de miss e a carreira na área do direito para se dedicar ao casamento, ao lar e a carreira de Michel Temer?


Não duvido das qualidades da moça. Nas raras aparições públicas sempre esbanjou simpatia e elegância. Também não se discute o direito que ela tem de levar a vida que quiser. Alias, o direito das mulheres de viverem como bem entenderem é uma das grandes conquistas das lutas feministas. Se Marcela é de fato uma moça recatada e escolheu a vida de esposa dedicada ao lar, o problema é só dela. Que seja feliz. O que se questiona são as intenções da jornalista e da revista com a publicação de uma matéria elogiosa ao casal Temer, que exalta as qualidades da esposa e do marido, que, de maneira bastante controvertida, pode vir a ser o presidente do Brasil. O país está dividido. O nome de Temer, pelo que podemos ver nas manifestações pelo Brasil a fora, não agrada a maioria (Agrada a maioria do congresso nacional e a imprensa engajada na destituição de Dilma). Num momento como esse, uma publicação com este teor, e com cheiro de conservadorismo naftalina, é um deboche.


Embora a matéria seja sobre a “quase primeira-dama”, a frase de abertura é: “Marcela Temer é uma mulher de sorte”. Michel Temer é atencioso e, em meio ao turbilhão político de Brasília, lhe dá repetidas provas de que “a paixão não arrefeceu”, diz a jornalista. Surpreende a dedicada esposa com jantares sofisticados, em lugares caros e badalados. O elogio a Temer é escancarado, embora disfarçado na atenção e na dedicação à esposa. Lidos a contrapelo, os elogios à Marcela, e do seu garantido sucesso como primeira-dama, fazem parte da construção da legitimidade antecipada da presidência de Michel Temer. O casal perfeito e harmonioso – ela jovem, bela e recatada, ele maduro, protetor e dedicado -, contrasta com o clima de divórcio político e solidão presidencial que reina em Brasília. O Brasil é um país de sorte. É isso o que matéria quer dizer? Como a sortuda Marcela, o Brasil tem sorte pelo futuro político que se desenha sob o comando do atencioso Michel Temer? É a maneira que a revista e a jornalista encontraram para elogiar Temer, já que politicamente sua figura apagada e suspeita não desperta interesse e não inspira confiança.

Com a queda iminente de Dilma, o Brasil vai voltar a ter a instituição da primeira-dama. Não qualquer primeira-dama. Teremos uma Grace Kelly desfilando no palácio da Alvorada, a viver o conto de fadas da política. Parece que Marcela se preparou para isso a vida inteira. Foi a impressão que tive quando li a matéria. Devorou manuais de primeira-dama, se educou nas revistas femininas das décadas de 1950 e 1960 e cultivou um estilo “do lar” e “recatado” para desempenhar bem o papel da mulher por trás do grande homem. Faltava uma oportunidade para realizar o sonho, uma vez que o marido jamais chegaria à presidência pela via do voto. O impeachment de Dilma é o passaporte de Marcela para o reinado à sombra do marido presidente. Temer é tão dedicado à esposa (conforme Juliana Linhares) que não é de duvidar que ele tenha conspirado contra Dilma só para oferecer à Marcela o título de primeira dama como “prova de que a paixão não arrefeceu” (O pior de tudo é que se eu não disser que isso é uma IRONIA, tem gente que vai acreditar).

Será que os desmancha-prazeres vão estragar o sonho da princesa de viver no palácio de nome Alvorada? Será que vão ter coragem de entrar com um pedido de impeachment contra Temer? Seria muita maldade! Michel Temer foi citado 21 vezes numa planilha da Camargo Corrêa, referentes ao período de 1996 e 1998 (as quantias somam 345 mil). As investigações da Operação Castelo de Areia, como ficou conhecida, não foram adiante. Numa investigação da lava-jato, de 2014, Temer foi citado novamente em novas planilhas da Camargo Corrêa. O seu nome estava associado a dois pagamentos de 40 mil dólares referentes a um projeto de pavimentação em Araçatuba e a duplicação de uma rodovia em Praia Grande. E em 2015, na delação premiada de Júlio Camargo, foi relacionado ao lado de Cunha e Renan Calheiros ao lobista Fernando Baiano, operador das cotas destinadas ao PMDB. É difícil achar uma planilha de caixa dois que não tenha o nome de Temer. O sujeito é badalado nas delações premiadas, suspeito de corrupção ativa e passiva e investigado pelo STF sobre cobrança de propina no porto de Santos. Mas isso lá é motivo para abortar a escalada da “nossa” Grace Kelly ao palácio da Alvorada? (Perdão pelo uso da palavra aborto. Não combina com os atributos da mulher ideal. Foi um descuido).


