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quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

SOCIEDADE DO APLICATIVO: Os Apps como dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.

SOCIEDADE DO APLICATIVO: Os Apps como dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.

Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira (Deleuze).

Quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos (Foucault).






Cada época inventou e experimentou suas próprias tecnologias de controle e submissão dos sujeitos (aqueles que são assujeitados por diferentes formas e combinações de saber e poder). Das técnicas de vigilância modernas às câmeras de monitoramento, das estruturas arquitetônicas das fábricas e das escolas aos dispositivos de localização dos smartphones, as novidades tecnológicas, que atuam como modeladores dos gestos e adestradores dos comportamentos, sempre foram apresentadas como facilitadoras da vida e maximizadoras de segurança.

Em “Vigiar e Punir”, lançado originalmente em 1975, Michel Foucault identificou, entre os séculos XVIII e XIX, a emergência de um novo sistema de poder, baseado na disciplina e no confinamento, que chamou de sociedade disciplinar. Em diversas instituições como escolas, fábricas, hospitais, quarteis e prisões, foram introduzidas tecnologias de controle e vigilância do tempo, do espaço e dos corpos dos indivíduos, com vistas a torna-los obedientes, úteis e molda-los às exigências da produção. A criação do panóptico, por Jeremy Benthan, representou a sofisticação dos mecanismos de vigilância. Os dispositivos disciplinares são constituídos por uma polarização entre a opacidade do poder e a transparência dos indivíduos. O panóptico ilustra perfeitamente bem esta polarização. A torre de controle ficaria fora do alcance dos indivíduos, enquanto os indivíduos estariam o tempo todo ao alcance do olhar supervisor da torre. Expostos à permanente visibilidade, estariam sujeitos à invisibilidade do mecanismo de controle que os observa. O que fazer diante de um poder que se exerce na invisibilidade?

                                                                           Panóptico.

Em 1990, num artigo intitulado “Post-scripton Sobre as Sociedades de Controle”, publicado no L´Autre Journal, Gilles Deleuze identificou os elementos, sobretudo tecnológicos, que articulariam uma nova ordem social: a sociedade de controle. A mudança teria ocorrido na segunda metade do século XX, no pós-segunda guerra. Os mecanismos de vigilância foram aprimorados e se generalizaram. A invasão das câmaras de segurança nos diversos espaços sociais (lojas, bancos, supermercados, estradas, e por aí a fora) o uso de transponders, de aparelhos celulares, cartões de crédito e da popularização da internet e das tecnologias de comunicação, ampliaram e tornaram mais eficientes as possibilidades de controle e vigilância. Antes circunscrita à lugares fechados, aos interiores das instituições disciplinares, a vigilância assumiria um caráter mais abrangente e alcançaria os espaços abertos. Para Deleuze, Kafka, que viveu no ponto e intersecção entre as duas ordens, anteviu, em O Processo, aspectos que anunciariam a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.




Da Sociedade do Controle à Sociedade do Aplicativo.

E hoje, estaríamos vivendo em que tipo de sociedade? Na sociedade do aplicativo? Exploremos a possibilidade. Os programas de computadores, conhecidos como Apps, que nos ajudam em tarefas específicas, estão assumindo o controle nas mais variadas atividades. Nos auxiliam na hora de pegar um taxi, de pedir comida, de dirigir, de cuidar dos bebês, de estudar, de escrever e de meditar, de dormir e de acordar. Dormindo ou acordados, os aplicativos controlam nossos fluxos de relacionamentos e atividades. São vistos como facilitadores úteis da vida diária. E minha intenção não é afirmar o contrário. Chamo a atenção apenas para a centralidade que estes dispositivos vêm, cada vez mais, ocupando em nossas vidas. Estaríamos à beira de uma ditadura do App? Num blog sobre tecnologia, a frase de abertura de um texto sobre os 10 aplicativos que você tem que usar em 2017, é: “Sem aplicativos o ser humano moderno não vive”. Tirando o exagero da afirmação, compreensível num blog sobre tecnologia, nota-se o lugar vital que os arautos destes dispositivos, que habitam as pequenas divindades digitais (os smartphones), pretendem que eles assumam em nossas vidas.

Se considerarmos a maneira como as pessoas expõem seus hábitos nas diversas redes sociais, disponibilizando dados e informações sobre quase tudo o que fazem, onde estão, como estão e com que frequência visitam certos lugares, os aplicativos assumem, cada vez mais, a função de dispositivos de controle.

A sociedade do aplicativo, se embarcarem na minha “brincadeira”, seria uma espécie de variação, ou sofisticação, da sociedade do controle. Mas que forma de controle é essa que está na palma da mão e, aparentemente, sob o nosso comando? É exatamente esta a sofisticação. Julgamos comandar a tecnologia, porque está sob o nosso controle, mas na verdade somos dirigidos por ela (creio que o seriado inglês Black Mirror capturou isso de maneira inteligente). Por meio destes dispositivos, criados freneticamente, introjectamos e assimilamos inúmeras formas de controle sobre nossas vidas e passamos a usá-las no dia-a-dia sem se dar conta do espaço que vão ocupando nas nossas relações e na mediação da nossa comunicação com o mundo e, sobretudo, da forma como vão ditando nosso comportamento e orientando os nossos desejos. Os Aplicativos estão para a sociedade de controle assim como o Panóptico estava paras a sociedade disciplinar.

Em alguns casos, os Apps são um substitutivo para a memória, pois nos avisam e nos lembram a todo instante das coisas que devemos fazer. Parece cômodo (e é), mas cria dependência. Um estudo realizado pela Flurry, empresa que desenvolve e comercializa uma plataforma para analisar as interações do consumidor com aplicativos móveis, revelou que há em torno de 280 milhões de viciados em aplicativos para celular no mundo (considerando que a pesquisa já tem mais de dois anos, o número deve ter aumentado exponencialmente). Especialistas do Hospital das Clínicas, de São Paulo, afirmaram que 10% dos internautas brasileiros já foram diagnosticados com dependência de tecnologia: são pessoas que ficam até 12 horas conectadas e, quando desconectadas, apresentam sintomas de tremedeira, sudorese, taquicardia e, em casos mais complicados, com tentativas de suicídio. Todavia, advertiu um especialista, não é o tempo conectado que define uma situação de dependência, mas a perda de controle sobre a tecnologia (Link para consultar estas informações: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/07/viciados-em-tecnologia-usam-app game-e-celular-como-se-fosse-droga.html).

A dependência é alarmante, não há dúvidas, e atinge os consumidores de tecnologia em diferentes graus. Mas eu estou chamando a atenção para os dispositivos de controle que os Apps carregam, e os efeitos coletivos sobre milhões de pessoas, comandadas pelos mesmos programas. Além de saber onde os usuários estão e o que estão fazendo, à maneira de um panóptico móvel, os Apps, cada vez mais, definem os gostos, as escolhas, os procedimentos, o lazer e as formas de mobilidade de milhões de usuários, que são induzidos a determinadas ações, gerando um comportamento de manada. Uma manada montada na tecnologia e facilmente dirigida para os caminhos ditados pelo poder pastoral dos Apps.

