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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O GUARANI INFANTIL E IMPREVIDENTE: arqueologia de um estereótipo jesuítico/colonial.


O GUARANI INFANTIL E IMPREVIDENTE: arqueologia de um estereótipo jesuítico/colonial.


A discriminação, o preconceito e as diversas formas de violência sofridas atualmente pelos indígenas no Brasil, de norte a sul, tem como pano de fundo um conjunto de estereótipos, degradantes e marginalizantes, que os infantilizam e os inferiorizam socialmente e intelectualmente. Os estereótipos são imagens poderosas, herdadas dos tempos coloniais, que se traduzem/desdobram, em nosso tempo, em discursos e práticas sociais que atentam contra a dignidade e a alteridade indígenas. Apesar dos avanços promovidos pela constituição de 1988, que lhes assegurou direitos, o respeito ao seu modo de vida e organização social e o reconhecimento do direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, os índios ainda são tratados como cidadãos de segunda categoria (para dizer o mínimo).

O efeito mais nocivo dos estereótipos é a naturalização de certas características negativas atribuídas aos indígenas (preguiça, indolência, infantilidade, inconstância, incapacidade e indigência). Tais características, vistas como inatas, portanto insuperáveis, os tornariam inaptos à convivência em sociedade ditas desenvolvidas. O estereótipo opera uma simplificação esquemática das características presumíveis de determinados grupos (Os ingleses são pontuais, os argentinos são arrogantes, os japoneses são educados e disciplinados, etc.). A eleição de um dado particular, e sua elevação à condição de enunciado coletivo, característico do reducionismo que subjaz à construção dos estereótipos, leva às generalizações esquemáticas e à caricatura cultural. Como bem observou Maria Consuelo Cunha Campos (Figurações do outro), “entre a cultura que olha e a que é olhada se estabelece um espelhamento: eu olho o outro e a imagem que construo desse outro me devolve, como um boomerang, uma certa imagem de mim, de nós, imagem, que é, todavia, efetiva negação do outro (...).” O estereótipo, neste caso, enquanto definição negativa do outro, é a afirmação positiva do eu. É um jogo de construções identitárias que define o meu lugar e o lugar do outro no mundo, e os valores que orientam e regem estes mundos. Vejamos um exemplo. Um dos argumentos contrário à demarcação das terras indígenas sustenta que os índios não trabalham. Logo, não precisam de terras. Afinal, terra é para quem trabalha. O entendimento que se tem de trabalho, certamente, não é mesmo que os indígenas têm. O julgamento auto-referenciado (todo estereótipo encerra alguma forma de julgamento) e a constatação da incapacidade do índio para o trabalho são feitos com base na percepção que aquele que julga tem de si mesmo e do que entende por trabalho, ligado a uma racionalidade produtiva e a uma lógica de mercado estranhas ao universo da maioria dos indígenas brasileiros.

Convido-o, caro leitor, a me acompanhar numa breve jornada arqueológica em busca de uma matriz discursiva, responsável pela fixação de algumas características atribuídas aos índios, e perseguir sua trajetória histórica em diferentes contextos, do século XVII ao século XX.

A proposição de uma arqueologia, aqui entendida como o desvelamento das condições históricas em que uma determinada maneira de pensar se configurou, é livremente inspirada em Michel Foucault. O procedimento arqueológico, ao identificar a emergência de uma linhagem discursiva, e situá-la historicamente, possibilita o questionamento dos estereótipos (ou discursos fossilizados) e dos supostos atributos essenciais e transcendentais que definiriam a natureza do indígena.

Comecemos a escavação do passado.

Num ensaio de 1973, sobre a vida de Santo Inácio e a Companhia de Jesus, Alain Guillermou perguntava retoricamente: “Quem eram então esses guaranis?” Seriam eles “selvagens terríveis” ou “bons selvagens”? Entre a visão negativa deixada pelos conquistadores espanhóis, que os pintaram com traços depreciativos que acentuavam sua ferocidade, e a visão romântica, que os imaginavam dóceis e próximos do “estado de natureza”, Guillermou procurou outra maneira de “ilustrar o caráter” dos “guaranis”. Desviou prudentemente das teses da ferocidade e da docilidade, mas deixou-se embalar por uma “anedota” carregada de etnocentrismo:

“Uma vez, alguns guaranis fugiram de uma redução, levando consigo um boi e um arado. Encontraram-nos a alguma distância: com a madeira do arado haviam feito fogo e estavam comendo quartos de boi que haviam assado.” (Alain Guillermou: Santo Inácio e a Companhia de Jesus).

Guillermou apresenta a narrativa sobre o boi e o arado como uma “anedota”. Mas o que exatamente quis dizer com esta “anedota”? Os índios que abandonaram a redução levaram consigo e, logo em seguida, queimaram e comeram o instrumento de trabalho que lhes garantiria a subsistência. O que se pode deduzir disto? O caráter, ou o ser do guarani, seria marcado por esta imprevidência, por este traço de inconseqüência congênita? A “anedota”, recorrente na maneira de descrever os guarani, sugere uma acentuada ingenuidade, acrescida de natural incapacidade prospectiva. Guillermou não endossa nem a tese romântica nem a tese degradante do índio, mas deixa no ar que compartilha de uma visão ainda mais perigosa: a de que o índio, pela incapacidade de pensar prospectivamente, seria incapaz do auto-governo. Os guarani que fugiram da redução, de onde eram tutelados pelos padres, escaparam aos ditames da razão previdente e retornaram ao seu antigo modo de vida. Donde se deduz que, longe das reduções e do olhar vigilante dos padres, os índios deslizam rapidamente para o abrigo das matas, abandonam os frágeis elos que os prendiam à cultura e voltam à inocência selvagem. A “anedota” é uma reedição do tema da natureza inconstante dos índios. É o eco do discurso colonialista e da velha incapacidade europeia de pensar o outro pelos seus próprios termos.

Mais do que indicar o ser/caráter do guarani, esta “anedota” poderia muito bem “ilustrar o caráter” paternalista das reduções e, porque não, do olhar deslocado do intelectual. Na verdade, o que Alan Guillermou chamou de “anedota” traduz a percepção e a pedagogia jesuítica no espaço reducional. Escavando em torno desta ideia vamos encontrar a gênese de um estereótipo colonialista. O jesuíta Antonio Sepp, que atuou nas reduções do Paraguai entre 1691 e 1733, nos deixou páginas preciosas sobre esta suposta ingenuidade guarani. De passagem pela redução de Japeyu, em julho de 1692, ouviu do missionário responsável pela redução uma história que o impressionou:

“Não posso furtar-me a relatar, diz o padre Sepp, neste lugar, o que sucedeu a um missionário, há poucos dias. Deste fato pode-se inferir que este povo não tem previdência alguma, que tudo devora num dia e não cogita de que precisa viver também no dia seguinte. Quando chega a época do amanho e da sementeira (...) o Padre dá de presente a cada índio duas ou três juntas de boi para o amanho da roça, que muitas vezes não vai além de quinze passos. A roça, sem dúvida, não é tão pequena por falta de terra, - porque esta não tem marcos nem cercas, mas está aí livre, para quem queira cultivá-la – mas por pura preguiça! E não dariam conta nem deste pedacinho de roça, deste punhado de terra, se o Padre não apertasse o agricultor preguiçoso com sovas e inspeções incessantes. E não amanhariam este punhado de terra nem em dois meses e mal fariam um carreiro por dia, mas pendurariam sua rede entre duas árvores e fariam folga perpétua”. (Antonio Sepp: Viagem às Missões Jesuíticas e trabalhos apostólicos).