A matéria de Juliana Linhares é um salvo-conduto para a posse tranquila de Michel Temer. As qualidades da esposa ideal - como aquela marca de sabão em pó dos anos 60 (RINSO) - são as propriedades para remover as pesadas manchas da corrupção na biografia do peemedebista. A comprovada ficha suja do marido conspirador é amenizada pelos dotes e virtudes da esposa perfeita. Marcela Temer é o capital político e simbólico do inexpressivo Michel Temer.





ZUMBILÂNDIA DIGITAL: A epidemia social dos zumbis tecnológicos.

ZUMBILÂNDIA DIGITAL: A epidemia social dos zumbis tecnológicos.


Não quero que o texto soe ofensivo. Não é para ser lido como um julgamento do comportamento de ninguém. Leiam como uma brincadeira. Escrevi dando risadas, de mim, dos zumbis tecnológicos e das situações que me vinham à lembrança. Também tenho as minhas obsessões e, à minha maneira, também sou um zumbi social.

Alguns amigos e amigas mais chegados fazem brincadeiras por eu ainda não ter um celular ou um smartphone, não ser adepto das redes sociais e não ter paciência para as modinhas digitais. Não é preconceito, nem resistência à tecnologia digital, explico para eles, é uma opção. Acho o telefone celular e as versões smarts grandes invenções que facilitaram muito a vida dos usuários e acrescentaram elementos lúdicos à relação humana com a tecnologia digital. Mas não sinto necessidade de ter um telefone inteligente e não me vejo andando por ai com estes objetos como se fossem uma extensão do meu corpo. Não quero ter um caso de amor com um smartphone. Não pretendo permitir que as corporações (Niantic, por exemplo) mobilizem e organizem os meus desejos, decidam o que vou comer e definam meu estilo de vida, via aplicativos e jogos de celular (Ingress e Pokémon Go). Além disso, essas coisas tomam tempo, distraem mais do que deveriam, viciam, são inconvenientes e geram comportamentos obsessivos. Minhas prioridades e minhas urgências são outras. Prefiro ter mais tempo para ler, escrever, ver filmes, namorar, conversar pessoalmente, e beber com as pessoas que gosto sem ser interrompido pelas sempre urgentes mensagens. Mas não adianta. Chamam-me de jurássico e perguntam se ainda me comunico com sinal de fumaça. Engraçadinhos eles! Vou devolver a brincadeira fazendo uma analogia dos comportamentos obsessivos e massificados associados à tecnologia digital com os zumbis. Vou chamar essa turma da cabeça inclinada, que não desgruda dos smartphones e iPods, de TECHNOZOMBIES (os zumbis tecnológicos) A analogia não é original. Eu mesmo já escrevi sobre isso aqui no blog.

A metáfora zumbi inventada por George Romero e popularizada pela série The Walking Dead diz muito sobre os comportamentos humanos. As grandes questões levantadas pelos filmes de zumbis, não é novidade, são referentes aos vivos, não aos mortos. As hordas de mortos-vivos apodrecidos que se arrastam em busca da sempre urgente refeição nada mais são que um pano de fundo assustador para realçar as questões que realmente importam. Geralmente a “filosofia zumbi” é apontada para certos comportamentos humanos obsessivos, padronizados e repetitivos. George Romero, no final da década de 1970, fez uma critica metafórica ao consumismo desenfreado e à onda de shopping centers nos Estados Unidos, no filme “Down of the dead”. As sequências em que multidões de zumbis andam sonolentas e aleatoriamente pelos corredores de um shopping, lembrando o comportamento mecânico dos consumidores, são memoráveis!