A cadeia de Apps criada para facilitar as nossas vidas estão roubando, com o nosso consentimento, a nossa liberdade, a liberdade de decidir, de improvisar, de errar. O filósofo francês Jean-Michel Besnier disse recentemente numa entrevista que “estamos cada vez mais cercados de máquinas que são pensadas para facilitar nossa vida”, para melhorar a circulação, a segurança e nos poupar tempo.  Mas isso também tem sequestrado as nossas iniciativas. “Nós nos tornamos cada vez menos livres - portanto, menos morais - e nos comportamos cada vez mais como máquinas. Isso abre as portas para uma desumanização. Ser livre é aceitar a sorte, tomar riscos (Besnier).”

“A visibilidade é uma armadilha [...] É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar" (Foucault). Eis a nossa condição, mas com um agravante: as tecnologias de controle e vigilância contemporâneas, diferentemente das fábricas-prisões e das câmeras de vigilância, são atraentes, sedutoras, viciantes, pagamos caro por elas e acreditamos que elas ampliam nossas redes de sociabilidade e nossas liberdades de escolha e movimento (Ou será que nós nos enredamos como peixes na poderosa rede (a armadilha) e usamos a tecnologia das redes para manter o outro sob nosso controle, vigilância e monitoramento, fiscalizando seus passos, gostos e comportamentos?).





terça-feira, 14 de novembro de 2017

O ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente contra a bruxa feminista.

O ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente contra a bruxa feminista.


Nada mais assustador que a ignorância em ação (Goethe).



Ignorância, do latim ignorantia, deriva de ignorare (in, não – ganrus, aquele que domina um tópico ou assunto, sabedor), que significa “não saber”. Ignorante, portanto, é aquele que ignora, que não sabe. Ignorar, ou não saber nada sobre determinadas coisas, não é nenhum problema. Pelo contrário, é o ponto de partida para sair do estado de ignorância. Algumas das melhores pessoas que conheci na vida eram totalmente ignorantes sobre quase tudo o que me é importante. A ignorância só se torna um problema quando nos posicionamos sobre o que não conhecemos. Ou, o que é mais grave, quando nos tornamos ativistas contra o que desconhecemos. Neste caso, a ignorância se transforma numa arma assustadora contra os direitos do outro, pois o ignorante, destituído de argumentos minimamente razoáveis, é uma máquina de insultos, agressões e ofensas.
O caso das manifestações contra exposições de arte, e mais recentemente contra Judith Butler, são exemplares. Sem o mínimo entendimento sobre os sentidos da arte, e as intenções dos artistas, ou sobre o que escreve e pensa a filósofa estadunidense, manifestantes, que se julgam pessoas de bem, montam guarda, no pior estilo fascista, em nome de supostos bons costumes, para impedir exposições artísticas, que até ontem desconheciam, e o livre pensamento de uma filósofa, da qual nunca ouviram falar. Butler tem uma trajetória intelectual e acadêmica de mais de trinta anos, e os estudos de gênero no Brasil remontam ao começo dos anos 80. Mas para a turma que acordou agora (Afinal, o gigante acordou), e desfila seu bloco da intolerância na avenida, tudo parece novidade. Acusam levianamente artistas de incentivarem a pedofilia e a filósofa de pretender destruir a família. Os ativistas, que se auto-intitulam de direita, combatem o que não conhecem, não concordam com o que não leram e berram nas ruas e nas redes sociais para silenciar tudo o que está em desacordo com as suas recentíssimas “convicções”. E o curioso é que quanto menos sabem, mais certezas têm. O volume ensurdecedor do berro é proporcional ao tamanho da ignorância!

Aconteceu coisa parecida, em fevereiro de 2013, quando a blogueira cubana Yoani Sanchéz veio ao Brasil lançar o livro “De Cuba, com Carinho”. Fascistas ditos de esquerda montaram uma milícia castrista, ignorante e barulhenta, para impedir a bruxa traidora da revolução de falar. Exibiam, orgulhosos, cartazes ofensivos e gritavam palavras de ordem adestradas. Típico dos rebanhos políticos. Para quem diz estar em lados opostos, os tais de esquerda e os de direita são tão parecidos. São os dois extremos da ferradura. Andam quase de mãos dadas, irmanados pelo fanatismo, e não se dão conta.


Aliás, o extremismo desta turma que combate a “ideologia de gênero” não fica devendo nada à mentalidade inquisitorial medieval, profundamente misógina. Como há 500 anos, estamos vivendo, perplexos, uma verdadeira e delirante caça às bruxas. Em defesa da “família” e da “tradição”, manifestantes queimaram um boneco de uma bruxa com o rosto de Judith, em frente ao Sesc Pompeia. Aos gritos, e exibindo cruzes, os novos fanáticos gritavam: “queimem a bruxa”. E queimaram! Queimaram a filósofa em efígie. Lançaram às chamas o pensamento diferente, em pleno século XXI. O ato é de uma violência simbólica estarrecedora, de viés totalitário.  Logo eles, que se dizem liberais e críticos dos totalitarismos de esquerda. Pelo visto, além de lutar contra o que jamais compreenderam, defendem também o que não conhecem. São antifeministas por arremedo e liberais por desconhecimento!

O que mais esperar desta turma¿ Já invadiram salas de aula, aos gritos, à caça de supostos professores comunistas. Difamam todos aqueles que se manifestam publicamente a favor do que eles condenam (recentemente atacaram Fernanda Montenegro). Tentam, em nome de duvidosos valores democráticos, intimidar, constranger, silenciar e destruir reputações. Um pouco mais e estarão queimando livros em praça pública.

Uma petição que circulava entre os manifestantes concentrados em frente ao Sesc Pompeia, dizia: “Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta promova em nosso país suas ideias absurdas, que têm por objetivo acelerar o processo de corrupção e fragmentação da sociedade”. Como cavaleiros cruzados, os heroicos defensores da “família” e da “tradição” julgam estar numa cruzada antiapocalíptica em nome da decência e do que é certo (estão tão certos disso que nunca lhes ocorre que os outros também podem estar, à sua maneira, certos).

Gostaria muito de saber o que eles entendem por “fragmentação da sociedade”? A tal sociedade, que eles dizem defender, é, por acaso, una, homogênea, monolítica?  Talvez seja exatamente isso que eles desejam (mas não conseguem formular), uma sociedade homogênea, de valores férreos e imutáveis, de machos e fêmeas inequívocos, desempenhando papeis para os quais nasceram, e que silencia e lança às chamas quem ousa pensar de outra maneira. Uma sociedade que não pensa, que não comporta a diferença, que não reflete sobre si mesma, que apenas reproduz certezas convenientes ao modelo normativo dominante.