Numa dessas inspeções o padre avistou de longe a fumaça e logo sentiu o cheiro de carne assada. O índio, sentindo-se culpado ao avistar o padre, “começou a tremer”. Um dos bois já havia sido devorado e a roça mal começara a ser lavrada. “Se o Padre quer que o agricultor preguiçoso e seus filhos tenham o que comer o ano todo, precisa não fazer caso e dar-le outro boi. Este fato se deu a pouco tempo com um Padre, e fatos semelhantes se dão todos os anos. Aos europeus isto parecerá incrível, mas aqui entre nós é a dura verdade, que os índios deixam, por pura preguiça, estragar as espigas de milho maduras e amarelas, se os Padres não os ameaçam expressamente com 24 pancadas de sova como castigo. Se alguém pergunta: de que maneira costumais castigar esses índios? Respondo brevemente: Como um pai castiga aos filhos que ama, assim castigamos os que merecem”.

O que Guillermou chamou de “anedota”, padre Sepp relata num tom grave, edificante e pedagógico. O índio glutão e imprevidente, após o castigo corretivo, redimiu-se, beijou a mão do padre e em reconhecimento teria dito as seguintes palavras: “Meu Pai, mil e dez mil vezes te agradeço que por teu castigo paternal ma abriste o juízo e me tornaste no homem que antes não fui.” O arrependimento e a gratidão do índio é a certeza do padre/pai da necessidade da tutela.

A batalha do padre Sepp contra a suposta natureza inconstante dos guarani era a mesma que os primeiros missionários jesuítas que evangelizaram no Paraguai travaram. Nas cartas anuas referentes aos anos de 1637 a 1639, organizada pelo padre Provincial Lupércio de Zurbano, os combates contra os antigos costumes ocupam uma parte considerável dos relatos. Tomemos um exemplo bastante ilustrativo. No “Pueblo” de “Nuestra Señora de Fé” a situação era quase incontornável, e os padres, mesmo trabalhando duro, não viam melhorias animadoras:

“Ya cerca de dos años habían trabajado los Padres desesperadamente, y todavía no se vió mejoría de costumbres, tan indomable es esta gente, tan dura de cabeza, y de tanta bajeza de caráter. No les entran consejos de los Padres. Así es espantosa entre ellos la borrachera, haciéndose un brebaje fermentado de miel silvestre aumentando su eficacia para embriagar cierta flor del campo, donde sacan la miel las abejas. A consecuencia de esta ebriedad son frecuentes abortos, peleas, asesinatos, y a veces verdaderas batallas entre las diferentes tribus de indios”. (Cartas anuas de 1637-1639, escritas por Lupércio de Zurbano ).

Na mesma carta o Provincial prossegue descrevendo a difícil luta dos padres contra os costumes herdados dos antepassados:

“Se aburren de la doctrina cristiana y de los misioneros, sin que por esto se desanimen nuestros Padres en su empeño de evangelizarlos. Las mujeres de estas tierras son desvergonzadas. Borrachas, la cara horriblemente pintada, bailan unas danzas verdaderamente abominables. Al reprenderlas después nuestros Padres por estos abusos, contestan con atrevimiento: Callate, Padre, tú también harás pronto lo mismo que nosotros. Dicen además, que se marchen los Padres a buena hora, cuando no quieren conformarse con nuestras costumbres. Nosotros nunca dejaremos estas costumbres y viviremos como hemos aprendido de nuestros antepasados. Tenemos que multiplicar nuestra raza teniendo muchas mujeres”.


O apego aos antigos costumes e a inconstância dos indígenas dificultavam o trabalho dos missionários. Viveiros de Castro analisou os discursos produzidos na América portuguesa sobre a natureza inconstante dos “selvagens”. A inconstância, “uma constante da equação selvagem”, tornava exasperadora a tarefa de convertê-los. Os índios, na percepção dos jesuítas, eram como “a mata que os agasalhava, sempre pronta a refechar-se sobre os espaços precariamente conquistados pela cultura. Eram como a terra, enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas.”. (Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem).

Padre Zurbano queixou-se dessa inconstância algumas vezes. Chegou a dizer que “nada  tiene consistencia en este mundo”. Ao mesmo tempo em que mostravam disposição para ouvir as palavras dos missionários, com muita facilidade esqueciam a mensagem evangélica e voltavam as velhas práticas.

Em 1731, em visita às reduções do Tape, cem anos depois da carta do padre Zurbano, foi a vez de José Cardiel registrar o “débil y defectuoso entendimento” dos guarani. “Son hombres de un día”, atestou Cardiel, “no discurren las consecuencias de lo futuro”. Devoram numa única refeição o alimento que duraria até quatro meses. Desperdiçam e dão tudo o que tem: “a ese modo es el porte del indio en la providencia económica”. Ao invés da narrativa do boi e do arado, deixada por Sepp, Cardiel  usa como exemplo da inconstancia selvagem o “caso” dos carneiros:
“Es tiempo perdido el usar largos discursos con ellos, ni razones sobre razones. Lo que aprovecha es decirles poco y muy trivial y material en sermones y confesiones, y aun en cosas materiales. Pondré un solo caso: aunque cada día me suceden a mí otros semejantes. Un Padre párroco le dio a guardar a un indio diez carneros, encargándole que cada semana trajese uno para él y su compañero. Hízolo así cinco semanas: y a la sexta vino diciendo que ya se había acabado. Díjole el cura: Cómo puede ser eso? Yo te di diez. – Es verdad, respondió. – Cada semana no has traído más que uno, y sólo cinco semanas los has traído: luego no has traído más que cinco. – Es verdad todo. Si de diez no trajiste más que cinco, quedan otros cinco. Dónde están esos? Respondió: - Tú los comiste. Volvió el Cura en toda forma: A quien de diez no le traen más que cinco, le quedan otros cinco: tú no trajiste más que cinco, etc: y siempre respondía: Tú lo comiste, después de haber concedido todo lo antecedente”. (José Cardiel: Carta y relación de las misiones de la Província del Paraguay).

Cincuenta anos depois da dispersão das missões, o viajante naturalista francês August de Saint-Hilaire, em viagem pelo Rio Grande do Sul, observou entre os guarani este mesmo traço de personalidade e completa ausência da noção de futuro. Passando pela região das missões, em 1822, registrou uma variação da “anedota”:

“Os guaranis, como todos os índios, não têm nenhuma idéia de futuro: aprendem com facilidade o que se lhes ensina, mas não criam nem compõe nada. De índole dócil, obedecem sem dificuldade, mas seu caráter não têm nenhuma fixidez; vivendo só do presente, não podem ser fiéis a palavra empenhada; não possuem nenhuma elevação de alma; são estranhos a qualquer sentimento generoso; ainda menos de honra; não têm ambição, cobiça ou amor próprio. Se alguma vez economizam, é sempre por muito pouco tempo. Um guarani, por exemplo, consegue comprar, por suas economias, uma roupa que pode abrigá-lo, durante longo tempo, das intempéries, mas logo depois a trocará por uma vaca, da qual nada restará ao fim do dia”. (Auguste de Saint-Hilaire: Viagem ao Rio Grande do Sul).

O ponto de vista, desta vez, não é o de um jesuíta, que poderia ser qualificado como suspeito. O juízo foi emitido por uma autoridade científica, um viajante naturalista, de renome internacional e amplo reconhecimento. Ecoando os poderosos juízos emitidos pelo naturalista francês Buffon e Cornelius De Pauw sobre os americanos, Sain-Hilaire fez um diagnóstico sombrio, pessimista e inexorável da situação em que se encontravam os guarani. A sentença final não deixou dúvidas: “A civilização não nasceu para índios.” Imprevidentes e sem visão prospectiva, os guarani eram, para Saint-Hilaire, comparáveis as crianças. Mas a criança, porém, desperta o interesse porquanto será homem um dia. O viajante ilustrado não vê saída para o impasse criado pelo colonialismo. Os guarani encontram-se, pois, encurralados numa espécie de limbo evolutivo, a meio caminho entre a civilização e a selvageria. A vida na floresta não lhes é mais possível, a vida em sociedade lhes é inatingível!