A fome insaciável dos mortos vivos, entendida como metáfora, pode muito bem servir de inspiração para pensar as fomes e obsessões do nosso mundo. Dos zumbis do cinema passamos então para os zumbis da vida real. Eles estão por toda parte. Montados nos seus smartphones, obcecados pelas redes sociais, famintos pelas novidades tecnológicas e dependentes delas como os zumbis das entranhas humanas, eles se arrastam pelas ruas com a cabeça baixa, deslizando o dedo na telinha, alheios a tudo o que acontece a sua volta. É o típico comportamento de rebanho. Um smart rebanho, tecnologizado, hipnotizado pelos smartphones e assemelhados como os zumbis pelo cheiro humano (O aparelhinho emite um sinal e o dono, tecno-adestrado, imediatamente atende).

A patologia pode ser contagiosa e discriminatória uma vez que, quem não faz parte do smart rebanho, tende a ser deixado de lado. O negócio então é se enturmar, fazer parte dos grupos e ter um milhão de “amigos”. Aqueles que não foram “mordidos”, ou zumbificados, passam a ser vistos como esquisitões, ultrapassados, e ficam isolados na zumbilândia digital. Ficar isolado significa: não participar de grupos de bate papo; não poder postar sobre sua vida e xeretar a vida alheia; não seguir ninguém e não ter seguidores; não curtir e não ser curtido. Para um zumbi tecnológico, isso é o mesmo que estar morto! Então o negócio é curtir. Bora trocar likes!


Um technozombie que se preze está em todas as redes sociais. Tem facebook (antes de conhecer o face, não vivia sem o Orkut), twiter, instagram, snapchat, e não vê a hora de conhecer e experimentar a novíssima novidade. A coisa ainda não foi inventada, mas em breve ele não poderá mais viver sem ela. Ela vai ser tão essencial na sua vida que ele não saberá como vivia antes de conhecê-la. É a dependência digital antecipada!

O technozombie adora seguir pessoas famosas para devorar suas intimidades. Num show, a prioridade é tirar fotos para “compartilhar”. Num jantar, primeiro tem que registrar o evento e postar nalgum lugar. No cinema, checam as mensagens o tempo todo. A vida e as urgências digitais se impõem à vida que está diante de si.

Em casos extemos, são socialmente anestesiados. Apartam-se do grupo de amigos e da família, enterram a cabeça no smartphone e ficam ali, de corpo presente. O avatar, ao contrário do corpo físico, é descolado, comunicativo, esperto e inacreditavelmente ágil. Divididos assim, entre o corpo e o avatar, os zumbis tecnológicos vivem dramaticamente esta separação. Enquanto o avatar quer curtir, compartilhar, trocar likes, postar, ver e ser visto, o corpo precisa trabalhar, dormir e, eventualmente, abrir a boca para conversar pessoalmente!

Existem graus variados de zumbificação. Dos casos extremos passamos aos technozombies-light, ou moderados. São dependentes da tecnologia, não largam os aparelhos nem para ir ao banheiro, mas ainda conseguem erguer a cabeça, segurar a coceira nos dedos e, com algum esforço, controlar a ansiedade quando escutam o sinal da mensagem chegando.

O inseparável smartphone é uma espécie de totem. Embora descartáveis e trocados amiúde pelos modelos mais novos, são adorados como pequenas divindades. São a última coisa que verificam antes de dormir e a primeira quando acordam. Passam o tempo todo a eles ligados e, mesmo na companhia de pessoas queridas, dão-lhe inteira prioridade.

Outro dia um sujeito me perguntou: “Cara, tu não tem whatsapp? Não acredito. Como é que tu te comunica?” “Perdão, não entendi?”, respondi. “Como tu faz para te comunicar?”, insistiu. “Como eu faço? Como sempre fiz, falando, gesticulando, telefonando. Tenho e-mail também. Tenho até um blog e conta no skype (Embora só tenha seis contatos. E não adiante mandar convite)”. Entendo perfeitamente o espanto do sujeito e o que ele quis dizer. Não ter whatsapp hoje é estar deslocado, não pertencer a grupo nenhum, não trocar mensagens, não enviar e não receber fotinhos e as bobagenzinhas urgentes. É estar preso numa realidade paralela, numa zona fantasma, numa espécie de antessala do mundo digital.