No aeroporto, antes de embarcar, Judith foi hostilizada por um grupo, e por duas mulheres em particular, que a perseguiam, empunhando cartazes, acusando-a de ser “assassina de crianças” e “destruidora da família”. Que tristes figuras, absolutamente certas sobre o que desconhecem.
Um dos guias morais destas pessoas, e digníssimo representante da novíssima decência nacional, Alexandre Frota, se expressou, em português peculiar, sobre a heroica ação no aeroporto: “Se alguém achou que iríamos deixar Judith Butler sair do Brasil sem ouvir a verdades se enganou estávamos a espera dela no aeroporto de Congonhas e lá teve q ouvir”. Prefiro não saber sobre “a verdades” de Frota. Por outro lado, sua ignorância é eloquente!

O pensamento de Judith Butler não está acima das contestações e deve, claro, ser examinado criticamente, mas com honestidade e respeito, como ela fez, por exemplo, com Simone de Beauvoir, na obra “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, de 1990. Butler questionou a dicotomia sexo/gênero, formulada por Beauvoir, marcada pelo dualismo ontológico cartesiano e pelo essencialismo de gênero, que, entre outras coisas, apontava para a categoria mulher como um bloco monolítico. O “Segundo Sexo”, de 1949, uma das mais significativas e influentes obras do feminismo do século XX, distinguiu pela primeira vez a construção do gênero do sexo dado, e abriu, com isso, a possibilidade de desmontar a sentença de Freud de que “a anatomia é destino” e as construções deterministas do século XIX que partiam da biologia para explicar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Butler reconhece esta valiosa contribuição, mas entende que ela precisa ser superada, principalmente sua estrutura binaria (homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino), para dar lugar às interpretações que sustentam o caráter mais fluido do gênero, que admitem uma multiplicidade de sujeitos. Em outras palavras, as identidades de gênero, e as experiências humanas, não cabem e não se esgotam nas categorias fixas de homem e mulher.

                                                                 Conchita Wurst.

A obra de Butler, como qualquer outra, precisa e deve ser questionada.  Mas para isso, é necessário entender o que ela propõe. É preciso lê-la. Não tem outra maneira. Questioná-la sem ler o que ela escreveu, e protestar contra, é a mesma coisa que dizer que odeia jabuticaba, sem nunca ter experimentado, e tentar convencer os outros de que a fruta não presta. Daí as aberrações: “assassina de crianças” e “destruidora da família”.

Os que não leram, e não sabem o que Butler pensa, seguem outros que também não leram. A desinformação faz escola (partidária e doutrinadora) e marcha, orgulhosa da própria ignorância, pelas ruas do Brasil medieval. “Queimem a bruxa”!





sexta-feira, 20 de outubro de 2017

NA ESQUINA DO POSITIVISMO COM O JACOBINISMO REPUBLICANO: Reminiscências da Esquina Republicana.

NA ESQUINA DO POSITIVISMO COM O JACOBINISMO REPUBLICANO: Reminiscências da Esquina Republicana.

Nas esquinas.


Passei minha infância e adolescência (e parte da vida adulta) no ponto de encontro entre duas ruas bem conhecidas em Santa Maria (RS), cujos nomes homenageavam duas figuras importantes no contexto da construção do regime republicano (1889 – 1891) e de sua afirmação nos planos simbólico e institucional: Benjamin Constant e Silva Jardim.

Benjamin Constant (1837-1891) foi intelectual e professor, de escolas civis e militares, republicano e positivista. Foi um dos grandes divulgadores das doutrinas de Auguste Comte no Brasil, um dos articuladores do golpe militar que derrubou a Monarquia, e ocupou cargos importantes no governo provisório de Deodoro da Fonseca (Ministro da Guerra e Ministro da Instrução Pública).

Silva Jardim encarnou a ideia jacobina, a la Danton, de República, inspirada no modelo francês. Os jacobinos brasileiros defendiam uma ideia de República considerada radical. Adversário ferrenho do regime monárquico, Silva jardim participou ativamente da campanha republicana.

Ambos morreram em 1891. Não viram – como Lima Barreto e Euclides da Cunha viram, e se desencantaram – no que a República se transformou. Constant morreu um pouco antes da Constituinte encerrar os seus trabalhos e concluir a Constituição. Jardim morreu no vulcão Vesúvio, durante uma visita, tragado por uma fenda que se abriu aos seus pés, antes do jacobinismo se associar ao florianismo.

Nos anos iniciais da República, os nomes das ruas foram alterados. Os antigos nomes, geralmente associados a figuras e às tradições monarquistas, foram substituídos por nomes relacionados à República. As mudanças dos nomes faziam parte das batalhas em torno da afirmação do regime republicano no plano simbólico. Apagava-se a história, ou as referências históricas ligadas à monarquia, e rebatizava-se as ruas das cidades com nomes que homenageavam personalidades identificadas com os ideais ou com o regime republicano. Silva Jardim e Benjamin Constant foram duas das figuras mais homenageadas. Difícil encontrar uma cidade que não tenha ruas com os seus nomes.

Na esquina da Silva com a Benjamin, minha mais significativa referência urbana, eu encontrava os amigos. Jogávamos futebol, andávamos de skate, brincávamos de esconde-esconde, trocávamos figurinhas de álbuns de futebol e desenho animado, jogávamos bolinha de gude, bebemos nossas primeiras cervejas e ensaiamos os primeiros namoros. Tudo acontecia naquela esquina, que ficava numa elevação estratégica que dava vista para todos os lados.

Na fase dos vinte e poucos anos, já cursando a faculdade de História, virávamos as madrugadas naquela esquina. Alguns amigos novos, de outros cantos da cidade, se juntavam ao meu grupo para bater papo, sobre política, música, trocar vinis e fitas k7 e tocar violão (Improvisávamos, com violões precários, canções do Belchior, do Caetano, do Gil, dos Stones, do Mautner, interpretações da Elis, uma coisa ou outra do Led Zepelim, e por aí vai. O gosto da moçada era variado e ninguém tocava muito bem). Não éramos mais crianças e a esquina também já não era mais a mesma. Dois ou três prédios foram construídos, o asfalto substituiu as charmosas pedras de paralelepípedo e os carros, mais numerosos e andando mais rápidos, já não permitiam, às novas gerações, brincar, como brincávamos, no meio da rua.

Àquela altura, já metido à historiador, me dei conta dos nomes das ruas e brincava politicamente com a situação. Quando alguém perguntava onde morava, respondia em tom de brincadeira: na esquina republicana, no ponto de encontro do Positivismo com o Jacobinismo. Era uma brincadeira inteligentinha para impressionar os amigos.