Pablo Hernández, em 1913, também deixou um quadro nada lisonjeiro dos guarani. À total incapacidade de previsão, acrescenta o estado de decadência moral em que se encontravam. O mais notável, avalia o historiador, é que nos primeiros anos de vida a criança guarani anuncia-se como uma promessa. A docilidade, a facilidade para aprender e a disposição prenunciam um “feliz desarrolho”. Mas com tempo, com o passar dos anos, percebe-se que os Guarani estacionam e voltam para trás, “tornándose incapaces e ininteligentes como los mayores, y perdiendo también la gracia y prontitud de aprensión, se volvían broncos y adquirían la tosquedad de los demás índios”. Hernández observa os índios com os olhos de Cardiel e endossa o juízo do padre com a chancela dos “profesores del evolucionismo”. A respeito da imprevisão, nada “muestra mejor ese carácter que la descripción que él hace P. Cardiel: No hay remédio da hacerles prevenir lo futuro, de que guarden el sustento para todo el año”:

“El major trabajo es hacer que hagan buena sementera: porque como el pobre índio no considera lo que há de durar el año, y su ánimo es sumamente flojo, aniñado é inadvertido, con un poço que tenga, ya está más contento (...)”. (Pablo Hernández: Organización social de las doctrinas Guaraníes de la Compañia de Jesús. 1913).

Carlos Dante de Moraes, crítico literário e ensaísta riograndense, dedicou um ensaio ao caráter dos guarani sob o regime missioneiro. Publicado em 1959, o ensaio procurava aplicar conceitos da psicologia ao estudo dos “povos primitivos”. Considerava o guarani de caráter “flutuante e incerto”, tudo nele era duvidoso e tosco. Por mais que os padres se esforçassem, afirma Dante, “jamais conseguiriam tornar o índio capaz de nutrir-se e vestir-se por seu exclusivo labor e iniciativa (...). Deixados a si mesmos, sem o olhar vigilante do padre e a disciplina dos açoites, andariam nus e famintos. Não demonstravam a menor aptidão para tirar partido da terra fértil”. Quanto à criação de animais, não possuíam previdência alguma. Usou o mesmo exemplo de Guillermou para traçar um quadro sorumbático da psicologia guarani: “Comiam o boi que lhes davam para rotear o solo, assando-o no próprio arado, que servia de lenha. Das vacas leiteiras, devoravam a cria, perdendo o leite, e logo depois sacrificavam a mãe.” (Carlos Dantes de Moraes: Figuras e ciclos da história Rio-Grandense).

A repetição da narrativa, inicialmente como passagem edificante, depois como um traço insuperável da condição selvagem e, por fim, como anedota, congela uma imagem estereotipada e a-histórica do guarani no tempo que, pela insistente repetição em diferentes contextos narrativos (nos relatos jesuíticos, nos relatos de viagem e em ensaios históricos), passa a definir-lhe o caráter. O estereótipo, principal estratégia discursiva do poder colonial, fixa uma imagem do colonizado, geralmente expressa em termos excessivos, ou anedóticos. Repetida à exaustão, em diferentes conjunturas históricas e contextos discursivos, acaba produzindo um efeito de naturalização. Os estereótipos acabam por produzir um conhecimento do outro como se fosse um negativo da imagem do colonizador. O discurso colonial, de acordo com Homi K. Bhabha, “é um aparato que acende o reconhecimento e a negação das diferenças raciais-culturais-históricas. Sua função estratégica predominante diz respeito à criação de um espaço para a "subjetividade das pessoas" através da produção de conhecimentos em termos de a vigilância ser exercida e a forma complexa de prazer-desprazer, incitada. O objetivo do discurso colonial se concentra em construir o colonizado como população de tipo degenerado, tendo como base uma origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e culturais.” (Ver: A questão do “outro”: diferença, discriminação e o discurso do colonialismo e O local da cultura).

A jocosa “anedota” utilizada por Guilhermou para ilustrar o caráter dos guarani, devidamente localizada, abre-nos a possibilidade de rastrear as pistas de uma linha discursiva, de matriz jesuítica, que alcança os viajantes naturalistas e se consagra na historiografia e na literatura. O discurso colonial, cuja faceta mais perversa é a construção do colonizado como incapaz e degenerado, se perpetua nestes estereótipos que articulam uma forma sutil de dominação, muitas vezes camuflada de proteção.


Alain Guillermou reproduziu a narrativa do boi e do arado, na forma de uma “anedota”, como se fosse um dado natural do “caráter” dos guarani, sem se preocupar em situá-la historicamente ou mencionar a fonte. Endossou o ponto de vista jesuítico/europeu sem levar em conta as condições históricas que conferiam sentido às representações europeias sobre os indígenas, os interesses e visões de mundo dos sujeitos envolvidos e as profundas assimetrias das sociedades coloniais. Confundindo estereótipo com anedota, Guillermou atualizou e perpetuou a visão dos colonizadores sobre os indígenas. Não precisamos de muita imaginação para saber que a “anedota” é um prato cheio para os detratores hodiernos dos indígenas e para os adversários da demarcação das terras pelo Brasil a fora. Seria a confirmação, com a chancela sofisticada de um linguista francês, de que estão certos. “Não disse, diriam eles, o índio é assim. Adianta dar terras para essa gente? Vão vender a terra, beber todo o dinheiro e depois pedir esmolas e sujar as ruas de nossas cidades.”




segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois mundos.


TRADUÇÃO E INVENÇÃO: Ruiz de Montoya, uma ponte semântica entre dois mundos.



A tradução é uma espécie de ponte semântica que opera um fluxo de sentidos capaz de conferir legibilidade àquilo que, a primeira vista, não é dado a ler. Nos encontro culturais entre os europeus e os povos americanos, a tradução desempenhou um papel central. As narrativas jesuíticas lançaram uma ponte entre as duas margens do oceano, por onde as novidades e as estranhezas captadas, e decodificadas, fluíam por meio de cartas, relações e crônicas. Encapsuladas pela escrita, as informações cruzavam o atlântico para serem lidas na Europa. Entre o mundo da oralidade e o mundo da escrita, o suporte tecnológico da tradução era a palavra escrita. As experiências dos missionários nos confins do mundo cristão chegavam aos leitores europeus devidamente decodificadas. Das fronteiras ao centro da cristandade, a escrita transportava as experiências, as novidades e as curiosidades, que tanto interessavam aos leitores externos das cartas jesuíticas. António Ruiz de Montoya, jesuíta e missionário peruano, autor da “Conquista espititual hecha por los religiosos de la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape” (1639), foi um mestre na arte da tradução e decodificação das culturas indígenas.

Montoya (1585-1652) chegou a Assunção, no Paraguai colonial, em 1612. Foi um dos mais importantes estudiosos do idioma guarani dos tempos coloniais e deixou um riquíssimo registro linguístico da língua desses povos (“Tesoro de la lengua guarani”). Antes dele, o franciscano Luiz Bolanõs já realizara estudos linguísticos na região e deixara um conjunto de anotações, que compunham a base do sistema gráfico guarani. Montoya se serviu das anotações de Bolanõs, levou-as adiante e as aperfeiçoou. Os estudos linguísticos de José de Anchieta sobre os guarani da América portuguesa, publicados em Coimbra em 1595, sob o título de “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, inspiraram os jesuítas, Montoya em particular, da América hispânica. “Tesoro de la lengua guarani” (1639), elaborado quando Montoya dedicava-se aos trabalhos apostólicos da redução de Nossa Senhora de Loreto, é o primeiro dicionário da língua guarani, resultado de quase trinta anos de convivência do missionários com os guarani (MELIÁ). Todo o trabalho linguístico de Montoya tinha como fim a conversão dos indígenas ao catolicismo. Além disso, o missionário-linguista foi um excepcional cronista das experiências apostólicas e reducionais dos jesuítas no Paraguai. Protagonizou célebres embates contra “índios infiéis” (era assim que os jesuítas chamavam os índios que se opunham à evangelização), encomenderos e bandeirantes e foi um incansável defensor das reduções (CHAMORRO, 2007).