Os zumbis também estão nas salas de aula. São todos iguais: cabeças baixas, deslizando os dedos freneticamente, inteiramente absorvidos pelo mundo digital, rindo sozinhos e absolutamente indiferentes ao que está acontecendo ao seu lado. Tenho alunos que passam uma aula inteira sem levantar a cabeça. Acho que não conhecem minha aparência! Se cruzarem comigo no corredor, e estiverem, por sorte, com a cabeça erguida, não vão saber que sou o professor. Talvez me reconheçam pela voz. E os que usam fone de ouvido? Sim, um ou outro usam fones. Só não me perguntem o que as criaturas fazem em sala de aula.

Eles também vão à praia. Ou melhor, eles levam o smartphone à praia. Ficam o tempo todo debaixo de um guarda sol, fixados na telinha, em transe. As pessoas que estão ao seu lado, bem menos importantes que as mensagens e as diversões digitais, são completamente ignoradas. O sol aparece, some, as pessoas entram no mar, voltam, conversam, leem alguma coisa, e eles permanecem do mesmo jeito, hipnotizados. Quando aparece alguma coisa para comer, eles saem do transe por alguns segundos, engolem o lanche rápido para liberar mãos, e voltam a dar toda a atenção ao smartphone. O mar e os amigos (as), namorados (as), são acessórios descartáveis que estão ali apenas para compor a cena.


As vidas e prioridades dos technozombies são pautadas pelos sons/sinais emitidos pelos smartphones. Não conseguem ficar cinco minutos sem checar as mensagens e verificar as fotos, montagens e informes que, aos milhares por segundo, chegam à rede digital a qual estão conectados. O zumbi tecnológico é faminto por tudo o que está acontecendo. Do Big Brother ao terremoto no Equador, do gol do Cristiano Ronaldo ao grampo do ex-presidente, do buraco negro descoberto no centro da galáxia SAGE0536AGN ao filme indicado ao Oscar, nada escapa ao zumbi hiper-informado, embora ele absorva tudo apenas superficialmente. O zumbi não lê, passa os olhos. Não pensa, registra informação. Satisfaz-se com uma foto seguida de um brevíssimo texto explicativo (seis ou sete palavras no máximo!). Sempre conectado e atento aos chamados do inseparável aparelhinho, não quer perder nada. A mensagem do “amigo (a)” que acaba de chegar é mais importante que qualquer coisa. Pode ser uma besteira, mas ele para tudo para checar. O comportamento obsessivo virou toc.

O technozombie vive como se estivesse no juízo final, em estado de insônia! Nessa ânsia compulsiva, e no furor instantâneo de tudo ver, curtir e compartilhar, acaba sendo devorado e engolido pelo seu avatar. A zumbificação acontece quando o avatar, o eu digital, ou o cibercorpo, passa a ocupar um lugar mais importante nas relações que o eu corporal e social. No ambiente digital o sujeito se transforma num ser ativo, dinâmico e participante, enquanto no mundo físico e social converte-se progressivamente num zumbi.


Será que os filhos dos technozombies já vão nascer com a cabeça inclinada, com incrível habilidade nos dedos e com dificuldades com a linguagem falada e escrita?








segunda-feira, 9 de maio de 2016

“DIRTY PRETTY THINGS”: UM NECROTÉRIO DE CALOR HUMANO NA FRIA E SUJA LONDRES DA IMIGRAÇÃO ILEGAL.

“DIRTY PRETTY THINGS”: UM NECROTÉRIO DE CALOR HUMANO NA FRIA E SUJA LONDRES DA IMIGRAÇÃO ILEGAL.


