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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O HISTORIADOR, O SANTO, O FEITICEIRO E O TEMPO: NOTAS SOBRE UM DIÁLOGO “IMPRÓPRIO”.


O historiador, o santo, o feiticeiro e o tempo: notas sobre um diálogo “impróprio”.




O Outro

Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se nem sei decifrar
minha escrita interior?

Interrogo signos dúbios
e suas variações caleidoscópicas
a cada segundo de observação

A verdade essencial
é o desconhecido que me habita
e a cada amanhecer me dá um soco.

Por ele sou também observado
com ironia, desprezo, incompreensão

E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,
unidos, impossibilitados de desligamento,
acomodados, adversos,
roídos de infernal curiosidade.

Carlos Drummond de Andrade – Corpo, novos poemas.



O post propõe uma reflexão sobre as relações entre passado, presente e futuro, e os caminhos que levam o historiador ao passado. Utilizo os personagens Ñezú e Roque González – o pajé guarani e o missionário jesuíta –, que viveram na América do Sul no século XVII, para pensar o diálogo que o historiador estabelece entre os tempos. Os versos de Drummond podem ser lidos como moderadores de minhas pretensões em relação ao conhecimento histórico quando me dirijo ao passado, este outro desconhecido e intempestivo que habita uma dimensão mnemônica do presente.


15 de novembro de 1628. Padre Roque González de Santa Cruz havia fundado, no atual Rio Grande do Sul, a redução de Todos los Santos del Caaró há 15 dias. Como de costume, nesta tomada simbólica do território que é a fundação de uma redução, ergueu uma cruz e batizou três crianças. A redução de Caaró nasceu da soma dos esforços e vontades dos caciques do Ijuí e do padre Roque, que desde fevereiro de 1627 estava na função de superior do Uruguai (que compreendia a região situada à margem esquerda do rio Uruguai). Neste dia, padre Roque escreveu um bilhete ao padre Romero, que estava à frente da redução de Candelária, a uns 17 km de Caaró, informando sobre o bom andamento dos trabalhos e lamentando não possuir mais cunhas de ferro, com as quais poderia atrair e reduzir mais 500 índios. Depois de enviar o bilhete foi rezar missa. Após a celebração, pôs-se a erguer um mastro no qual seria pendurado o sino. Enquanto preparava o campanário improvisado, auxiliado por um índio paraná que fazia os furos na madeira, um grupo de índios liderados pelo cacique Caarupé aproximou-se sorrateiramente. Sob ordens do cacique, um índio conhecido como Maranguá, aproveitando a posição encurvada do padre que atava uma corda ao badalo do sino, desferiu-lhe dois pesados golpes de itaiça (machadinha de pedra) contra a cabeça. Roque González caiu morto. Alonso Rodriguez, que dizia missa perto dali, ouviu o ruído e saiu em direção ao tumulto. No caminho foi abordado pelo grupo de Caarupé e teve o mesmo fim. Os corpos dos padres foram despidos, arrastados por um bom trecho, jogados dentro da igreja e queimados. Caarupé e o seu grupo, se confiarmos nos depoimentos dos indígenas (ouvidos nos processos instaurados após as mortes) e nas descrições dos companheiros do padre Roque, não agiram por iniciativa própria. Por trás do ato radical estava o cacique/pajé Ñezú, o principal daquelas terras (Ñezú era um Cacique e pajé guarani de grande fama e poder oratório que vivia nas proximidades do rio Ijuí, na margem oriental do rio Uruguai. Esta região hospeda hoje os municípios de Caiboaté, o santuário de Caaró e o município de Roque González). O cacique, chamado de feiticeiro pelos jesuítas, aguardava o desfecho dos acontecimentos no Pirapó. Assim que soube do sucesso da missão, festejou dando grandes patadas y gritos, e se dirigiu com seu grupo para a redução de Assunção do Ijuí, na qual se encontrava o padre Juan del Castillo, para dar-lhe o mesmo fim. Segundo padre Romero, que escapou por pouco dos emissários de Ñezú, os planos do feiticeiro eram bem mais ambiciosos: extirpar el santo Evangelio de todas estas provincias haciendo matar si pudiese todos sus predicadores. Com pequenas variações, é isso o que nos informam as narrativas jesuíticas sobre a morte de Roque González. Em grande medida, os relatos dos jesuítas, que não presenciaram os acontecimentos, foram inspirados nos testemunhos indígenas. A diferença é que enquanto os indígenas disseram o que viram e ouviram, sem emitir juízos de valores, os jesuítas encerraram a morte dos padres no interior de uma trama diabólica deflagrada por Ñezú para extirpar os missionários daquelas terras. Na versão jesuítica, Ñezú era um emissário do diabo que agia por ódio à fé (argumento que foi utilizado para caracterizar as mortes como martírio e justificar a abertura dos processos de canonização dos padres).

Embora conheçamos em detalhes este episódio dramático da evangelização no Paraguai (Província Jesuítica do Paraguai), a distância temporal e cultural que nos separa desses sujeitos e desses acontecimentos é enorme e, em certos aspectos, intransponível. Superar esta diferença irredutível é como tentar decifrar pictogramas “de há dez mil anos”. O que nos resta, para ensaiarmos uma aproximação, são alguns testemunhos indígenas, traduzidos para o espanhol e filtrados pela escrita colonial, algumas cartas, escritas pelos companheiros de Roque González sobre as mortes, e uma volumosa literatura jesuítica escrita desde o século XVII. Juntando com as cartas anuas do Paraguai, a memória jesuítica preservou um vasto material institucional sobre aqueles tempos, espalhado por inúmeros arquivos europeus e latino-americanos e publicado ao longo dos séculos XIX e XX em diversas obras arquivísticas. A documentação no seu conjunto é, sem dúvida, abundante, mas não nos abre mais do que uma pequena fresta para o passado.