O missionário jesuíta se construiu no “trato das diferenças culturais”. A missão o empurrava para o confronto com a alteridade e exigia um (re)conhecimento, para si próprio e para o seu mundo de origem, deste novo universo que se abria à evangelização. Um destes confrontos ocorreu numa visita que Ruiz de Montoya, acompanhado do padre José Cataldino, fez à antiga Redução de Loreto. O missionário saiu percorrendo a região “á convidar á los índios á que se redujesen en poblaciones grandes”. Numa dessas “aldeias” conheceu o “grande cacique Taubici”:

“Llegamos á um  pueblo cuyo gobernador era un gran cacique, gran mago y hechicero y familiar amigo do demônio, chamado Taubici, que quiere decir, diablos en hilera ó hilera de diablos. Era muy cruel y con cualquier achaque hacia matar índios a su antojo(...)” (Conquista Espiritual, p.45).

Neste fragmento significativo da narrativa de Montoya surpreendemos o narrador empenhado em traduzir o outro. Seguro de si e do entendimento que tinha da língua guarani, o jesuíta não hesitou em traduzir o nome do cacique. Mas traduzir não se resume a encontrar sinônimos linguísticos ou equivalentes semânticos. Traduzir é uma maneira de ler a diferença, de enunciá-la. Dizer o outro, configurá-lo no interior de uma narrativa destinada a ser lida no mundo de origem do narrador, envolve sempre uma operação de tradução. Esta operação se dá tanto no nível mais epidérmico, da comunicação entre pessoas, em que a busca por correspondentes linguísticos caracteriza uma primeira aproximação e entendimento, quanto no nível mais profundo da interpretação cultural, dos sistemas de crenças e valores dos povos indígenas.

Mas traduzir o outro não é transformá-lo no espelho invertido do mesmo? Mirando o jogo de espelho criado por François Hartog para ler Heródotos, interrogo as narrativas jesuíticas para visualizar o papel da tradução na construção da alteridade, na elaboração de uma representação do outro como suporte para a conquista espiritual. Este princípio heurístico, que permite compreender e dar sentido ao que num primeiro momento parece incompreensível denominamos aqui de “retórica da alteridade, ou seja, uma operação de tradução que visa transportar o outro ao mesmo - constituindo uma espécie de transportador da diferença.” Sigamos então as reflexões de Hartog sobre as Histórias de Heródotos e a maneira como ele traduz para os gregos as diferenças culturais dos não-gregos. A diferença só é percebida e enunciada a partir do momento em que se reconhece existirem dois termos, digamos A e B, e que um é diferente do outro. E, “a partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das narrativas que falam do outro”. O narrador, elo entre os dois conjuntos, pertence ao grupo A e contará ao seu grupo, as coisas do grupo B. O problema do narrador então é tornar-se persuasivo, tornar sua narrativa crível, digerível. É aqui que situamos o problema da tradução. Como dizer o outro de maneira a ser compreendido pelos destinatários? Para traduzir a diferença, diz Hartog, o narrador tem a sua disposição “a figura cômoda da inversão”. Por este mecanismo, o outro se torna o inverso e não há mais A e B como termos próprios, mas simplesmente A e o inverso de A. “O princípio da inversão transcreve a alteridade tornando-a fácil de apreender no mundo em que se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida).”

Os jesuítas, mestres da tradução e da inversão, realizarão esta ponte semântica entre o velho e o novo mundo. O complexo universo narrativo jesuítico cria cenários, enredos barrocos, constrói personagens e distingue os inimigos e os aliados. Transforma a confusão e a implausibilidade do universo indígena, e do espaço que ele habita, numa ordem coerente, descritível e inteligível. Eis o papel da tradução: tornar legível o que não é dado a ler, dizer o indizível, nomear o desconhecido para criar um efeito de familiaridade.

Taubici, na linguagem da conversão, torna-se “diabos em fila”. O nome do cacique não é apreendido pelo que significa entre os guaranis, mas pelo que representa para a evangelização. Ele é o inverso, o contrário, o inimigo declarado e devidamente nomeado. À tradução do nome segue-se a descrição da sua natureza cruel, violenta, diabólica. Traduzir, neste caso, não é apenas verter do guarani para o espanhol. Traduzir é atribuir sentidos associados à experiência, é inventar. Taubici, traduzido por Montoya, torna-se outra coisa. O chefe indígena que lemos na “Conquista Espiritual” é uma invenção do jesuíta. Afirmar isso não é negar a existência de Taubici, nem a validade da tradução de Montoya. É inegável, no entanto, que Taubici, entre os guaranis, representava algo muito diferente. A tradução realiza-se num campo de disputas físicas e simbólicas. Montoya esta descrevendo o inimigo com os conhecimentos que possui dos indígenas, mas também com o repertório de significados que a luta de vários séculos do cristianismo contra as “milícias del abismo” legou aos jesuítas (Expressão criada pelo jesuíta Pedro Lozano). A tradução, numa situação como essa, é um ato político de negação.


A invenção do cacique diabólico pela escrita conquistadora, foi motivada por projetos políticos e religiosos, e fundada num querer, no logos ocidental, que percorre o mundo e o ordena a partir de um conjunto de saberes europeu. A invenção do outro, que no fundo é o exercício de uma dominação e um desejo de tradução, é um fenômeno de fronteira que visa trazer para o lado de cá o que está do lado de lá. Demonizar Taubici é domesticar sua natureza incompreensível. É trazê-lo para o campo de referências do jesuíta e poder explicá-lo. Podemos dizer, com Michel de Certeau, que se trata, de fato, de uma “hermenêutica do outro”. Os Jesuítas transportam para a América o aparelho exegético cristão nascido, neste caso, dos embates contra as supostas forças satânicas e do espírito de reforma que contaminou os aliados de Roma na luta contra a heresia protestante. A relação entre a Europa e o resto do mundo é mediada, assim, por uma atividade tradutora, que opera uma leitura do outro, decifrando-o. Os indígenas – homens, mulheres, crianças, velhos, caciques e pajés – que povoam as cartas e crônicas são personagens idealizados que se ajustam harmonicamente ou se chocam contra os trabalhos apostólicos. Personagens que cumprem um papel retórico na estratégia jesuítica que condenava “os vícios e os maus hábitos dos nativos quando queriam explicar o fracasso de uma determinada ação, e exortavam suas virtudes e inocência quando queriam demonstrar o sucesso de sua empresa evangélica” (EISENBERG). Mas esses personagens idealizados não são signos sem referente, não são criações do nada. São projeções/invenções jesuíticas elaboradas a partir do encontro/confronto com os indígenas.

A tradução, a serviço da conquista e da conversão, pode ser caracterizada como uma operação de redução do universo alheio aos signos religiosos e de comunicação dos conquistadores. Esta operação resulta amiúde na invenção do outro, isto é, na construção de sujeitos que flutuam numa região intermediária entre o que se vê e o que se crê, entre o que se tem e o que deseja.

Felizmente a escrita, verdadeira cápsula do tempo, registrou as experiências missionárias que, preservadas do efeito implacável do tempo, chegaram intactas até nós. Estava agora pensando sobre isso. Lendo uma edição antiga da “Conquista Espiritual” (em espanhol), do Montoya, que tenho comigo, pensava no privilégio que temos de ter um registro admirável como esse ao nosso alcance. Por um lado, o impagável prazer de ler as “aventuras” apostólicas barrocas, quase cinematográficas, das crônicas de Montoya. Por outro, a possibilidade de desfazermos os equívocos, ainda que bem intencionados, da tradução cultural e restituirmos ao cacique Taubici o seu nome.

Referências Bibliográficas.