Ainda hoje, quando volto à Santa Maria, vou até a esquina dar uma olhada. Meu irmão ainda vive na casa onda morávamos (a menos de 50 metros do encontro das ruas). Levo meu sobrinho, hoje com 8 anos, sentamos na mesma calçada de cimento e ficamos de papo, observando o movimento. Está tudo tão diferente, mas, se observo alguns detalhes, um muro castigado pelo tempo, uma calçada tomada pelo mato, uma velha garagem, o pequeno trecho de rua de pedras que dá acesso à esquina, tudo vem tão vivamente à memória, como no filme do Tornatore, Cinema Paradiso, quando Totó volta à sua cidadezinha, na Sicília, para o enterro de Alfredo.

Para além dos nomes, e da brincadeira política, as ruas Silva Jardim e Benjamin Constant eram as artérias que me levavam, sempre a pé, para todos os cantos da cidade. Da esquina republicana tomávamos todas as direções. Era o nosso ponto de partida. A história que construí na e com a cidade passa por estas ruas.

Existe uma poética das ruas, escrita com nossas experiências, tecida por lembranças, palmilhada pelas andanças, constituída pelos universos que elas comunicam. Uma poética das direções, dos sentidos, das reminiscências, do que se perde e do que se acha no vai e vem das ruas.

Na esquina da Silva com a Benjamin eu descobri o mundo. Ali, nas noites quentes, perfumadas de jasmim, eu li Drummond. Nas madrugadas frias, envoltos pelo espesso lençol de cerração, filosofávamos em vão, sem guia, sem chão, sem Comte, sem Danton, embalados apenas pelo gosto da conversa, que aflora nas rodas de chimarrão.

Às vezes penso que nunca sai daquela esquina.


terça-feira, 10 de outubro de 2017

A CONSTRUÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO COMO HERÓI NACIONAL E MITO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA.

A CONSTRUÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO COMO HERÓI NACIONAL E MITO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA.




“E era de esperar que de todos os pontos do Brasil rompesse [...] o hino de gratidão e glória ao Restituidor dos territórios, filho do Libertador dos ventres escravos! [...]O glorioso brasileiro, porém, não guardará ressentimento disso: ele não é dos que se estafam no trabalho com o pensamento fixo no salário” (Olavo Bilac).













1.     O Herói Nacional.

Duas observações inicias:

1.     Os heróis e os mitos políticos são símbolos de identificação coletiva. São signos por meio dos quais um regime político (A República) ou uma instituição (O Itamaraty) expressam os seus valores e se legitimam socialmente.

2.     Os heróis não nascem prontos. São construções históricas e sociais idealizadas que se projetam para além dos condicionantes de sua época. O herói é o homem que sai da vida para tornar-se símbolo. No caso do Barão do Rio Branco, herói da nacionalidade, pelos serviços prestados à consolidação do território nacional, e símbolo da diplomacia brasileira.



José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, era considerado, em vida, um herói nacional. Caso raro. Gozava de enorme prestígio no círculo das elites letradas que, com algumas exceções, o tratavam como um semideus. Gozava também de grande popularidade. Era uma figura carismática e, em certa medida, anedótica, apesar do corte aristocrático. Era um notório comilão, frequentador assíduo do restaurante do Minho, e gostava de passear a pé respondendo aos cumprimentos dos populares. Sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 1902, para tomar posse como ministro, foi triunfal, dizem os seus biógrafos. Vitorioso nos dois arbitramentos, com a Argentina e a França, foi recebido no porto por uma multidão! O navio Atlantic, que o trazia da Europa, foi cercado por lanchas com representantes do governo, das forças armadas e de diversas entidades da sociedade carioca. Do navio, o Barão passou para o Galeão D. João VI que, sob distinta escolta, o conduziu até o cais Pharoux. Desfilou pelas ruas em carro aberto, sob aplausos, como um “triunfador romano”, segundo a pena apologética de Álvaro Lins. Sob gritos, aplausos, clarins, bandas de música e flores que eram jogadas das sacadas pelas mulheres, o Barão teve o seu “encontro pessoal com a glória”.  Quando os cavalos não puderam mais prosseguir, dado o acúmulo de gentes, estudantes se prontificaram para puxar o carro (Filho; Santos). Um episódio narrado por Álvaro Lins, biógrafo de Rio Branco, chama bastante a atenção. A certa altura do percurso, um “preto, ex-escravo”, aproximou-se chorando do landau que trazia o Barão, tomou-lhe a mão e disse que beijava a mão do filho do maior dos brasileiros, libertador de escravos. Embora atribuída à percepção dos cronistas da época, é difícil saber se o episódio de fato ocorreu ou foi um enfeite, um acréscimo da imaginação apologética para ressaltar ainda mais a importância do acontecimento. Todavia, difícil mesmo é não perceber a semelhança entre a forma como Olavo Bilac, citado na epigrafe, e o “preto” anônimo, típicos representantes da cultura erudita bacharelesca e da cultura popular brasileiras, se referiram ao Visconde do Rio Branco. Os apelos à redenção nacional e à predestinação são sugestivos dos atributos que o Barão, como querem os apologistas, trazia do berço.

A vida do Barão, especialmente os anos de chancelaria, foi coroada de honras e lauréis. Mas foi depois da morte, em 10 de fevereiro de 1912, que se estabeleceu verdadeiro culto à sua figura. Personalidades da época, como Olavo Bilac e Rui Barbosa, e conhecidos desafetos, como Oliveira Lima e Estanisláo Zeballos, renderam-lhe as mais distintas homenagens. O carnaval foi adiado para abril e os jornais derramaram solenes e honrosos elogios fúnebres em sua homenagem. Para o jornal A República, por exemplo, “Nenhum brasileiro atingiu mais alto o culto da veneração popular. O Barão do Rio Branco era verdadeiramente um patrimônio nacional. A nação que o amou em vida há de idolatrar-lhe reverentemente a sua venerada memória”.

Cinco dias depois do falecimento, a Avenida Central, principal via de circulação do Rio de Janeiro, que ligava o Novo Porto à região da Glória, passou a chamar-se Avenida Rio Branco, conforme noticiou o jornal O Paiz, de 16 de fevereiro de 1912.
(Imagem do jornal).