Os registros escritos de outras épocas, convertidos em fontes para a história, são os guias de uma viagem metafórica do historiador no tempo. Por meio deles deslocamo-nos a vários momentos do passado sem nunca abandonarmos o nosso tempo. Ao se deslocar no tempo, “o historiador sempre se movimenta em dois planos” (Exploro infielmente aqui uma ideia de Koselleck sobre a transformação dos vestígios do passado em fontes para a história e como por meio deles nos dirigimos ao passado). O primeiro movimento é uma aproximação do passado por meio da linguagem das fontes que nos abre o acesso heurístico àquela realidade. O segundo é uma aproximação conceitual por meio das categorias científicas do presente que o historiador transporta para o passado.

É na trilha intratemporal dos registros escritos dos jesuítas, os vestígios do passado transformados em fontes, que recuo no tempo perseguindo as pistas daqueles sujeitos, em busca dos significados daqueles acontecimentos. Esta viagem segue um roteiro que inclui um ponto de partida no presente – a fresta por onde observo o passado -, um retorno ao passado, cujo ponto de referência é o dia 15 de novembro de 1628, e uma volta ao presente seguindo as trajetórias póstumas de Roque González e Ñezú. Isto implica, ainda que modestamente, pensar o tempo. Mais precisamente, pensar as formas como passado, presente e futuro se articulam na minha narrativa histórica. As mudanças que, a partir do marco simbólico de 1989, abalaram as noções de tempo, que até então orientavam o trabalho de boa parte dos historiadores, impuseram uma redefinição do conceito de tempo e das relações entre presente, passado e futuro (Um dos historiadores mais atentos a estas mudanças é François Hartog, que tem nos oferecido importantes reflexões sobre o tempo. Forjou uma expressão, “regime de historicidade”, para expressar a maneira como uma sociedade “trata o seu passado” ou a “modalidade de consciência de si de uma comunidade humana”.  Hartog toma o ano de 1989 como ponto de partida de uma significativa ruptura com as concepções de tempo vigentes até então. Desde então o Ocidente vive um novo “regime de historicidade” centrado no presente.). Até então as visões sobre o futuro e sobre a marcha da humanidade para a realização de uma finalidade histórica determinavam as leituras sobre o passado. A escrita da história, sob o magnetismo do futuro, reunia passado, presente e futuro num fluxo temporal contínuo que corria numa única direção. O passado era lido e organizado à luz de um futuro, por assim dizer, já conhecido. Buscavam-se no passado as evidências e as garantias da realização das promessas do amanhã. O presente era uma espécie de tempo-ponte, tempo de passagem entre dois registros temporais, entre o que foi e o que estava por vir.

As mudanças que abalaram o mundo turvaram e desacreditaram o futuro, provocando uma ruptura entre passado e futuro. A história, sob o efeito destas mudanças, deixou de ser escrita sob as expectativas e exigências do que estaria por vir.  Desde então uma pergunta tornou-se frequente entre os historiadores: o que é o passado ou qual o significado do passado se o farol do futuro apagou? O estatuto do passado como etapa necessária de uma teleologia ruiu quando o muro de Berlim, imagem símbolo de uma época, veio abaixo. Passou a ser visto não mais como o lugar onde se encontrariam as evidências que confirmariam as previsões escatológicas. Tornou-se então um lugar opaco, difuso, tão incerto quanto o novo futuro, mas por outro lado, aberto a novas interrogações. Sem a previsibilidade imputada pelas certezas do futuro, o passado deixou de ser o lugar do óbvio e despontou como novidade, como um tempo a ser descoberto e percorrido sem que se saiba, de antemão, o que vai ser encontrado.

A ruptura da linha de comunicação entre o passado e o futuro teve um efeito correlato e não menos importante sobre as nossas formas de percepção do presente. Dos escombros do futuro, e desvencilhado do fardo do passado, ergueu-se um presente pleno. Se antes o presente, relegado a um mero tempo de passagem, comprimia-se entre um passado exemplar e um futuro radiante, nas duas últimas décadas ele expandiu-se e tornou-se próprio. Deixou de ser o depositário do passado e adquiriu sua própria identidade. Esta “ênfase crescente no presente enquanto tal” teve como efeito mais evidente uma valorização e um alargamento do presente. A afirmação, hoje, de uma história do tempo presente é um sintoma inequívoco desta valorização. É o reconhecimento de que o presente não é nem o passado recente nem o futuro próximo. É um tempo distinto, singular, com seus próprios movimentos, ritmos e demandas, que exige uma reflexão própria e noções metodológicas específicas.

A escrita da história, como não poderia deixar de ser, também sofreu os influxos dessa ênfase depositada no presente, que foi assumido também como condição da produção do conhecimento histórico. O tempo presente é o tempo do historiador que reconhece suas estratégias e os elementos subjetivistas de suas narrativas. Proposição típica dessa reorientação temporal é a ideia de que o passado é uma invenção do presente. O eixo do tempo que orienta o olhar sobre o passado sofreu decisivo deslocamento. Teríamos saído de uma determinação do futuro para uma determinação do presente sobre a escrita da história? (Entre outros importantes estudos, cito o livro de Durval Muniz de Albuquerque Junior intitulado “História: a arte de inventar o passado”. No capítulo que dá título ao livro, Durval argumenta que o conhecimento histórico é “invenção de uma cultura particular, num determinado momento, que, embora se mantenha colado aos monumentos deixados pelo passado, à sua textualidade e à sua visibilidade, tem que lançar da imaginação para imprimir um novo significado a estes fragmentos. Não discordo de Durval, pelo contrário, reforço o seu ponto de vista. Apenas, como mostro mais adiante, procuro pesar a participação do passado, por meio dos monumentos que deixou, na arte de sua invenção. Se o presente inventa o passado “imprimindo novos significados” aos fragmentos deixados, não seria um exercício oportuno, apenas para balancear as forças, imaginar o contrário? Deixo esse exercício para uma outra oportunidade).