CERTEAU Michel De. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
CHAMORRO, Graciela. Antonio Ruiz de Montoya: promotor y defensor de lenguas y pueblos indígenas. História Unisinos, 2007. Vol. 11, N° 2, maio/agosto de 2007.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LOZANO, Pedro. História de la Compañia de Jesus de la Província del Paraguay. Madrid: 1754-55.
MELIÀ, Bartomeu. O guarani: uma bibliografia etnológica. Santo Ângelo/RS, Fundação Missioneira de Ensino Superior, 1987.
______. Los Guarani del Tape en la etnografia missioneira del siglo XVII. In: Segundo Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. Anais. Santa Rosa, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco, 1977.
 ______. El Guarani conquistado y reducido. Biblioteca de Antropologia. Vol. 5. Centro de Estudos Antropológicos. Asunción: Universidade Católica, 1988.
 ______. La lengua Garaní en el Paraguay colonial. Asunción: CEPAG, 2003.
RUIZ DE MONTOYA, António. Conquista espititual hecha por los religiosos de la compañía de Iesus en las provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.




sábado, 5 de dezembro de 2015

O DEMÔNIO NA AMÉRICA COLONIAL: A DEMONIZAÇÃO DAS LIDERANÇAS INDÍGENAS NOS DISCURSOS JESUÍTICOS (Província Jesuítica do Paraguai, Século XVII).

o demônio na américa Colonial: a demonização das lideranças indígenas nos discursos jesuíticos (Província Jesuítica do Paraguai, Século XVII).





Con razón es llamado el diablo mono de Jesucristo, Iesu Christi scimus, porque en realidad cuanto Jesuscristo para el divino culto y gloria y para eterna salud de sus amados hombres ha instituido o inspirado en su santo reino, tanto ha tirado a imitar o feamente remedar el diablo para establecer su reino y monarquia en la América, arrojado ya con ignominia de outras partes del mundo.




(Antonio Julián).







Quem tem alguma familiaridade com os textos europeus dos séculos XVI e XVII sobre o Novo Mundo, especialmente os textos religiosos, sabe que existe um laço indissociável entre o demônio e a conquista e colonização da América. Conquistadores e colonizadores viram nos costumes e nas práticas indígenas inconfundíveis manifestações diabólicas. Tropeçavam nos demônios em cada canto do Novo Mundo, mas não se davam conta de que eles mesmos o haviam trazido nas suas caravelas, nas suas crenças, na sua forma de lidar com a alteridade.

Os jesuítas eram a vanguarda ilustrada na arte de demonizar e de farejar demônios. O know hall trazido da Europa lhes habilitava a assumir essa posição e dar combates sem trégua àquilo que o jesuíta Antonio Julián chamou de monarquía del diablo na América. O demônio havia subjugado as populações ameríndias e por meio dos seus lideres espirituais exercia indecente tirania. A libertação dos “pobres” indígenas era a missão dos voluntariosos jesuítas.

O demônio funcionou como um verdadeiro princípio hermenêutico utilizado pelos religiosos para decifrar a natureza dos habitantes das Américas. Não há dúvidas também de que a presença do diabo em terras americanas legitimou amplamente as missões religiosas e as conquistas militares em nome da monarquia católica. Mas o demônio não pode ser reduzido nem a uma chave de leitura das culturas indígenas, nem a um mero instrumento de conveniência política e legitimação da conquista. Embora ele tenha sido utilizado para esses fins, sua presença no Novo Mundo é bem mais complexa. Fernando Cervantes advertiu convincentemente que este tipo de interpretação acaba por menosprezar “la sincera creencia de la mayoría de los contemporâneos en la autenticidad del demonismo.”

Vamos retornar, pelos caminhos das narrativas jesuíticas, ao Paraguai colonial e conhecermos um pouco mais de perto os combates dos soldados de cristo contra o inimigo da cristandade?

Os espetaculares combates apostólicos travados e narrados pelos jesuítas no Paraguai, entre os séculos XVII e XVIII, não foram apenas contra os antigos costumes indígenas e os terríveis feiticeiros (Missionários de diferentes ordens religiosas chamavam os líderes espirituais indígenas de feiticeiros. Utilizo conscientemente a mesma nomenclatura e os mesmos adjetivos empregados pelos missionários para destacar a forma como eles viam e se referiam aos indígenas). Por trás das borracheiras, da poligamia, do canibalismo, de toda sorte de vícios e das medonhas artimanhas dos feiticeiros, que escandalizavam os inacianos, insinuava-se o velho inimigo da cristandade: o demônio. Padres e feiticeiros, nas narrativas jesuíticas, são apenas instrumentos de uma guerra maior travada entre o bem e o mal, que no início da era moderna se deslocara da Europa para as geografias desconhecidas do Novo Mundo. A crença no demônio, e o conjunto de práticas e saberes que gravitavam a sua volta, era um traço fundamental da cultura religiosa europeia nos séculos XVI e XVII. O demonismo não era uma expressão exclusiva das crenças populares ou dos padres inquisidores, estava presente nas manifestações da dita “cultura popular” e na “cultura das elites” (Fernando Cervantes).

No século XVI uma nova ética cristã configurava-se na Europa, alterando a visão até então dominante sobre o demônio. O sistema moral tradicional baseado nos sete pecados capitais fora substituído pelo Decálogo. Decorrência direta desta mudança de atitude foi a concepção de idolatria, que foi alçada ao maior de todos os pecados que um cristão poderia cometer. Isso acarretou uma mudança de percepção da figura do demônio. John Bossy observou que o “Diabo, que era a imagem invertida de Cristo, o princípio personificado do ódio pelo semelhante, tornou-se a imagem do Pai, no centro da idolatria e, a partir daí, no centro da impureza e da rebelião.” O Concílio de Trento foi um marco decisivo nas sistematizações desta nova ética cristã, como no combate às idolatrias e ao demônio. 

O apelo cruzadístico contra as coortes demoníacas exigiu do pensamento erudito europeu a elaboração de um corpo doutrinário e tratadístico que ficou conhecido como demonologia. As origens da demonologia remontam a Santo Agostinho, que deu forma concreta ao demônio imaterial do velho testamento. Ao longo da idade média a demonologia foi se desenvolvendo e sistematizando um conjunto de saberes com a produção de obras importantes como o “Fornicarium”, de Nider, e o “Malues Maleficarum”, de Sprenger e Kramer. No século XVI o conhecimento sobre o diabo alcança o requinte com as obras “Démonomanie”, de Jean Bodin, e “Daemonologie”, de Jaime VI Stuart (Laura de Mello e Souza). Todo esse repertório de crenças e tratados demonológicos atravessou o oceano com os conquistadores, principalmente com as ordens religiosas, e desempenhou um papel central na conquista do Novo Mundo (Fernando Cervantes notou o descompasso desconcertante entre a importância cultural do tema do demonismo como um traço central da cultura europeia da época dos descobrimentos e o descuido dos pesquisadores de hoje em relação ao tema). A Companhia de Jesus, imersa neste contexto, desembarcou na América imbuída desta nova ética. Treinados na arte de rastrear demônios, os padres chegaram munidos de um vasto repertório de reconhecimento do inimigo, composto de ações, descrições e ilustrações, disponíveis em sua cultura. Afinal, eles vinham de um mundo permanentemente em luta contra as forças do mal. As atividades de caça às bruxas e os manuais demonológicos lhes davam um know-how indispensável à árdua missão que na América lhes aguardava. Pertencente à tradição demonológica dominante no seio da qual fora fundada, a Companhia cultivava no seu interior os temas demoníacos (Beatriz Vitar).