No plano extraoficial, portanto, o Barão já era herói. Todavia, a oficialização de seu nome para figurar no panteão nacional só aconteceria no século XXI. Em abril de 2011, antecipando-se ao Centenário da morte do Barão, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 7403/02, que inscreveu o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. O mesmo já havia sido feito em 2002, por ocasião do Centenário da posse de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores (MRE). No documento enviado ao presidente Fernando Henrique Cardoso, assinado por Celso Lafer e Francisco Weffort, foram apresentadas as seguintes justificativas para a inclusão do nome do chanceler no Livro dos Heróis:

“Além da obra de Rio Branco, ressaltaram-lhe os membros da Comissão o espírito, a grandeza moral, a personalidade política, os dons intelectuais e, sobretudo, a visão de um Brasil grande e respeitado no plano internacional. Em seu tempo, foi ele considerado "o maior dos brasileiros vivos" e declarado "benemérito" por decreto; morto, tornou-se um paradigma de patriotismo e dedicação desinteressada ao serviço do país. Enalteceram-no contemporâneos do porte de um Oliveira Lima, para quem "contribuiu mais do que ninguém para fazê-la (a pátria) maior e contribuiu tanto quanto os melhores para fazê-la respeitada".

A grandiloquência dos adjetivos usados para justificar a inclusão do Barão no seleto livro dos grandes heróis nacionais não deixa dúvidas sobre as extraordinárias virtudes que o homem colecionava. Os admiradores dos feitos e dos talentos do Barão, ontem e hoje, nunca economizaram nos adjetivos. Não que o chanceler não mereça alguns deles. Mas daí a transformar o homem na cornucópia das virtudes, vai uma grande diferença.

Os Centenários da posse e o da morte foram eventos simbolicamente importantes para a atualização do culto e rememoração dos feitos do Barão. Datas comemorativas se prestam a estas finalidades. Comemorar é um movimento de retorno ao passado para trazê-lo à memória. É relembrar com, é tornar presente, reatualizar. Como o presente não é fixo, e suas demandas se renovam, os eventos do passado são sempre recriados a cada comemoração. Estas ocasiões são marcadas por festividades, solenidades públicas, seminários, lançamento de selos comemorativos e pela publicação de obras literárias, historiográficas e/ou hagiográficas em homenagem aos heróis da fé, da política, da diplomacia.

Nos anos subsequentes ao falecimento, vários monumentos foram erigidos em diversas cidades brasileiras, para imortalizar no bronze as glórias do Barão. Lidos como artefatos dotados intencionalmente de sentido político, os monumentos, instalados nos espaços públicos das cidades, são intervenções no presente que expressam os sentimentos estéticos de uma época e dirigem mensagens simbólicas para o futuro. São “verdadeiros discursos políticos” republicanos, de influência positivista, que exaltam o culto cívico e as virtudes do homem que dignificou a pátria. Construídos pelo Estado ou por grupos políticos (como a elite republicana brasileira no começo do século XX), os monumentos celebram as glorias do passado (identificados com os seus interesses) e visam o fortalecimento da identidade nacional (Carvalho; Corrêa). São, portanto, expressões e afirmações da identidade e do poder de determinados grupos políticos.

Em Porto Alegre, para ficarmos com um exemplo, o monumento foi inaugurado em 1916, na praça da Alfandega, em frente ao Memorial do Rio Grande do Sul. O Barão, majestoso, segura com uma das mãos um indefectível pince-nez, com a outra, o Tratado das Missões. Numa das placas comemorativas, colocada à sua frente, lemos a inscrição: Em toda a parte me lembro da Pátria. Na base do monumento, uma mulher, representando a República, revestida com símbolos republicanos tradicionais (coroa de louros e barrete frígio), porta a bandeira nacional e estende reverentemente o braço na direção do Barão. A República se rende em homenagens ao homem que nunca abandonou o título nobiliárquico (que recebeu de Princesa Isabel, em 1888, como um agrado ao filho do autor da lei do Ventre Livre).



Em 1945, no contexto das celebrações dos cem anos do nascimento do Barão, foi publicada a primeira biografia em sua homenagem, encomendada por Oswaldo Aranha e Maurício Nabuco, respectivamente ministro e secretário das relações exteriores, e escrita por Álvaro Lins. Com tons acentuadamente hagiográficos, Lins pinta um retrato do Barão, a quem chama de “esfinge”, que o eleva ao plano da transcendência.  A morte “não era o fim, mas o começo de alguma coisa”, observa gravemente o biógrafo. “Efetivamente, ali começava agora a mais autentica existência de Rio Branco: a existência imaterial e histórica, contra a qual não teriam forças nem a morte, nem o tempo”. A biografia foi reeditada em 1996, em homenagem ao sesquicentenário do nascimento.

1945 é o ano em que Rio Branco se consolida de fato como Patrono da Diplomacia Brasileira. Além da biografia, uma série de decretos, assinados por Getúlio Vargas, transformaram o 20 de abril (data do nascimento) numa data cívica, criaram o Instituto Rio Branco e instituíram a medalha comemorativa do centenário do nascimento. O Instituto passou a chamar-se Casa Rio Branco e o Barão tornou-se sinônimo de tradição na diplomacia brasileira. A invenção da tradição Rio Branco prosseguiu com o decreto de 1963 que instituiu a Ordem e Rio Branco e o de 1970, que transformou o 20 de abril no Dia do Diplomata.

Em 1959 veio a público a segunda biografia de Rio Branco, escrita por Viana Filho (Também reeditada em 1996). Os dois biógrafos, cada um à sua maneira, exaltaram as qualidades do Barão, enfatizaram as linhagens familiares, com destaque para a fidalguia e a “herança militar” que “trazia no sangue”. A carreira diplomática é nos apresentada como vocação familiar e como predestinação.

Em geral, os escritos sobre Rio Branco são bastante seletivos. Tudo o que depõe contra ou pode de alguma forma macular o herói, como certas passagens da juventude, é deixado de lado. Raramente é trazido à memória, por exemplo, as intervenções do chefe de gabinete conservador do Império, Duque de Caxias, e do ministro de Negócios Estrangeiros, Barão de Cotegipe, em favor da nomeação de Paranhos para cônsul-geral em Liverpool. Aproveitando a ausência de Pedro II, que era sabidamente contra e estava nos Estados Unidos para assistir os festejos do centenário da Independência, os dois amigos intercederam junto à Princesa Isabel (Mariz). Cotegipe, numa última e pesada cartada, ameaçou renunciar, caso a princesa não assinasse a nomeação. A renúncia abriria uma “crise política de consideráveis proporções” (Mariz). “Estaria a regente disposta a provocar uma crise, na ausência de seu pai, por um motivo tão fútil?”, ponderou o biógrafo Viana Filho, em torcida póstuma pela tão esperada nomeação. Isabel não resistiu à pressão e, em maio de 1875, depois de três tentativas fracassadas da dupla Caxias/Cotegipe, nomeou Paranhos Júnior. (O capítulo intitulado Liverpool, da biografia de Viana Filho, traz em detalhes as circunstâncias da nomeação, enriquecidas com trechos de cartas trocadas entre os envolvidos).