Essas transformações na percepção do tempo e dos sentidos do passado, do presente e do futuro exigem que explicitemos os nossos procedimentos e os caminhos de retorno ao passado. À volta ao passado, neste caso a América do sul do século XVII, não é um acontecimento místico, nem se realiza por passe de mágica. É uma operação técnica guiada por escolhas teóricas e metodológicas do presente. A expressão “volta ao passado” é, na verdade, um exercício de imaginação poética para compensar o drama epistemológico do historiador: a distância insuperável que nos separa do nosso objeto de investigação. O passado passou, não tem volta. Escrever sobre o passado, sobre pessoas que viveram no passado, é um gesto unidimensional em direção ao que já não existe mais. Mas não é um movimento em direção ao vazio, ao nada. O passado não está morto. Ele está e não está lá. Mesmo não existindo mais, pode ser sentido, lembrado, visto e, em alguns casos, tocado. Os vestígios do passado, de um mundo que não existe mais, invadem o presente e se projetam num tempo que lhes é estranho. Este passado residual tem uma existência paradoxal no presente. As ruínas de São Miguel das Missões, observadas à maneira de Heidegger, são um gigante solitário e melancólico preso a um lugar que não é mais o seu. Silenciosas e majestosas, elas carregam as marcas de um tempo que já não é. As ruínas, fragmentos do passado que alcançaram o presente, são relíquias intratemporais que escaparam à fúria devoradora de Crono. Situam-se numa região intersticial do tempo. São elos entre o que foi e o que é. Por isso são mediadoras da historicidade, nossas pontes de acesso a um mundo que não é mais (HEIDEGGER. O ser e o tempo).

Escrever sobre o que já não existe mais é recriar o que um dia foi. É trazer de volta o que estava perdido para sempre. Mas o que o historiador traz de volta não é aquilo que um dia foi. Porque aquilo que um dia foi não pode mais ser. A “ressurreição” do passado não é um acontecimento místico. É um truque literário e um gesto científico. Não o truque do mágico ou do ilusionista, mas o do escritor, que traduz e organiza as experiências do passado em uma narrativa escrita e é capaz de condensar vários séculos em um punhado de páginas. Escrever sobre o passado é, pois, um exercício poético e uma arbitrariedade científica.

A história, de acordo com a voz corrente, promove um diálogo entre os tempos. Antes de endossar este ponto de vista, é necessário precisar os termos deste diálogo. A ideia do diálogo é, por assim dizer, “imprópria”. O dito diálogo com o passado é uma conversa sem interlocutor, na qual nós fazemos as perguntas, definimos os temas e oferecemos as respostas. É aquela situação meditativa e interrogativa em que nos encontramos quando estamos diante das ruínas de São Miguel, a conversar com as pedras. Somos nós que estabelecemos as relações, fazemos as escolhas, os recortes e as conjecturas sobre vestígios pétreos e silenciosos. É uma prática unilateral, uma escolha arbitrária, uma decisão de um lado só. E isso porque o passado não existe mais. E não há diálogo entre termos que não coexistem. Santo Agostinho, na obra Confissões, meditou sobre o tempo, no famoso capítulo XI de suas Confissões, e constatou memoravelmente a dificuldade de explicá-lo. Numa bela passagem, argumentou que “só de maneira imprópria se fala de passado, presente e futuro”:

“Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos – passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos existem. Diga-se mesmo que há três tempos: passado, presente e futuro, conforme a expressão abusiva em uso. Admito que se diga assim.  Não me importo, não me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda: o futuro não existe agora, nem o passado. Raramente se fala com exatidão. O mais das vezes falamos impropriamente, mas entende-se o que queremos dizer.”

A ideia de Agostinho de que passado e futuro não existem como realidades, senão como memória e expectativa da realidade presente, revelam, sob certo aspecto, uma notável semelhança com a relação que estabelecemos hoje entre os tempos. O passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Os dois existem como extensões e expressões do tempo presente. A ideia do diálogo, nestes termos, é “imprópria”, “mas entende-se o que queremos dizer.” 

Ñezú e Roque González, o feiticeiro e o santo, são as personagens centrais desse diálogo “impróprio” que tento estabelecer com o passado. Roque González, o missionário jesuíta “martirizado” em 1628 em Caaró durante conversão dos guarani, foi declarado santo em 1988 por João Paulo II. Santo Roque conquistou a imortalidade e goza eterna lembrança. Ñezú, o feiticeiro guarani que tramou a morte do padre, foi amaldiçoado. O maldito Ñezú, segundo adjetivo de um dos hagiógrafos do santo Roque, foi condenado ao esquecimento.

Roque e Ñezú me chegam pelas cartas jesuíticas. As cartas, como expressão de um poder e de uma vontade, imprimiram as linhas do que deveria ser lembrado no futuro. Estamos de volta ao tema da lembrança e do esquecimento. Do passado, determinadas expressões de poder definem o que deve ser lembrado no futuro. Do presente, os historiadores, situados num certo ambiente de poder e saber, decide sobre o que vai ser lembrado do passado. É desta tensão cambiante entre expressões de poder e saber de épocas distintas que se configura a escrita da história. A relação com o passado, assim me parece, tem duas pontas. Numa das pontas, está o historiador. Dessa perspectiva, a do presente, a escrita da história é sempre o exercício de um poder.  O poder de dizer o passado diante do outro que é só silêncio.  E dizer o passado é retirá-lo do esquecimento, é reintegrá-lo à ordem da memória. O que é lembrado e o que é esquecido, nesta recriação política do passado, é uma escolha do historiador. Recriamos experiências de vida de pessoas do passado e as desnudamos aos olhos de escrutínio do presente. Estabelecemos conjecturas sobre suas vidas, ações e relações que elas nem sonharam. Muitas das ideias que levanto soariam, certamente, muito estranhas às minhas personagens. Elas estavam envolvidas numa teia de acontecimentos que lhes escapava. Séculos depois, esta teia se torna visível ao historiador em toda sua espessura, alcance e conexões. Mas não é exatamente isso o que se espera de um “diálogo” entre mundos diferentes? É esta troca entre as experiências do passado e sua reconstrução histórica no presente que nos permite confrontarmos nossas próprias experiências. Se falássemos a mesma língua e vivêssemos os mesmos valores, qual a razão de estudá-los?  Se trocarmos signos de vida é pelo desejo de conhecimento do outro, e de nós mesmos. Aprender com o passado é auscultá-lo em toda a sua estranheza, e não o acomodar às nossas certezas. Confrontá-lo com o presente é ressaltar sua singularidade, e a nossa. É apreender a mudança, e aprender a conviver com ela.