A “descoberta” da América, para surpresa dos europeus, revelou que o império do diabo era muito mais vasto do que se imaginava. A conquista dos povos americanos, além de “revigorar os símbolos do maravilhoso, foi capaz de fortalecer a demonologia europeia”. Relacionada à alteridade americana, a demonologia, ou o olhar demonológico, incidiria sobre as práticas culturais indígenas, e mesmo sobre a natureza americana (Laura de Melo de Sousa). O reconhecimento da idolatria como mais grave pecado de um cristão e, sobretudo, o enlace teológico entre a idolatria e o demônio, criou as condições para o desenvolvimento de uma demonologia americana que definiu as manifestações religiosas indígenas, ou as idolatrias indígenas, como de inspiração satânica. A expressão teológica melhor formulada em terras americanas sobre esse tema encontra-se na obra do padre Acosta. No final do século XVI, Acosta (2008) expressou uma curiosa tese: derrotado no Velho Mundo, o diabo “acometio las gentes mas remotas y barbaras procurando conservar entre ellas la falsa y mentida divindad.” Antonio Julián, jesuíta catalão que desenvolveu trabalhos missionários na Colômbia, sistematizou este ponto de vista numa obra intitulada “Monarquía del diablo en la gentilidad del Nuevo Mundo Americano”. Inspirado na “História Natural”, de Acosta, a quem chama de “el buen veijo Acosta”, Julián constatou que:

“Harto peor que la maliciosamente fingida monarquia del Rey Nicolás en Paraguay, fue la del diablo en toda la América. Ya soberbio desde sus princípios Lúcifer contra Dios, ambicioso de su gloria y envidioso de los divinos honores, procuro emposesarse de todo el orbe y esperciendo negras sombras en todas las naciones, ser adorado por dios. Introdujo la detestable idolatria y con innumerables superticiones solicitó para sí los cultos, inciensos y sacrifícios debidos solo a nuestro Dios verdadero. Así reino por tantos siglos en Asia, África y Europa llevando míseramente ciegas y alucinadas las gentes, de suerte que a excepción de la pequeña porción del pueblo escogido de Dios, todas la demás naciones del mundo tributaban adoraciones y culto as demônio (...).”

A tese do padre Julián era de que a conquista da América havia sido um capítulo fundamental na luta de Cristo contra o diabo. Antes da chegada dos espanhóis, o diabo havia instaurado uma terrível tirania entre os povos americanos, como estratégia para conquistar o poder em todo o mundo:

“Vio el diablo que no podría estar su reino con el de Dios, ni subsistir ya su monarquia con la que se levantaba y florecía de jesucristo en estas tres partes eel mundo. Qué hizo? Fue a entablarla y promoverla en país donde estuviera escondido y dominara a su salvo y ejercitara su tirania, sin que ni Papa, ni Obispos, ni sacerdotes de Jesucristo, ni prícipes católicos, ni cristiano alguno lo supiera ni pudiera rastrearlo. Se fue a la América a fundar su imperio, a levantar su monarquia remedando al reino de Jesuscristo (...).”


Na América, o diabo mandou erguer templos, ordenou sacerdotes, consagrou pontífices, instituiu sacramentos, exigiu sacrifícios, preescreveu “ritos y cereminias para misas, matrimônios, entierros, rogativas publicas, penitencias y por fin (...), con sacrílega imitación y ficciones diabólicas entabló su monarquia”.

A propagação e o estabelecimento do reio de Deus na América, prossegue Julián, exigiam a destruição do reino do diabo. Para isso, o “Omnipotente” valeu-se “de la piedad, armas y valor de los españoles”. Graças à conquista e as armas espanholas, que deus empregou para varrer o demônio da terra, os templos do diabo foram destruídos e os índios libertados da diabólica escravidão.


Nas vastas regiões da América, denominadas de Paraguai nas cartas jesuíticas, os padres não se depararam com a idolatria, mas os sinais inconfundíveis da presença do senhor das trevas foram encontrados em abundância. Segundo o padre Ruiz de Montoya, “en todas as partes procura el demonio remedar el culto divino con ficciones y embustes”, e ainda que a “nacion guarani há sido limpia de ídolos y adoraciones”, o demônio encontrou “embustes com qué entronizar á sus ministros, los magos y hechiceros para que Sean peste y ruína de las almas”. Reinava naquelas “selvas incultas” uma vassalagem diabólica. Era na figura dos pajés que o demônio se manifestava de maneira mais evidente entre os guarani. E se no Paraguai não foi necessário uma gigantesca empresa de extirpação das idolatrias, foi preciso energia proporcionalmente semelhante para desmontar a resistência dos pajés à evangelização. Descritas como “ministros do demônio”, estas personagens realizavam a ponte por onde a alma dos índios transmigrava para os domínios do diabo (André Thevet foi direto ao dizer que: “Esse povo assim afastado da verdade …mantém-se ainda tão fora da razão que adora o diabo, por meio de seus ministros, chamados pagés”).

Era por meio de uma crueldade extremada e de poderes sobrenaturais, advindos de sua estreita relação com o demônio, que os feiticeiros controlavam as parcialidades indígenas e estimulavam a revolta contra os missionários. Padre Antonio Sepp exemplificou muito bem a familiaridade com o demônio, ao descrever as artimanhas de um feiticeiro chamado “Moreyra, mestre de arte mágica e cruel discípulo do gênio negro”. O feiticeiro era “laureado doutor na Escola de Lúcifer de infames mentiras, e frustrava toda a obra do nosso padre Antônio Bohm”. Neste combate entre os soldados de Cristo e os feiticeiros locais, foi elaborado um conjunto de representações que visava deslegitimar o poder por eles exercido. Erigidos à qualidade de arquinimigos da cristandade, foram habilmente associados à figura do demônio, que teria tornado os feiticeiros seus vassalos com o propósito de desestabilizar os trabalhos apostólicos. Para Acosta o diabo tinha os seus sacerdotes no Novo Mundo, “mil gêneros de profetas falsos”, através dos quais pretendia “usurpar para si la gloria de Dios y fingir con sus tinieblas la luz”. Assim, a contaminaión satânica y la inmundicia eran monedas corriente en la religión indigena.” O incorrigível “desejo mimético” de satanás era o responsável pelas imitações dos ritos cristãos na América, conduzidas pelos seus discípulos (Cervantes).

Assim que chegaram ao Paraguai, os padres encontraram “aquella gente muy abandonada, y como embrutecida, tan entregados al servicio del demonio, que ya no había nada de bueno en ellos”. Quase diariamente, garante padre Zurbano, “se les presenta el demonio personalmente en figura humana y, viviendo ellos tan embrutecidos fácilmente obedecen a sus terribles insinuaciones y se dejan engañar miserablemente” (Maeder, 1984).


Roque González, que adentrou territorios indígenas nunca antes visitados, travou duras batalhas com o demônio e os seus “ministros”. Desde as primeiras entradas nas terras dos guaikuru teve provas da familiaridade dos indígenas com o maligno. Nas diversas incursões que fez pelo Paraná e Uruguai, onde o império de satanás parecia ser ainda mais forte, padre Roque literalmente tropeçava no demônio. Na carta que envio ao provincial Pedro Oñate, informou que em todos os “pueblos” em que chegava declarava que seu intento era “darles a conocer a su dios, y criador” para que o adorassem e revenciassem. O demônio, porém, “temeroso de salir de su antigua posesion procurava todos los estorvos possibles moviendo los animos de los yndios contra mi (...)”. O inimigo erguia obstáculos e usava os índios para impedir sua entrada nos seus domínios. Por vezes, era na insolência de um cacique que lhe impedia o passo:

“En todos estos pueblos, les iba declarando mi intento, que era darles a conocer a su Dios y Criador, para que le adorasen y reverenciasen: pero el demonio temeroso de salir de su antigua posesión, procuraba todos los estorbos posibles, moviendo los ánimos de los indios contra mí, y en particular me dijo un cacique con mucha arrogancia: Cómo, Padre, te has atrevido a entrar por aquí, adonde no ha puesto sus pies español ? (Blanco, 1929).”

Mas a presença dos padres intimidava os demônios. Se antes eles “apparezian a los yndios”, agora já não se atreviam mais. Roque disse ter ouvido de um índio que “despues q los padres vivieron aqui no se nos ha aparezido mas el demonio (...)” (Documentos para la historia argentina, 1929).