A memória de Rio Branco também foi imortalizada nos selos postais. Embora não devidamente valorizados como fontes de pesquisa, os selos são peças importantes das engrenagens mistificadoras e dos processos de construção de heróis nacionais. Muito mais do que simplesmente um papel adesivo que comprova o pagamento de uma taxa por serviços postais, os selos acompanham a história do Brasil desde meados do século XIX e carregam os diferentes sentidos que a história assumiu em distintas condições históricas. São, por isso mesmo, instrumentos pedagógicos valiosos, de fácil manuseio e baixo custo (SALCEDO).

Os Selos em homenagem ao Barão são lançados em datas comemorativas, ocasiões oportunas para celebrar e reatualizar o mito. Ao lado dos monumentos, das biografias, dos nomes de ruas e das muitas formas de homenagens, os selos, vistos como portadores de discursos políticos, ajudaram a compor a grande narrativa do “herói” e pavimentar o caminho para a imortalidade.

Selo de 1945 – Centenário do Nascimento do Barão (20 de abril de 1945).


Selo de 1995 – Sesquicentenário do Nascimento do Barão.


Não há dúvidas de que o Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, definiu os contornos e as diretrizes fundamentais da política externa republicana no início do século XX. Era um homem de talentos, de visão e, sobretudo, um dedicado estudioso da história e dos limites territoriais do Brasil. Sua importância, no entanto, não pode ser vista como um ato de iluminação, de grandiosidade patriótica desinteressada ou identificada com algum tipo de predestinação. Para alguns estudiosos da política externa que embarcam neste conto laudatório da diplomacia, a figura de Rio Branco, entidade quase mítica, paira inalcançável sobre seus sucessores. É necessário reconhecer a importância do Barão naquele período, afinal, foram dez anos comandando a política externa, mas é preciso, também, evitar exageros e idealismos que elevam o chanceler a uma condição sobre-humana e dificultam uma apreciação mais serena do seu trabalho. Rio Branco exerceu suas funções no espaço político demarcado pelas forças oligárquicas. Esteve à frente do MRE por dez anos, caso único, e emplacou notável estabilidade à política externa porque sua gestão traduzia perfeitamente os interesses da elite agroexportadora brasileira. O liberalismo jurídico, que orientou a conduta do chanceler nas relações exteriores do Brasil, ia ao encontro das expectativas dos grupos ligados ao comércio exterior. Quando Rio Branco deslocou, como ele dizia, o eixo da diplomacia brasileira de Londres para Washington, mais do que visionário, ou um homem à frente do seu tempo, tomava essa decisão amparado por números que não deixavam dúvidas sobre a orientação do comércio exterior brasileiro naquele começo de século: o mercado interno norte-americano absorvia 36% das exportações brasileiras e, desde o fim da guerra de secessão, importava mais da metade do café brasileiro e era o principal importador do cacau e da borracha. Havia, como bem observou Rubens Ricupero, perfeita correspondência entre os gestos diplomáticos e a realidade econômica. Isso não diminui as escolhas do Barão, acertadas ou não, apenas as retira do plano metafísico e as coloca numa dimensão histórica e política. Barão do Rio Branco levou a efeito, e com sucesso, um esforço de aproximação entre os dois países que já vinha das últimas décadas do século XIX, cujos primeiros movimentos remontam à viagem de D. Pedro II aos Estados Unidos, em 1876.

O culto nos círculos diplomáticos em torno do Barão beira à idolatria. A literatura apologética, composta de biografias, necrológios e ensaios históricos, tende a separar a história da política externa brasileiras em dois momentos e apresentar o Barão como o homem providencial, o marco fundante da moderna diplomacia brasileira. Este tipo de interpretação tende a exaltação dos feitos do chanceler como obra sobre-humana, inscrita num plano superior, metafísico, descolada das condições históricas e das relações políticas às quais ele estava ligado e das quais se beneficiou no começo da carreira diplomática. Fica a impressão, quando lemos certos autores, que a gestão do Barão transcendia à política doméstica e mantinha autonomia olímpica em relação ao peculiar jogo de interesses que caracterizava a política do seu tempo.



2. O Pai da Diplomacia Brasileira.

Rio Branco é considerado o “pai da diplomacia brasileira”. A homenagem, em certo sentido, é compreensível. Rio Branco foi um marco de estabilidade e de definições na política externa, que contrasta com o período anterior, marcado pela instabilidade e, ao que tudo indica, pela falta de diretrizes claras da atuação internacional do Brasil. Mas, sem os devidos cuidados, a homenagem pode encerrar uma forma de distinção que hierarquiza arbitrariamente dois momentos históricos. O título de “pai” remete a figura do fundador, do criador, da gênese da instituição da diplomacia. O que havia antes da sua chegada ao MRE passa a ser visto como um tempo difuso, nebuloso, espécie de pré-história da diplomacia. Com Rio Branco fez-se a luz e o Brasil, finalmente, passou a ter uma diplomacia digna deste nome. Não preciso nem dizer que construções como esta tem o efeito, mesmo que indesejado, de lançar às sombras os esforços diplomáticos anteriores em prol, por exemplo, da delimitação das fronteiras conduzidos pelos diplomatas do Império, como Duarte da Ponte Ribeiro, o fronteiro-mor do Império (GOYCOCHÊA).



Se considerarmos a rotatividade do cargo de chanceler entre 1889 e 1902 (13 ministros ocuparam o cargo em 12 anos) e o ligeiro desinteresse e amadorismo dos primeiros governos republicanos em relação à política externa, que priorizaram a construção da legitimidade interna da república, a chegada de Rio Branco ao MRE parece ser mesmo providencial. Desde 1876 vivendo na Europa, desempenhando as funções de cônsul e embaixador, em Liverpool e Berlim, respectivamente, o Barão chegava ao Brasil em 1902, a convite do presidente Rodrigues Alves, carregando um impressionante histórico de vitórias diplomáticas, sobre a Argentina e a França, que selaram definitivamente dois problemas de fronteira herdados do século XIX.  Tudo isso contribuiu para a heroificação ainda em vida. Depois da morte, na pena dos apologistas, os feitos ganharam dimensões épicas e o nome do Barão foi definitivamente incorporado ao panteão dos heróis como uma das raras unanimidades nacionais.



Referências Bibliográficas.