Presente e passado, então, encontram-se pela mão do historiador. Do lado de cá, fazemos nossas escolhas, mas o acesso que temos ao passado só nos é possível por meio daquilo que o lado de lá nos permitiu ler. O poder de transmitir ao futuro aquilo que será lembrado é o poder que o passado tem de impor uma imagem de si ao presente. Esta angulação nos permite relativizar a ideia de que o passado é simplesmente uma invenção do presente. Em certo sentido o é, mas esta invenção é limitada por aquilo que determinadas relações de força e poder de outras épocas autorizaram chegasse até o presente. O presente inventa o passado até onde o passado o autoriza.


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS, NATUREZA HUMANA E A SORTE LANÇADA NUM CONTAINER.

MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS, NATUREZA HUMANA E A SORTE LANÇADA NUM CONTAINER.


O tema das migrações internacionais (ou globais), tanto pela mobilização de enormes contingentes populacionais quanto pelo lado dantesco das tragédias humanitárias, está na ordem do dia e ocupa o centro dos debates sobre a globalização e as tendências políticas de diversos países. Os deslocamentos humanos, que caracterizam as migrações, entretanto, não são um fenômeno recente. Desde os tempos antigos registram-se movimentos de pessoas, entre regiões e lugares, em grandes ou em pequenos grupos. Das narrativas bíblicas sobre Canaã e o Egito aos movimentos de população da era da globalização, o fenômeno acompanha e diz muito sobre a trajetória humana. Mas é preciso tomar cuidado para não embarcar em certos essencialismos.

O argumento comumente utilizado de que os deslocamentos populacionais sempre existiram, e derivam de uma tendência da natureza humana, deve ser examinado com cautela, para não perdermos de vista a dimensão histórica e social do fenômeno. Buscar uma explicação na natureza humana e enfatizar as continuidades a-históricas, além de deixar escapar o que de particular as migrações têm em diferentes contextos, significa despolitizar o debate, naturalizar o impulso à migração e minimizar as causas que levam contingentes humanos a abandonar seus locais de origem e reconstruir a vida em outros destinos. Talvez o melhor caminho, considerando que os fenômenos migratórios atravessam os tempos, seja historiar as especificidades de cada época e as circunstâncias locais, regionais e internacionais, que empurram as pessoas para além das suas fronteiras de origem. Ou seja, na mão contrária da tendência de ver as migrações como algo decorrente da essência humana, apostemos na descontinuidade histórica. Ainda que, na maioria das vezes, o sonho de melhorar de vida seja o impulso decisivo que subjaz ao desejo de migrar, os sentidos que se atribuem à noção de mudar de vida, em diferentes momentos, são muito diversas, e as circunstâncias históricas e sociais são radicalmente distintas.

Exercitemos a historicidade das migrações tomando três exemplos de grupos de pessoas que, em momentos bastante distintos, se dermos crédito às reconstruções históricas e mitológicas da trajetória humana, decidiram migrar:

- De Harã à Canaã: Abraão, depois de ouvir o seu deus (Javé) e selar com ele uma aliança, deixou Harã para trás e partiu com sua família em busca da terra prometida. Era um enviado de deus. O deslocamento era amparado pela providência divina. As narrativas proféticas no velho testamento eram, em boa parte, definidas pelos percursos migratórios. Abraão não seguia um impulso essencial da natureza humana. Seguia a ordem de um deus.

Um parêntese: grande parte dos refugiados palestinos, expulsos de suas terras por aqueles que se julgam herdeiros da aliança que Javé fez (?) com Abraão, engrossam as fileiras do que chamamos hoje de migrantes ou deslocados globais.

- Da Prússia para o Brasil: Alemães de várias regiões da Prússia vieram para o Brasil no século XIX, em busca daquilo que o governo brasileiro prometia nas propagandas para atrair imigrantes. Vinham em busca de terras, da terra prometida, da nova Canaã. Um folheto que circulava em Hamburgo em meados do século XIX nos dá o tom dessas propagandas e do que era oferecido ao trabalhador que se dispusesse a abandonar sua pátria e se deslocar para o Brasil: “Iniciamos agora a viagem para terras brasileiras, esteja conosco Senhor, e guie sim, faça Tu o nosso caminho, esteja conosco no mar, com Tua mão paterna, que chegaremos bem felizes na terra brasileira. Deus falou para Abraão: abandona a tua terra, e parte para outra que minha mão forte te indicar.”

Como Abraão, os migrantes (históricos) dirigiam-se a uma “terra prometida” guiados pela mão certeira de deus através dos perigos do mar.


- Da África e da Ásia para a Europa: Africanos e asiáticos, de diferentes nacionalidades, que de acordo com certa teologia não descendem do patriarca mítico, tentam chegar à Europa viajando clandestina e perigosamente dentro de containers. Em meados de 2016 um grupo 19 de etíopes foi encontrado morto dentro de um container que ia para a Zâmbia. Pareciam esquecidos pelos deuses e absolutamente desamparados. Em 2014, 35 indianos foram resgatados em péssimas condições dentro de um container na Inglaterra. Os exemplos se multiplicam facilmente.

Uns deixavam suas terras e migravam conduzidos pela mão de deus. Migrar era um ato de fé. Outros atravessavam o mar a bordo de um navio em busca das terras prometidas. Migrar era a oportunidade de mudar de vida. Os menos afortunados, e indesejáveis, se amontoam claustrofobicamente no interior de um container. Migrar é uma urgência. E não há nenhuma garantia.