Quase vinte anos depois do belíssimo My Beautiful Laudrette (1985), que explora diferentes dimensões do romance entre um garoto punk inglês e um imigrante paquistanês, Stephen Frears revisitou o tema da imigração em Londres com Dirty Pretty Things (Coisas Belas e Sujas -2002). No filme, um médico nigeriano (Okwe), que deixou Lagos por problemas políticos, vive na capital britânica trabalhando de dia como taxista, com uma licença falsa, e de noite como recepcionista de um hotel (O taxi que Okwe dirige não é o emblemático carro preto, oficial de Londres, mas um carro comum de passageiros). Nos poucos momentos de descanso entre as duas jornadas de trabalho, exerce clandestinamente e a contragosto a medicina para socorrer pessoas que, como ele, vivem à margem do sistema de saúde britânico. Se no seu país Okwe era médico, e gozava de certo prestígio, em Londres é um “cidadão” de segunda classe. Divide ilegalmente um apartamento pequeno com Senay, uma imigrante turca, islâmica e casta, que vive driblando os inspetores da imigração, trabalha ilegalmente como faxineira no mesmo hotel e é explorada sexualmente pelos patrões, que também são imigrantes. A lei de imigração do Reino Unido não permite que os empregadores contratem imigrantes em situação irregular (Segundo Mark Harper, ex-ministro da imigração, o trabalho ilegal enfraquece as empresas legítimas e favorece a exploração. Harper, ministro encarregado de aplicar uma politica mais severa de imigração pelo governo conservador de Cameron, renunciou ao cargo, em fevereiro de 2014, depois que veio a público que sua faxineira era uma imigrante ilegal). Os apuros e os constrangimentos dos personagens para escapar da antipática e severa fiscalização, o modo como os agentes de imigração são retratados (vingativos, insensíveis e facilmente enganáveis) e as sutilezas narrativas que criam imediata identificação dos expectadores com os protagonistas, deixam claro que o filme é uma crítica condenatória da política britânica de imigração.

Esqueçam a metrópole charmosa e luminosa dos cartões postais. Seguindo a tradição de Charles Dickens de explorar as partes mais pobres e os cantos escuros de Londres, que constituem, se conectam e, de inúmeras maneiras, dão sentido à totalidade da cidade, Frears ambientou a narrativa fílmica nos bairros menos “nobres”, habitados por imigrantes, prostitutas, trabalhadores e desafortunados em geral. As vidas ordinárias dos emblemáticos personagens do filme se cruzam no hotel Baltic (O nome do hotel é casual ou é uma referência a um dos mais inclementes mares do mundo?).


Num trabalho de rotina no hotel, para resolver um problema de entupimento, Okwe encontra um coração humano largado na latrina do banheiro. A descoberta, que deflagra uma trama policial envolvendo tráfico de órgãos, prostituição e imigração ilegal, é também a imagem icônica no filme: o coração na latrina denuncia o caráter descartável da vida humana. Mais do que isso, a imagem exprime visceralmente a condição do imigrante: ele vale tanto quanto um cocô.

O coração jogado fora é o artifício dramático que revela uma rede suja, criminosa, articulada internacionalmente, que comercializa órgãos humanos e explora a vulnerabilidade e a ilegalidade dos imigrantes. O hotel é a base de operações da rede criminosa. As cirurgias clandestinas e a entrega dos órgãos extraídos acontecem nas dependências do estabelecimento e contam com a cumplicidade ou o silêncio dos funcionários, ilegais na maioria. O gerente do hotel, um sujeito inescrupuloso chamado Juan, é um imigrante legal, bem estabelecido, que comanda a rede, explorando a situação irregular dos imigrantes (É o vilão caricato). Numa ponta da rede estão os clientes, compradores de órgãos. O caráter internacional da organização fica explicito quando ficamos sabendo que um dos compradores é da Arábia Saudita. Na outra ponta, estão os imigrantes dispostos a trocar um rim por um passaporte falso. Entre os clientes endinheirados e os imigrantes desesperados, articula-se uma zona intermediária especializada na receptação e na falsificação de documentos (os falsificadores de passaportes, por exemplo, são libaneses).