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. São Paulo: Cia das letras, 1990.
CORRÊA, Roberto Lobato. Monumentos, política e espaço. Revista eletrônica de Geografia y Ciências Sociales. Universidad de Barcelona.Vol. IX, núm. 183, 2005.
FILHO, Synesio Sampaio Goes. Fronteiras: o estilo negociador do Barão do Rio Branco como um paradigma da política exterior do Brasil. In: Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. FUNAG, 2002.
FILHO, Viana Luís. A vida do Barão do Rio Branco. São Paulo: José Olímpio, 1988.
GOYCOCHÊA, Luis Felipe Castilhos. O Fronteiro-mor do Império (Duarte da Ponte Ribeiro). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
LINS, Álvaro. Rio Branco (biografia). Brasília: Alfa-Omega, 1996.
MARIZ, Vasco. A mocidade do Barão do Rio Branco e sua tormentosa nomeação para a carreira diplomática. Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. FUNAG, 2012.
MOURA, Cristina Patriota. Herança e metamorfose: a construção social de dois Rio Branco. Revista Estudos Históricos. FGV. N 25, 2000.
SANTOS, Luís Cláudia Villafañe. O dia em que adiaram o carnaval. São Paulo: UNESP, 2010.
RICUPERO, Rubens. Rio Branco: definidor de valores nacionais. In: Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. FUNAG, 2002.
SALCEDO, Diego. A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 1900-2000. Editora Universitária (Livro em construção).




segunda-feira, 19 de junho de 2017

“VÔ MATÁ ESSE BUGRE”: OS CONFLITOS ENTRE OS XOKLENG E OS COLONOS NO ALTO VALE DO ITAJAÍ (Primeira metade do século XX).

“VÔ MATÁ ESSE BUGRE”: OS CONFLITOS ENTRE OS XOKLENG E OS COLONOS NO ALTO VALE DO ITAJAÍ (Primeira metade do século XX).

                                                      Martinho bugreiro e seu grupo.

Os confrontos entre os colonos de origem europeia e os grupos Xokleng que viviam na Serra e no Planalto, na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, são a face mais dramática e violenta, e surpreendentemente menos estudada, da colonização de Santa Catarina. A colonização, da perspectiva dos colonizadores, por outro lado, é um dos temas prediletos da historiografia catarinense, especialmente da historiografia de corte mais tradicional. O relativo desinteresse dos historiadores e antropólogos pelo lado indígena da colonização, e pelos conflitos entre os dois lados, não deriva, como poderíamos supor à primeira vista, da escassez de fontes.  Existe um conjunto de documentos nos arquivos públicos em todo o Estado com registros e relatórios oficiais sobre as populações indígenas e os confrontos com os colonizadores. Num outro registro, a memória local, preservada nas lembranças das pessoas mais velhas que viveram aqueles tempos, conserva um riquíssimo repertório de narrativas sobre as interações, violentas ou pacíficas, entre os dois lados. Dependendo dos usos que fazemos da memória, ela tanto pode ser uma fonte auxiliar, e de valor equivalente, dos documentos oficiais, quanto um contraponto às impressões deixadas pelos agentes públicos ligados à colonização (refiro-me aos registros dos inspetores, dos diretores de aldeamentos, os ofícios dos delegados e subdelegados de polícia, etc.).

Em 2009, conversando com antigos moradores de Petrolândia, no Alto Vale do Itajaí, em busca de informações sobre a colonização da região, ocorrida no começo do século XX, ouvimos narrativas sobre as relações dos colonos com os Xokleng (chamados por eles de “bugres”) que nos dão bem a ideia da tensão e da violência que cercavam o cotidiano daquelas pessoas. Eu estava ajudando Vivian com as entrevistas, e ouvia atento às passagens narradas pelos moradores mais velhos sobre os confrontos com os “bugres”. Vivian escrevia uma dissertação sobre a colonização de Petrolândia e uma das fontes eram as memórias dos moradores mais antigos. Pelo jeito calmo e atencioso, e os lindos olhos verdes que inspiram confiança, ela conseguia deixar as pessoas à vontade para responder as perguntas. A conversa corria solta e as histórias iam espontaneamente aparecendo, apesar do gravador ligado.

Um dos entrevistados, que hoje mora no centro de Petrolândia, nos contou, num boteco de beira de estrada, sobre um episódio ocorrido na localidade de Rio Engano, em Angelina, que ouvira de sua mãe (Com 80 anos, o senhor fumava e bebia regularmente naquele boteco). “Era um sábado à tarde”, disse o nosso narrador, “e saiu um bugre de uns 15 ou 16 anos do mato, ele estava pelado e sentou numa pedra perto uns 400 metros” das casas dos colonos. “As pessoas que moravam ali uns ficaram com medo, outros não, nesse meio tempo tinha um atrevido e disse pro outro: vô matá esse bugre (...)”. Sem mais, “o rapaz pegou um winchester e atirou no bugre”. “A mamãe disse que eles ficaram com muito medo e disseram isso vai dar coisa. Falaram que ia se arrepender daquele dia, mas não os bugres saíram rápido do mato e levaram o bugre morto nas costas de volta pro mato”.

O assassinato do menino Xokleng, que deve ter ocorrido na década de 1920, foi contado com tanta naturalidade como se o alvo do disparo do winchester fosse uma capivara ou um desses javalis que devoram atualmente as plantações de milho na região. Ficamos imóveis, nos entreolhamos, e o senhor continuou tranquilamente sua narrativa como se aquilo não fosse nada, como se o menino abatido não fosse um ser humano! Não só isso. Aquele senhor tranquilo, educado e humilde, não manifestava qualquer tipo de julgamento, desconforto ou sentimento sobre a morte do menino. Era aquilo e pronto. A espontaneidade com que o sujeito pegou a arma para atirar no menino era a mesma, setenta anos depois, da do senhor que nos contava a história. Estávamos ali, petrificados, diante da alteridade do passado, em toda a sua estranheza, personificada naquele senhor.

A preocupação dos colonos com a morte do menino era somente em relação a uma possível contraofensiva dos “bugres”. Nada mais. E não era para menos. Quatorze dias depois do ocorrido, os parentes voltaram para se vingar. Os moradores das casas próximas haviam saído. “Somente em uma das casas”, contou-nos o nosso narrador, “ficaram duas crianças que eram deficientes, que não conversavam, não andavam e tinham mais problemas. E os bugres vieram e mataram os inocentes. Não sei como eles sabiam que querosene dava fogo, mas pegaram os galões e colocaram nas casas e (ateavam) fogo. Queimou as casas, as crianças tudo. Fizeram isso dali e o que matou não tava”.

Temerosos de novos ataques, as famílias se reuniram e contrataram os serviços do famoso Martinho Bugreiro (foto ao lado), que morava provavelmente na localidade de Serro Negro, em Ituporanga. Segundo o nosso narrador: “as famílias ficaram com medo e acharam que eles iam matar todo mundo. O Martinho Bugreiro foi atrás e os índios foram fugindo, Leoberto Leal, Imbuia e aqui em cima da Serra a matança foi grande. Nos criança muito curiosa, queria saber como ele matava. Disse que de noite, sei lá, diz que esse Martinho Bugreiro era que nem cachorro sentia o cheiro, e dizia eles estão em tal lugar. Chegaram perto e ele disse tão dançando, fazendo baile vamos esperar até eles dormir. Tinha um cachorro bem magrinho que viu eles e ficava latindo, diz que os bugres têm um sono muito forte, quando começa no sono é difícil acordar, isso é o que dizem (...). Deitaram em carreiro. O cachorrinho ainda latia e aquele foi o primeiro que passaram o facão, diz que ele entrava nas barracas e passava o facão e o sangue jorrava, não sobrou ninguém”.