A luta diária e incansável do padre Roque contra o demônio, seus ardis e mil disfarces era, na verdade, um prolongamento de uma batalha mais antiga, travada no velho mundo, e que chegara ao paroxismo no século XVI. Roque González era, porque não, um reforço valioso da Companhia contra as armadilhas e os disfarces locais, indígenas, do demônio no Paraguai. Se os jesuítas adaptavam-se as particularidades de cada cultura para melhor comunicar sua mensagem, o demônio era mestre nesta arte. Padre Montoya conheceu bem os seus disfarces. As reduções eram frequentemente assombradas por demônios travestidos de missionários, de Nossa Senhora, e de muitas outras formas, que vinham para confundir e enganar os índios, atrapalhar a missa ou tentar a pureza dos padres, oferecendo-lhes algumas mulheres, por meio dos caciques. Em Nossa Senhora de Loreto, por exemplo, padre Montoya foi surpreendido por três demônios vestidos em sotainas pretas, transfigurados no padre João Vaseo, morto há cinco anos, que tentavam entrar na igreja. Outro caso curioso foi o de um índio que nunca ia à missa, nem nos dias de trabalho, nem nos dias de festa. Num domingo, estando todos ouvindo sermão e missa, “solo este indio se quedó en su granja”. Começaram então os demônios “á dar balidos como de vaca, bramar como toros, mugir como bueyes e imitar las cabras”. Espantado o pobre índio se recolheu em sua casa, sem atrever-se a sair. À tarde, quando algumas pessoas vieram a sua casa, o índio contou o ocorrido. Andando pelas plantações encontraram várias pegadas de animais e uma pegada que parecia ser a de uma criança recém nascida. Viram também que toda a plantação estava amarelada, como se tivesse sido chamuscada pelo fogo. No domingo seguinte aconteceu a mesma coisa. Montoya aconselhou que fincassem cruzes no lugar e aspergissem tudo com água benta. Mas não adiantou. No domingo os ruídos voltaram. Montoya resolveu ir pessoalmente ao lugar, e próximo de um arroio viu um grande “tropel de gente” atravessando as águas, fugido do demônio que investia contra aquela casa. Foi aí que Montoya foi informado da falta do índio. Revestiu-se então de sobrepeliz, armou-se de água benta e, em nome de Jesus e de Santo Inácio, ordenou que o demônio fosse embora para sempre daquele lugar. “Puse, conta-nos o intrépido missionário, en un vaso cerrado un pedazo de la sotana de San Ignácio, y nunca más volvió em demonio. Yu me llevé aquel indio al pueblo, hizo una buena confesion, y en delante fué muy ejemplar Cristiano”. As aparições demoníacas na “Conquista Espiritual” servem sempre para algum tipo de lição ou de edificação.

Montoya pintou um quadro assombroso das reduções, açoitadas por multidões de demônios multiformes. A única salvação dos índios eram os destemidos missionários, a quem os demônios temiam. “A Conquista Espiritual” narra uma luta diária e incessante contra o diabo e seus “ministros”.

Ao considerar os poderes mágicos dos pajés e as tradições que eles carregavam como embustes e fábulas, os padres esvaziavam a espiritualidade guarani de qualquer substância e a reduziam a um simulacro do cristianismo.  A falsidade da religião decorria de sua fonte de inspiração, o demônio, mestre da mentira e dos embustes. Não que a natureza dos habitantes do Novo Mundo fosse diabólica. Na verdade, os indígenas, distantes geográfica e espiritualmente do mundo cristão, tornavam-se vítimas inocentes, presas fáceis dos demônios migratórios, fato que asseguraria a reversibilidade de suas práticas e justificaria os trabalhos apostólicos. A culpa, como bem observou Estenssoro, foi deslocada do livre-arbítrio dos índios para o demônio, o “único inventor possível” dos ritos e da oposição dos pajés à evangelização. Não existia, portanto, uma resistência dos índios ao cristianismo, mas uma “luta direta entre Deus e o diabo” (Estenssoro).

Estou com isso sugerindo que, sem o demônio, a conquista da América não passaria de uma bem sucedida campanha militar contra povos selvagens e antropófagos. Sem o demônio a colonização não teria o mesmo apelo cruzadístico, e os padres teriam um papel bem menos importante no controle espiritual do Novo Mundo. Por um lado, a presença do diabo e seus poderes malignos faziam parte do esforço hermenêutico jesuítico para entender e ao mesmo tempo negar o universo das crenças e práticas indígenas, por outro, justificava e reforçava perante os seus pares e as autoridades europeias - para quem as narrativas jesuíticas eram endereçadas - a necessidade da presença dos padres na América.




Referências Bibliográficas.


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JULIÁN, Antonio. Monarquia del Diablo en la gentilidad del Nuevo Mundo Americano. Santafe de Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1994.
MAEDER, Ernesto. Cartas Anuas de la Provincia Jesuítica del Paraguay (1641- 1643). Resistência, Chaco: Instituto de Investigaciones Geohistoricas/ Conicet, 1996.
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MONTOYA, Antonio Ruiz de. Conquista Espiritual hecha por los religiosos de la Campañia de Jesus en las Províncias de Paraguay, Paraná, Uruguay y Tape. Rosário: Equipo Difusor de Historia Iberoamericana. Estúdio preliminar y notas Dr. Ernesto Maeder, 1989.
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VITAR, Beatriz. La evangelización del Chaco y el combate jesuítico contra el demônio. Disponível em www.educ.ar/educar/kbee:/educar/content/portal.../0612.pdf.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO: O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.

ENTRE A LEMBRANÇA E O ESQUECIMENTO: O DESCONCERTANTE RITUAL DE UMA VELHA MORADORA DE RUA DE PORTO ALEGRE.




“Mi memoria es como vaciadero de basuras”.
(Funes el memorioso – Jorge Luis Borges).

“O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade”. (Clarice Lispector).



Em 2004 eu viajava toda semana para o Rio Grande do Sul. Saía de Florianópolis a meia noite e desembarcava na rodoviária de Porto Alegre às seis da manhã. Matava um tempo por ali, tomava um café, lia um jornal, e dali me dirigia para a UFRGS. A aula começava às oito horas. Eram tempos de vacas magras: carga horária reduzida por conta do afastamento parcial, sem bolsa de pesquisa e as despesas semanais com as viagens. Uma vez ou outra, quando conseguia sair um dia antes de Florianópolis, ficava na casa de uma amiga querida (que nos deixou muito cedo) que morava na Borges de Medeiros. Acordava cedo, tomava um chimarrão com a Claire, e pegava o ônibus para a UFRGS na esquina da Borges. A Clér, como eu a chamava, acordava cedo só para tomarmos mate e conversarmos. Era uma amiga de muitos anos, de Santa Maria. Nos conhecemos em 1989. Ela estava sentada na escadaria do prédio onde morava, na Presidente Vargas, lendo Guimarães Rosa e tomando chimarrão. Eu passei, cumprimentei, vi a capa do livro, sentei, ela ofereceu uma cuia, ficamos conversando e nos tornamos grandes amigos.

Numa dessas manhãs de julho de Porto Alegre, geladas e que o sol demora a aparecer, no encontro da Borges com outra rua que não recordo o nome, me deparei com uma cena inesperada. Enquanto esperava pelo ônibus, fui até a esquina, para me movimentar e espantar o frio, e vi que uma senhora de uns 60 anos, que morava na rua, acabara de acordar. O lar improvisado era aquela esquina, em frente a uma padaria. Ela se abrigava do frio num canto de parede, que fazia um L. A situação por si só chamou minha atenção: uma senhora de cabelos brancos, envelhecida pela dureza da vida na rua, morando numa esquina. Mas o que realmente me fez ficar ali, imóvel e em silêncio, assistindo a cena, foi a maneira como ela vivia aquela situação. Quando me aproximei, ela estava acordando. Espreguiçou-se, tirou uma tira de pano de dentro de um plástico e amarrou os cabelos. Depois, pegou de dentro de um saco maior uma pequena bacia, encheu de água (que carregava numa garrafa pet de coca-cola), e lavou o rosto e a nuca. De dentro de outro saquinho de plástico tirou uma escova e escovou os dentes. Enxaguou a boca e cuspiu na bacia. Depois de guardar a escova e secar o rosto com uma toalha velha, tudo com muito jeito, jogou a água da bacia numa boca de lobo ao pé da calçada.