Esse lado sujo e perverso da imigração ilegal tem o seu oposto. Entre os imigrantes que não se envolvem com a prática criminosa, e lutam para manter a dignidade sem precisar mutilar o corpo, constitui-se uma rede de amizades e solidariedade que os ajuda a enfrentar a dura condição que a ilegalidade impõe.

As redes migratórias, vistas como um conjunto de laços pessoais e sociais que conectam pessoas, são fundamentais na articulação dos processos migratórios. Os laços, que podem ser de natureza étnica, familiar, de amizade ou de experiência de trabalho, engendram formas de solidariedade que constituem e mantém as redes ativas. A rede à qual Okwe está conectado em Londres é formada por laços de amizade (o amigo chinês) e de trabalho (Senay). A rede criminosa articula-se num espectro completamente diferente. Ao invés da solidariedade e da ajuda, ela se constitui como rede de exploração da condição do imigrante (exploração sexual, do trabalho e da vulnerabilidade social). O jogo de oposições é convincente, mas exageradamente esquemático.  Para demonstrar quase que didaticamente a vulnerabilidade e a exploração do imigrante, a construção cinematográfica do contraste entre as redes e entre os personagens que as constituem beira a caricatura. A fragilidade e a castidade tocantes de Senay e as virtudes encantadoras de Okwe, comparados com a total falta de escrúpulos e a sordidez cartunesca dos antagonistas, descamba para um maniqueísmo que simplifica demasiadamente a complexa teia de relações que tece o universo da imigração.


Nesse universo sombrio, frio, sujo e criminoso, de precarização da vida, o único lugar onde Okwe encontra algum conforto e um pouco de calor humano é, paradoxalmente, no necrotério de um hospital. No imaginário popular, o necrotério é um lugar frio, triste, lúgubre, associado à perda de pessoas queridas. Na cultura cinematográfica, invariavelmente, os necrotérios são de dar arrepios. São lugares assustadores, explorados nos filmes de terror para provocar o medo e arrancar calafrios das plateias. Isso sem falar nas incontáveis narrativas de fantasmas e assombrações que circulam por ai envolvendo necrotérios. No filme de Frears o paradoxo é apenas aparente. Naquele lugar supostamente frio e sem vida, trabalha Guo Yi, um imigrante chinês amigo de Okwe. É ali que o médico nigeriano vai, nas poucas horas vagas, para ter com quem conversar, conseguir remédios para os seus pacientes do submundo, jogar xadrez e, numa hora de aperto, ter uma cama quente para dormir. De lugar da morte, o necrotério se converte num refúgio seguro, onde o protagonista encontra abrigo, calor humano e compaixão. O necrotério afetivo de Frears contrasta com o mundo dos vivos, com a indiferença e a frieza das relações humanas e com a invisibilidade social do imigrante (Num diálogo relâmpago com um inglês – um dos raros que aparece no filme – Okwe exprime breve e eloquentemente a condição de invisibilidade. O inglês pergunta: “Como é que eu nunca te vi?” Okwe responde: “Por que vocês nunca nos veem. Nós dirigimos seus táxis, limpamos seus quartos e chupamos seus paus”). A invisibilidade dos imigrantes, sugere o filme, é determinada pelas profissões que ocupam, pela classe, pela etnia e pelo status legal. Os imigrantes só não são invisíveis para os oficias da imigração, os únicos ingleses que os enxergam e realmente prestam atenção às suas vidas.

No necrotério, os mortos, independente da cor, da condição social e da nacionalidade, são tratados com deferência e dignidade. Guo Yi encomenda os corpos respeitosamente, observando a religião e os ritos fúnebres de cada um. Uma linda lição de respeito à diferença e cuidado com o próximo, mesmo morto, numa sociedade que trata os imigrantes como seres descartáveis.

Tem um coração humano entupindo as artérias da política de imigração britânica!




sexta-feira, 18 de março de 2016

A ERA DAS CERTEZAS: sobre um “diálogo” na sala dos professores.

A ERA DAS CERTEZAS: sobre um “diálogo” na sala dos professores.