Histórias como essa são bem conhecidas no Vale e Alto Vale do Itajaí. Ainda estão vivas nas memórias dos moradores mais velhos e são repassadas nos círculos familiares, não com orgulho, mas como algo que faz parte de suas vidas e das histórias locais. Perguntando com jeito, eles falam. A mesma narrativa, com ligeiras variações, nos foi contada por duas pessoas em entrevistas diferentes e em situações distintas.

O senhor que nos concedeu a entrevista no boteco vem de uma família de imigrantes alemães que chegou a Santa Catarina no final do século XIX. Sua família, como tantas outras, atravessou o mar em busca do “paraíso” prometido pela intensa propaganda promovida pelas companhias de imigração responsáveis por estimular a imigração para o Brasil, na segunda metade do século XIX. Vendia-se a imagem de um “paraíso” possível, abundante em terras de boa qualidade e com clima agradável. Os agentes de propaganda procuravam atrair gente com a promessa de lhes pagar a viagem oferecendo terras, semente, gado, material de construção, ferramentas e, também, o gozo de todos os direitos civis, isenção de impostos por cinco anos e liberdade de crença. Um folheto que circulava em Hamburgo em meados do século XIX nos dá o tom dessas propagandas e do que era oferecido ao trabalhador que se dispusesse a abandonar sua pátria e se deslocar para o Brasil:

“Iniciamos agora a viagem para terras brasileiras,
esteja conosco Senhor, e guie sim, faça Tu o nosso caminho,
esteja conosco no mar , com Tua mão paterna,
que chegaremos bem felizes na terra brasileira.
Deus falou para Abraão: abandona a tua terra,
e parte para outra que minha mão forte te indicar.”

Como Abraão, os imigrantes dirigiam-se a uma “terra prometida” guiados pela mão certeira de Deus através dos perigos do mar. A promessa era maior que as eventuais dificuldades e o Imperador os esperava generoso, protetor, de braços abertos a dividir a “terra brasileira”. Mas nem tudo acontecia conforme o que era prometido pela propaganda. Ao contrário do que se dizia ou se pensava, as terras não eram desabitadas e não estavam disponíveis. A nova Canaã já era habitada por grupos indígenas, os cananeus tropicais, que reagiriam à entrada dos colonos europeus. Os colonos, por sua vez, se armaram para dar combate aos “bugres” e defender as terras recém adquiridas.

Mas afinal, quem tinha razão naqueles sangrentos conflitos? (Se é que podemos nos perguntar isso, quase cem anos depois). Os colonos eram convidados do Imperador e traziam título de propriedade das terras recém-adquiridas. Os indígenas viviam há séculos na região e tinham a posse ancestral do território. Cada um, à sua maneira, poderia reivindicar a legítima permanência nas terras. Parece então que o problema estava com o governo brasileiro, que não reconhecia direitos dos povos indígenas sobre parcelas do território e construía a falsa ideia de um vazio demográfico a ser preenchidos pelos migrantes. Este desconhecimento ou negligência acarretaria em dramáticos conflitos entre os habitantes locais e os novos moradores, em disputas pela posse e usufruto das terras.

Ainda no século XIX, duas iniciativas, cada uma à sua maneira, encaminhavam uma solução para o problema, visto como uma ameaça ao sucesso da colonização. Em 1879, o governo provincial criava milícias armadas, comandadas por “bugreiros”, para dar fim aos indígenas, embora oficialmente a justificativa fosse contatá-los e conduzi-los a lugares seguros. As ações dos “bugreiros”, usando táticas de tocaia (como aquela empregada por Martinho Bugreiro à serviço das famílias de Rio Engano), eram violentas e poupavam, às vezes, apenas algumas mulheres e crianças. Os sobreviventes dos extermínios eram levados para Blumenau e Florianópolis, onde eram entregues à adoção, visando a civilização. Contrapondo-se à política oficial, os frades capuchinhos realizavam incursões nas matas com o objetivo de catequiza-los. Entre o final do século XIX e início do século XX, verifica-se uma mudança de postura em relação aos indígenas, embora em cidades como Blumenau, Lages, Orleans, Joinville e em muitas localidades do Alto Vale, os “bugreiros” ainda se encontrassem em plena atividade. Em 1906-7 foi fundada, em Florianópolis, com a autorização do governo estadual, a Liga Patriótica para a Catequese dos Silvícolas, que advogava um tratamento mais humano aos indígenas e o fim das matanças. Subjazia à fundação da Liga um ideal de inspiração positivista que defendia a integração do indígena à comunhão nacional, por meio da civilização. Em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), também de inspiração positivista. A tese que presidia a criação do SPI era a da transitoriedade do índio, isto é, a possibilidade de progredir do estágio natural para a civilização. Isso seria possível graças à perfectibilidade, vista como a capacidade de melhorar, de se afastar da natureza, de ter o controle de si próprio e se ajustar à vida civilizada. A política adotada pelo SPI, neste sentido, visava transformá-los em trabalhadores nacionais.

Os tempos hoje são outros. Os “bugres” já não são mais caçados por “bugreiros”, à serviço dos colonos ou das Companhias de Colonização, ou abatidos a tiros de winchester. Antes, eram considerados “selvagens desalmados” e perigosos. Hoje, são inofensivos e levam uma vida bastante simples e pacata nas franjas de algumas cidades do planalto catarinense. O que não quer dizer que a situação tenha melhorado. As populações foram dramaticamente reduzidas e invisibilizadas. Vivem atualmente em refúgios, nas reservas indígenas e nas margens das cidades e, geralmente, são vistos com desconfiança pelas populações locais, que os taxam de sujos, ladrões e preguiçosos, que vivem às custas do governo.

                                                  Meninas Xokleng - Santa Catarina.

A lembrança da presença dos grupos indígenas na região se resume hoje a uma vaga e nebulosa toponímia (Ribeirão dos Bugres, Rio dos Bugres), que sobrevive silenciosamente nos cantos e sombras do “Vale Europeu”. Alguns nomes de cidades construídas pelos imigrantes, marcadas noutros tempos pelos intensos conflitos, conservam curiosamente a denominação indígena, como é o caso de Ibirama (“Terra da Fartura”), de Ituporanga (“Salto Grande”) e de Perimbó (“Buraco”), antigo nome de Petrolândia.

O tiro certeiro do winchester ainda ecoa no Alto vale.


Dos poucos estudos disponíveis sobre o tema em Santa Catarina, recomendo, além dos estudos do antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, os livros “O Vapor e o Botoque”, da historiadora Luisa Tombini Wittmann, e o livro “Armas, Pólvora e Chumbo”, do historiador Almir Antonio de Souza.