Deixando de lado o caso de Abraão, que atendeu ao chamado de Javé, e trocou a região de origem pela complicadíssima Canaã, concentremo-nos nos alemães e nos africanos e asiáticos. O que levou milhares de alemães a migrar para o Brasil no século XIX e o que leva uma família de etíopes a deixar seu país e tentar entrar no Reino Unido hoje, mesmo considerando que ambas as famílias desejassem melhorar de vida, são coisas muito diferentes. O contexto internacional e as adversidades internas enfrentadas pelas famílias são absolutamente distintos, como também são as expectativas que as movem – incentivos externos, valores, etc. O sentido mesmo de migração, no século XIX e em boa parte do século XX, era diferente dos sentidos que hoje atribuímos ao fenômeno, sobretudo se considerarmos o caráter global e multidirecional dos deslocamentos humanos.

A vinda dos alemães foi planejada pelo estado receptor e atendeu as demandas do governo imperial e das províncias. O estado brasileiro viu na figura do imigrante um meio para a realização dos seus objetivos: os interesses em torno da substituição dos escravos nas lavouras de café, os interesses fundiários de valorização da terra e produção de gêneros alimentícios para o abastecimento das cidades e a política de ocupação territorial no sul do Brasil. Havia, portanto, um projeto nacional idealizado em torno da figura do imigrante. Uma intensa propaganda foi posta em ação, no continente de origem, para motiva-los a migrar e incentivos foram oferecidos para atraí-los. De maneira complementar às iniciativas públicas, as Companhias e agentes de colonização buscavam atrair migrantes na Europa, valendo-se também da propaganda, e instalá-los em colônias, ou recrutá-los nas áreas de colonização mais antigas e instalá-los nas áreas novas.

Os alemães foram convidados a migrar. Eram, por isso mesmo, bem-vindos. Vinham para preencher um suposto “vazio demográfico” e desenvolver a pequena propriedade produtiva. Além de substituir os escravos, nas regiões onde está mão-de-obra era fundamental, a vinda dos migrantes europeus representava, por um lado, a ressignificação do conceito de trabalho, associado até então à escravidão, e um salto civilizacional para o país. As condições na Europa que levavam aos deslocamentos populacionais para as Américas combinavam fatores sociais, econômicos e políticos. A região que posteriormente se tornaria a Alemanha era constituída por um conjunto de pequenos Estados empobrecidos e conturbados por uma série de guerras e revoluções, o que levava a uma situação econômica e política bastante instável e precária.


Os alemães viajavam de navio e sua chegada ao Brasil era cercada de expectativas positivas por parte do governo brasileiro. Vinham em busca de terras e de melhores oportunidades. Além de se tornarem proprietários, nas províncias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, havia, por trás do projeto imigrantista, o ideal de branqueamento.  Os alemães eram a salvação da lavoura, com o perdão pelo trocadilho. É claro que as coisas não eram fáceis, a viagem poderia ser bastante complicada e a chegada num país distante e desconhecido (como de fato se revelou em várias situações) poderia não ser nada daquilo que se imaginava.

Bem diferente é a situação dos africanos e asiáticos que tentam entrar ilegalmente na Europa. Viajam em situações dramáticas, e são obrigados a enfrentar travessias, como a do mar mediterrâneo, perigosíssimas. Alguns grupos se lançam na jornada migratória clandestinamente em containers. Viajam dias e dias confinados, sem ver a luz do dia, e ficam expostos à fome, a desidratações graves e à hipotermia. Por isso os elevados índices de mortalidade para quem se arrisca nestas jornadas sinistras. Os containers de lixo que saem diariamente de Ceuta para Cádiz, por exemplo, são um esconderijo “perfeito”, e perigosíssimo, para os africanos subsaarianos que desejam atravessar o mediterrâneo para tentar o sonho europeu. Além do mau cheiro, que pode provocar asfixia, os migrantes enfrentam o risco de serem esmagados por montanhas de lixo e de serem triturados no momento de compactação dos resíduos.

A trajetória da viagem deste perfil de migrante é incerta e a chegada no local de destino, se isso de fato acontecer, pode virar um pesadelo. Não são bem-vindos, não foram convidados, são vistos como “cidadãos” de segunda classe, e, embora ocupem empregos importantes e aqueçam as economias dos países de destino, a sua presença desperta o ódio de grupos extremistas e intolerantes. Se não forem deportados, viverão em situação de ilegalidade sabe se lá por quanto tempo.

Em geral, estes migrantes estão fugindo da fome, dos conflitos regionais, que assolam o Oriente Médio e regiões da África nos últimos anos, e da ação de grupos extremistas. As imagens de milhares de pessoas deixando seus lugares de origem, a pé, apenas com a roupa do corpo, não encontram paralelo na história das migrações. São migrações forçadas, que obedecem ao imperativo da sobrevivência.


Por trás destas tentativas desesperadas de entrar na Europa, principalmente no Reino Unido, identifica-se, quase sempre, a ação do crime organizado internacional que atua no tráfico e contrabando de seres humanos, com promessas de trabalho inexistente. Apolítica restritiva dos estados e ação dos contrabandistas criam um cenário pavoroso para as migrações contemporâneas. A presença de crianças nos containers deixa tudo ainda mais revoltante.

A comparação dos deslocamentos de alemães para o Brasil e de africanos e asiáticos para a Europa nos permite tecer considerações sobre dois fluxos migratórios diferentes que encerram um conjunto de questões específico de cada época. O ambiente intelectual, e os temas em destaque nos meios científicos e sociais, por exemplo, são muito sugestivos do imaginário social que cerca as migrações. Se no século XXI as migrações estão envolvidas pelos debates em torno dos direitos humanos e pela consolidação do regime internacional dos refugiados, no século XIX as teorias científicas sobre as raças humanas, que as hierarquizava segundo valores e critérios europeus, e a filosofia do progresso, de inspiração positivista, davam a tônica e, em larga medida, tangenciavam os debates e os projetos sobre as migrações.