Meu ônibus passou. Fiquei ali, observando à distância. Feita a higiene pessoal, a senhora começou a arrumar a “cama”. Eram dois jogos de papelão, um lençol gasto e um cobertor velho. Primeiro ela recolheu o lençol e o cobertor, sacudiu para tirar o pó, dobrou e os guardou bem arrumados dentro de sacos plásticos. Lá se foi outro ônibus. Depois, bateu os papelões, dobrou e os colocou debaixo dos sacos. Fazia isso com um cuidado de admirar. Eu nunca tive com as minhas coisas o cuidado e o capricho que ela tinha com as dela. Limpava, dobrava e guardava as partes da “cama” como se estivesse na sua casa. Tudo arrumado, e devidamente ensacado, ela pegou uma vassoura velha pequena e varreu o “quarto”, arrastando o lixo para o canto da calçada. Guardou a vassoura junto com os pertences e alcançou uma latinha de leite ninho. Dentro, pelo que pude ver, guardava pontas de cigarro e fósforos. Apanhou um cigarro, bateu contra o fundo da lata, acendeu e deu uma bela tragada, sentada no degrau da escada ao lado da padaria. Fez aquilo, com calma ritualizada, como se estivesse na varanda de sua casa relaxando depois de uma bela faxina. Terminou o prazeroso cigarro, levantou, colocou os sacos nas costas, pegou uma bengala (um cabo de vassoura) e saiu não sei pra onde.

A habilidade no manejo dos pertences e os movimentos quase coreografados sugerem que ela estava habituada àquela rotina. A imagem que me veio à cabeça foi a do vagabundo Carlitos: a fidalguia esculhambada, os gestos corteses, a educação refinada, a ponta de cigarro retirada de dentro de uma lata de sardinha (cigarreira improvisada) e as tragadas elegantes sentado à beira da calçada, como se estivesse num salão nobre degustando um belo charuto. Existe dignidade na pobreza, nos dizia o adorável vagabundo. A elegância não tem pedigree nem endereços caros. Acho que foi isso que me encantou naquela senhora.

Fui até a padaria, pedi um café e perguntei sobre a senhora para a moça que atendia no balcão. “Ela faz isso todos os dias”, disse com certa indiferença. “Mora aqui há algum tempo. A noitinha ela volta para dormir”. Cheguei bem depois de a aula ter começado. Fiquei imaginando o retorno dela à esquina da padaria. Faria tudo do mesmo modo, ritualisticamente? Provavelmente.

Duas semanas depois me hospedei de novo no apartamento da Clér. No dia seguinte, bem cedo, desci e fui até a esquina. Lá estava a velha senhora fazendo tudo do mesmo jeito. Acho que vi a cena se repetir umas três vezes. Depois disso nunca mais tive notícias da caprichosa moradora de rua. Perguntei para conhecidos que moravam naquela parte da cidade. Nada. Não sei o que aconteceu com ela. A Clér mudou-se para a cidade baixa e as aulas na UFRGS terminaram. Fiquei um bom tempo sem voltar a Porto Alegre. Nunca mais passei por aquela esquina da Borges. Mas tudo está tão vivo e perfeitamente preservado na memória que parece que foi ontem que avistei a velha senhora. A aula? Embora sempre muito proveitosas, não tenho a menor recordação do que foi tratado naquele dia. A memória é assim, seletivamente caprichosa. Retém, até nos pormenores, o que nos foi, e continua sendo, significativo. Lembro-me do rosto inclinado da Clér, com os cabelos para trás das orelhas, lendo Guimarães. Lembro-me da forma como a senhora batia o pó do papelão na sarjeta, conferia se estava limpo, voltava a bater e checava de novo, com cara de insatisfeita. A expressão do rosto é inesquecível. Ela não tinha cara de tristeza, de dor, nem aqueles trejeitos que caracterizam alguns moradores de rua. Era calma, serena, discreta, e elegantemente resignada.

A sequência de cenas, ritualizadas e ricas em detalhes, me fez lembrar o Nietzsche (da Segunda Consideração Intempestiva). Nós seres humanos nos diferenciamos dos animais por que possuímos a capacidade de lembrar e de esquecer. A lembrança e o esquecimento nos humanizaram. Para aquela senhora, a lembrança era uma necessidade para manter a humanidade, certa dignidade. Lembrar-se, ainda que mecanicamente, de detalhes de uma vida passada, com certo conforto, dos cuidados com uma casa e com a higiene pessoal, de uma humanidade que teimava em sobreviver dentro dela, era uma forma de não sucumbir à dureza e brutalizar-se de vez. Mas talvez para ela, o esquecimento fosse ainda mais importante. As lembranças de tudo o que perdeu, de tudo que ficou para trás, das pessoas queridas, sem uma boa dose de esquecimento, poderiam ser insuportáveis, opressivas e impedir que ela seguisse em frente. Lembrar é importante, como bem disse Nietzsche, mas esquecer é fundamental. Nós vivemos porque esquecemos, não por que lembramos. O esquecimento, para Nietzsche, é como uma força ativa e libertadora que permite que nos desvencilhemos das decepções e do peso negativo do passado, que nos permite viver no presente sem as amarras que nos prendem às experiências traumáticas do passado. Imagine se, tal como “Funes, o memorioso”, do Borges, não pudéssemos esquecer as dores, as perdas e as decepções. A vida seria impossível. Seria um estado de permanente insônia! No conto de Borges, Ireneo Funes, um jovem uruguaio de 19 anos desenvolveu, depois de sofrer um acidente de cavalo, prodigiosa e assombrosa capacidade de lembrar-se de tudo, detalhadamente, por mais distante no tempo que as experiências estivessem. Funes era incapaz de esquecer. A incontrolável capacidade mnemônica era um fluxo incessante de informações que não o abandonava. Funes “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de mil e oitocentos e oitenta e dois e podia compará-los na lembrança com as listras de um livro espanhol encadernado que vira somente uma vez e com as linhas da espuma no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho”. Prisioneiro da poderosa, minuciosa e infalível memória, Funes era incapaz de pensar, pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. E no prodigioso mundo de Funes “não havia senão pormenores, quase imediatos.” Incapaz de esquecer, Funes era infeliz, atormentado e paralisado pela hipertrofiada capacidade de memorização (e paralisado da cintura para baixo, depois da queda do cavalo). Embora não tenha a intenção de adentrar nesta discussão, as aproximações entre Borges e Nietzsche parecem-me evidentes. Para Nietzsche, a felicidade estava associada ao esquecimento: “Nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder esquecer ou, dito eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-historicamente. Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros felizes” (Segunda Consideração Intempestiva).

A memória e, sobretudo, a boa capacidade de memorização, é sem dúvida uma dádiva. Mas é o esquecimento que nos permite dormir, viver, sorrir, experimentar momentos de felicidade e seguir em frente. Imagine a nossa moradora de rua acometida pelo mal de Funes?

Alguém poderia, legitimamente, cobrar-me uma visão mais social e menos filosófica da condição daquela senhora. Leitores com uma sensibilidade mais à esquerda (não exclusivamente) poderiam ver ali um fenômeno típico da exclusão capitalista, um efeito tardio das políticas neoliberais, etc. Não foi o meu caso. Meu olhar não foi social, vitimizador ou de pena. Não foi um olhar redentor, nem cristão, nem marxista, mesmo porque eu não tinha paraísos a oferecer, ou uma saída segura a prometer. Acho que era ela quem me apontava uma saída. Ela tinha algo mais importante a me dizer do que eu a ela.