O professor chega, metido num terno impecável, e se dirige à máquina de café. Seleciona a bebida e escuta a conversa entre duas professoras. “A lava-jato é a luz no fim do túnel”, diz uma delas, com indisfarçável ar de esperança. A outra, ligeiramente descrente, pondera: “Ai amiga, não sei, deus te ouça e proteja o Moro”. O professor pede licença e alfineta sarcasticamente: “Luz no fim do túnel para quem? Para o casal de grã-finos ou para a babá?” (Silêncio). O professor espera a resposta, com um sorriso discreto e intimidador de quem tem certeza que aplicou um xeque-mate.  “O professor por acaso defende o PT e Lula?”, dispara uma delas. “E se eu defendo? Não tenho o direito? Por acaso isso virou crime no Brasil?”, rebate o professor. “Crime, professor, é o que este governo sujo está fazendo. Estão destruindo o Brasil”. “Bem, o que se poderia esperar de um governo petista”, intervém a outra em defesa da colega. “As senhoras não têm memória? Não viveram a década de 1990? Querem culpar o PT por tudo? O PSDB quase quebrou o Brasil. Porque esse ódio contra o PT, porque agora pobre pode andar de avião e empregada doméstica tem direitos assegurados?” “Quem tem ódio são vocês”, diz a professora, elevando o tom de voz. “E quem disse que somos contra a melhoria da vida dos pobres?” completa a outra. “Somos contra essa sem-vergonhice que estamos vendo no país”. “Estão vendo onde? pergunta o professor. Na globonews?” “Professor, nós não somos ingênuas. Interrompe a professora. Não nascemos ontem.” “Sabemos filtrar a informação”, complementa a outra, como num jogral. “Pois não parece”, provoca o professor. (Novo silêncio).

A professora renasce das cinzas e pergunta, com olhar penetrante: “Seis milhões de pessoas nas ruas, espontaneamente pedindo a renúncia do governo, professor, não lhe diz nada?” “Num universo de 142 milhões de eleitores, não”, contra argumenta o professor. “São todos eleitores do Aécio, que nunca aceitaram a derrota. É uma multidão desinformada guiada pela mídia golpista. Não tem nada de espontâneo nisso.” “Essa conversa de novo não, né professor. Vocês enxergam conspiração em tudo. Acho que isso diz muito sobre vocês. Se fossem seis milhões de petistas o senhor não diria isso”.  “Claro que não. Se houvessem seis milhões de petistas no Brasil o Cunha não seria presidente da Câmara e a Lava jato não seria essa caça as bruxas anti-petista”, devolve o professor. “E não se trata de conspiração, professora, basta ligar a televisão. A globo está convocando abertamente o povo para sair às ruas contra o governo.“ “Honestamente, professor, botar corrupto e ladrão na cadeia agora é caça as bruxas?”, questiona com ar de deboche a professora. “Se o alvo das investigações é só o PT, sim, professora, honestamente, é caça as bruxas”, diz o professor, olhando por sobre os óculos. "É isso o que senhor pensa, professor?" "Sim, professora, é isso o que eu penso."

“Amiga, vamos subir, com petista não dá pra conversar. Eles se acham os donos da verdade”.  

“Boa aula, professoras. Vão com Moro”.

As professoras deixam a sala, montadas em indefectíveis saltos altos e nas suas mais nobres e recentes certezas. O professor me olha, seguro de que fez a sua parte, e comenta, como que solicitando minha aprovação: “Democráticas as nossas colegas, não acha? Quando ficam sem argumentos batem a porta e vão embora. Típico desse conservadorismo iletrado”. “Não sei, professor, não ouvi a conversa. Estava lendo uma matéria sobre jardinagem”, disse para encerrar o papo e subir para a sala de aula.

É, meu povo, contra a navalha cega das certezas nada melhor que a delicadeza e a verdade simples das plantas. Nestes tempos de intolerância, minha alienação predileta é admirar e aprender com as plantas que crescem no meu jardim: o manjericão convive graciosamente com o pé de pitanga, o orégano cresce e se espalha ao redor do pé de pimenta e a acerola faz deliciosa sombra para o repouso tranquilo das orquídeas.


*Não confundir a arte da convivência entre as plantas no jardim com a noção comtiana (Auguste Comte) de harmonia social.