Nestas circunstâncias, parece evidente que os movimentos migratórios tenham sentidos e significados diferentes, ainda que as pessoas em deslocamento buscassem melhores condições de vida do que aqueles que tinham no país de origem. Sem esta percepção histórica das enormes diferenças, mesmo considerando certas semelhanças, somos levados a crer que as migrações respondem mais a um impulso da natureza humana, que os impele ao deslocamento, do que aos estímulos e constrangimentos políticos, sociais, econômicos e ambientais. As migrações são fenômenos históricos polissêmicos que traduzem as particularidades, as necessidades de cada época, tanto dos países de imigração quanto dos países de emigração.

No século XIX enfrentar a longa travessia do atlântico, cercada de mitos e dificuldades, na terceira classe do navio, era o grande obstáculo para os migrantes europeus que decidiam tentar a sorte nas Américas.


No século XXI o container, estrutura que aprisiona/esconde humilhantemente as populações indesejáveis da África e do Oriente Médio e amontoa seres humanos animalescamente, talvez seja uma das melhores imagens para capturar o lado sombrio e grotesco das migrações contemporâneas. O container é um túmulo transfronteiriço, para pessoas enterradas vivas, que flutua vergonhosamente por águas internacionais, sob as políticas restritivas e seletivas de Estados coveiros e o silêncio e a indiferença globais.


sábado, 23 de dezembro de 2017

“UM ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”: A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO.

“UM ATRAZADO QUE A GANÂNCIA DAS GAZETAS SAGROU E A BOBAGEM DA MULTIDÃO FEZ UM DEUS”: A CRÍTICA DE LIMA BARRETO COMO CONTRAPONTO À DIVINIZAÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO.



[...] repimpado em luxuoso automóvel de capota arriada, passou, com o ventre proeminente atraído pelos astros, o poderoso ministro do Estrangeiros [...]. (Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá - Lima Barreto).


Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, é considerado oficialmente herói nacional desde 2011. A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 7403/02, que inscreveu o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. O culto à sua figura, no entanto, remonta ao começo do século XX. As vitórias nos arbitramentos com a Argentina e a França lhe conferiram grande notabilidade e sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1902, para tomar posse no MRE, foi triunfal, com direito à carruagem aberta sob os aplausos da multidão. Ainda em vida o Barão era visto como verdadeiro herói nacional e cultuado no círculo das elites políticas e diplomáticas como uma espécie de semideus. Depois da morte, em 10 de fevereiro de 1912, foi transformado no modelo inalcançável e símbolo maior da diplomacia brasileira. Foi proclamado também como um dos artífices da identidade nacional. Descolado do mundo social e político no qual se construiu, foi alçado ao altar cívico da pátria. Os críticos silenciaram, ou se renderam às efusivas homenagens, e as virtudes e os feitos do “grande homem” foram elevados a uma condição olímpica. Os discursos laudatórios e toda sorte de homenagens (placas, monumentos, nomes de ruas, etc.), que enalteceram suas glórias e imortalizaram seus feitos, o transformaram numa unanimidade nacional (Ver o post anterior sobre o Barão).


Porém, quando examinamos mais de perto a figura do Barão, para além dos discursos mistificadores, nos deparamos com uma figura humana, como todas as outras, marcada por imperfeições. Estava longe de ser uma unanimidade. Na verdade, dividia opiniões. Os admiradores e apologistas, claro, eram maioria, mas os críticos eram dedicados e persistentes. Se para alguns lhe sobravam habilidades e talentos, para outros, o chanceler era defensor da eugenia, um negociador fraco, um gastador sem reservas e um egoísta ultrapassado.

Dar relevo às críticas e aos desafetos do Barão não significa desmerecer-lhe os talentos e as qualidades. A preferência por soluções pacíficas para as disputas, a não ingerência nos assuntos internos dos países vizinhos, o fortalecimento dos laços sul-americanos, visando a estabilidade regional, a busca por autonomia e o exercício discreto da liderança brasileira na América do Sul, são alguns dos pontos que se destacam na atuação do Barão na condução da política externa. Todavia, ler atentamente as críticas que sofreu é fundamental para que possamos retirar o véu das mistificações que o envolve e avaliarmos suas escolhas e decisões à luz das condições históricas e das relações políticas de sua época, e não como um ato de iluminação, inscrito num plano metafísico, superior.

Entre os críticos mais conhecidos, no Brasil, destacamos Lima Barreto e Oliveira Lima. O chanceler argentino Estanisláo Zeballos também foi um grande adversário. Lima Barreto, crítico severo do estilo e dos excessos do Barão, não perdeu oportunidade de denunciar-lhe os abusos (excessos e abusos aos olhos de Lima Barreto). Referiu-se direta ou indiretamente ao Barão em dois livros (um romance e uma sátira) e em alguns textos esparsos, sempre de maneira incisiva e cortante. Na vasta coleção de personagens característicos daquela época, verdadeiro banquete para um crítico perspicaz, o chanceler era um dos seus alvos preferenciais.

Lima e Rio Branco, cada um à sua maneira, foram figuras de proa de mundos distintos do Brasil da Belle Époque. Muito diferente do aristocrático Rio Branco, e da diplomacia eugenista que praticava, Lima Barreto era um mulato pobre, suburbano, que vivia e escrevia em condições sociais e pessoais muito adversas. Se Rio Branco teve a vida política facilitada pelo sobrenome e por amizades, como a de Duque de Caxias, que lhe abriu as portas para a carreira diplomática, Lima não contou com estas facilidades e tropeçou a vida inteira na barreira da cor. De um lado, o Brasil branco, europeu, das elites, das distinções e do coronelismo ilustrado; de outro, o Brasil mestiço, inventivo e de poucas oportunidades, que corria à margem da república dos bacharéis.





A literatura ativista de Lima Barreto, numa época marcada pelo darwinismo social, combatia os preconceitos de classe e de cor e as múltiplas formas de injustiças daquele Brasil. Numa época em que teorias científicas de enorme prestígio e sucesso afirmavam existir diferenças irredutíveis e permanentes entre as raças humanas, Lima manteve-se cético e profundamente contestador das justificativas cientificas para as desigualdades raciais e a suposta superioridade branca (Schwarcz).

Lima fundiu estilos literários, empregando-os com originalidade para os seus propósitos. Intencionalmente, ao mesmo tempo, procurou descaracterizar o estilo, visando uma comunicação mais direta com o público. Dois recursos estilísticos, notadamente, marcaram sua obra: a ironia e a caricatura. Os modelos foram declaradamente inspirados nos grandes mestres do gênero: Dickens, Swift, Maupassant, Voltaire, Balzac e Daudet. A “suculenta ironia”, como dizia Lima, que ia da “simples malícia ao profundo humour”, vinha da dor. “Era o artifício através do qual se sobrepunha aos infinitos percalços que lhe entravam o desenvolvimento da personalidade e da carreira”. A caricatura derivava da percepção de que a realidade não falava por si. Era preciso apertá-la, exagerá-la, pintá-la com tons gritantes para denunciar seus defeitos e deformações (Sevcenko).

Tinha um agudo senso de observação do “instante presente” e escrevia para o futuro, com apurada consciência histórica. Deixou para a posteridade um retrato denso e multifacetado do seu tempo. Nas suas próprias palavras: “A minha atividade excede em cada minuto o instante presente, estende-se ao futuro. Eu consumo a minha energia sem recear que esse consumo seja uma perda estéril, imponho-me privações, contando que o futuro as resgatará – e sigo o meu caminho” (O destino da literatura).

Lima combatia os “literatos de atelier” e as expressões literárias de seu tempo, vistas como meramente decorativas e frívolas, para entreter as elites letradas que desdenhavam ociosamente dos problemas do país, e se debatia contra o bovarismo, a mania de dar as costas para o que era “nosso” e se voltar para as coisas do estrangeiro, ou “de se querer diferente do que se é”.

O Barão do Rio Branco, para Lima Barreto, encarnava uma espécie de síntese do bovarismo e da frivolidade exibicionista que afetava as elites da época.

Na sátira política “Bruzundanga”, escrita em 1917, Lima desfere críticas mordazes ao Brasil das oligarquias, das elites bovaristas (que fingiam ser o que não eram), do abuso de poder, dos privilégios e das injustiças. Bruzundanga, na trilha de Jonathan Swift e Thomas More, é um país imaginário, visitado por um narrador brasileiro, que em tudo se parece com o Brasil. O Capítulo VII é dedicado à diplomacia da Bruzundanga. O Barão do Rio Branco é retratado cartunescamente na figura do Visconde de Pancome, “um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente”, que veio ser “ministro dos Estrangeiros”. “Empossado no ministério”, continua Lima, “a primeira coisa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito popular na Bruzundanga”. Os habitantes da República dos Estados Unidos da Bruzundanga eram “assim como nós, que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral, nenhum de nós tenha de seu nem sete palmos de terra para ditarmos o cadáver”.

Na República da Bruzundanga, o Visconde de Pancome exercia a diplomacia baseado na sua vontade e “não houve bonequinho mais ou menos vazio e empomadado que ele não nomeasse para esta ou aquela legação”. “Não ha mal algum que assim seja a diplomacia daquelas paragens”, arremata Lima. “A Bruzundanga é um país de terceira ordem e sua diplomacia é meramente decorativa. Não faz mal, nem bem: enfeita”.

No romance “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, publicado em 1919, Lima fixou uma imagem nada lisonjeira do herói nacional. Por meio do narrador Augusto Machado, que recorda o falecido Gonzaga de Sá, o Barão é visto como um homem de uma “mediocridade supimpa”. “Sempre voltado para tolices diplomáticas (...) era um atrazado, que a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus”.

Autoritário e egocêntrico, o Barão teria feito “do Rio de janeiro a sua chácara”. Não dava satisfação a ninguém e se julgava acima da Constituição. Armava situações diplomáticas para “mostrar seu atilamento de Tayllerand, ou sua astúcia Bismarkeana”. Para Lima, Rio Branco era “egoísta, vaidoso e ingrato.”

O chanceler, na apreciação de Lima, era demasiado apegado aos detalhes cerimonias, caprichosos e inúteis. O seu ideal de estadista não é fazer a vida fácil e commoda a todos; é o apparato, a filigrana dourada, a solennidade cortezan das velhas monarchias europeas - é a figuração theatral, a imponência de um ceremonial chinez, é a observância das regras de precedência e outras vetustas tolices versalhezas”.

A imagem que Lima tinha do Barão é um contraponto, cáustico e demolidor, à decantada unanimidade que se supunha existir em torno do seu nome. Embora, por antipatia, Lima possa ter exagerado e carregado nas tintas (os apologistas do Barão, por simpatia, não fazem o mesmo?), ele parece ter expressado um ponto de vista que, supomos, era compartilhado entre aqueles que se opunham à diplomacia das oligarquias cafeeiras, da qual o Barão era o olímpico condutor.

A unanimidade só veio mesmo depois da morte. O discurso de Oliveira Lima utilizado por Celso Lafer e Francisco Weffort, em 2002, para justificar a inscrição do nome de Rio Branco no livro dos Heróis da Pátria é um bom exemplo disso (ver o post anterior sobre o Barão). Oliveira Lima, diplomata visto como dissidente, foi desafeto e crítico do Barão ao longo da sua gestão no MRE. Além de ser contrário à política pan-americana, acusava-o de dificultar a sua carreira diplomática. Depois da morte, recolheu as críticas e rendeu-lhe as mais honrosas homenagens. O mesmo aconteceu com Estanisláo Zeballos, chanceler argentino e rival do Barão desde o litígio lindeiro de Palmas, que conduziu uma política externa abertamente antibrasileira. Num artigo publicado logo após a morte do Barão, Zeballos abandonou o tom crítico e escreveu um discurso de homenagem ao velho rival: “Si el Brasil consolida la obra territorial del Barón de Rio Branco, le deberá el título de su primer servidor y del mas grande de los benefactores de su amor proprio nacional y de su mapa”.

A morte do Barão, as pomposas e intermináveis homenagens que se seguiram e o culto que se ergueu em sua memória, só não diminuíram a verve crítica de Lima Barreto. “Os Bruzundangas” e “Morte e Vida” foram escritos, respectivamente, cinco e sete anos depois da morte do Barão, e em plena maturidade literária de Lima (Barbosa). Lima não deu descanso ao Barão nem depois de morto. Em vida, criticou a conduta, os valores ultrapassados e o autoritarismo esnobe do chanceler. Posteriormente, não se rendeu à comoção nacional e à força do mito. Continuou implacável!

Na Bruzundanga contemporânea, Lima se indignaria e se deliciaria com os personagens, de todas as cores políticas, que nada ficam devendo às formidáveis caricaturas que pintou em sua época. A corrupção, as enormes desigualdades, as trocas de favores, o racismo, os abusos de autoridade e o saque aos bens públicos, que tanto o incomodaram, continuam, quase cem anos depois de sua morte, a dar as cartas e a esculhambar o país.

A Bruzundanga é aqui, e agora! E em repúblicas onde barões são heróis, mulatos pobres continuam tropeçando nas barreiras de cor e de classe.



Referências bibliográficas.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de janeiro: José Olympio, 2002.
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 2000.
BARRETO, Lima. Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá. Rio de janeiro-Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1990.
BARRETO, Lima. Obras completas de Lima Barreto. (Francisco de Assis Barbosa. Org.). São Paulo: Brasiliense, 1956.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

AS LIÇÕES DE TÉRSITES: notas sobre o saber memorável (do Aedo) e o poder da linguagem (domínio das Musas) na instituição e conservação da ordem do mundo.

AS LIÇÕES DE TÉRSITES: notas sobre o saber memorável (do Aedo) e o poder da linguagem (domínio das Musas) na instituição e conservação da ordem do mundo.

 Odisseu, Agamêmnon e Térsites.
Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às hostes dos aqueus (Versos iniciais da Ilíada).
 Mas se porventura via um homem do povo metido numa rixa, batia-lhe com o cetro, repreendendo-o com estas palavras: “Desvairado! Senta-te sossegado e ouve o que dizem outros, melhores que tu! Não passas de um covarde, de um fraco! Não serves para nada, nem na guerra, nem pelo conselho. Não penses que, aqui, nós Aqueus somos todos reis! Não é bom serem todos a mandar. É um que manda; um é o rei, a quem deu o Crônida de retorcidos conselhos o cetro e o direito de legislar, para que decida por todos” (Ilíada, Canto II).

Ilíada, o extraordinário e aristocrático poema épico grego, atribuído a Homero, é um hino à guerra e aos valores da nobreza. O Aedo canta e celebra a moral heroica, a honra (timé), a coragem, a destreza guerreira, os laços de parentesco, a arte de bem falar e faz demorado elogio ao ideal de excelência (areté) dos Basileus (reis), reunidos diante de Ílion (Tróia). Agamêmnon, Ajax, Aquiles, Odisseu, Nestor, Menelau, Diomedes, são alguns dos personagens homéricos que desfilam suas habilidades, militares e oratórias, e esperam uma morte heroica vislumbrando a glória (kléos).
No Canto II, destoando do ethos guerreiro dominante no poema, somos surpreendidos por um homem do povo, um soldado comum chamado Térsites que, em plena assembleia da nobreza, toma ousadamente a palavra e enfrenta Agamêmnon, o rei-comandante em armas dos aqueus. Cansado da guerra, que se arrasta há dez anos, reclama dos espólios tomados dos troianos (bronze e belas mulheres), que ficam sempre com os chefes, e propõe aos aqueus que voltassem para casa (o que pode denotar falta de coragem) e deixassem Agamêmnon em Tróia, por si mesmo, com os despojos, refletindo sobre a utilidade ou não dos soldados. Além da queixa, Térsites condenou o comportamento ganancioso do rei que roubou de Aquiles o prêmio de guerra, a bela Briseida.
A sequência dos acontecimentos é uma verdadeira lição sobre a ética guerreira e o ideal aristocrático cantados na Ilíada. Odisseu, herói épico e excelente conselheiro, reprova duramente a conduta insolente do tagarela Térsites e lhe aplica um humilhante castigo público: uma surra exemplar de cetro, que lhe deixa um indisfarçável vergão nas costas. O soldado, humilhado e machucado, volta ao seu lugar, senta-se trêmulo, enxuga as lágrimas e vira motivo de risos dos expectadores.
O cetro, arma simbólica utilizada para castigar o ousado soldado, merece um pouco mais de atenção. A insígnia tem uma genealogia própria que representa a transmissão do poder no seio da aristocracia (Vidal-Naquet). Tomemos o exemplo de Agamêmnon. No Canto II, em meio a uma tumultuada assembleia, o “poderoso” Atrida se levanta:
“[...] segurando o cetro que com seu esforço fabricara Hefesto. Hefesto deu-o depois a Zeus Crônida soberano, e por sua vez o deu Zeus ao forte Matador de Argos, Hermes soberano, que o deu a Pélope, condutor de cavalos; por sua vez de novo o deu Pélope a Atreu, pastor do povo; e Atreu ao morrer deixou-o a Tiestes dos muitos rebanhos; por sua vez o deixou Tiestes a Agamêmnon para que o detivesse, assim regendo muitas ilhas e toda a região de Argos” (Ilíada, Canto II).

                                                                             Zeus sentado com o raio e o cetro.

Foi com este mesmo cetro, que Agamêmnon lhe emprestou para conter o impulso dos soldados de arrastar as naus para o mar e abandonar a guerra, que Odisseu golpeou o soldado. A genealogia do cetro remonta aos Deuses que, por divina transmissão, o repassa aos Basileus que o empunham com soberana autoridade para o exercício do poder e a distinção das hierarquias. Poder e hierarquias inobservados por Térsites. Os golpes de cetro, vistos desta maneira, têm um caráter pedagógico. A atitude espontânea de Odisseu não foi intempestiva ou irrefletida. Representa, antes, o paternalismo aristocrático do Basileu que repreende duramente o seu subordinado, na frente de todos, reforça o lugar social de cada um e retoma o privilégio do uso da palavra, especialmente naquela situação. Lendo a desventura de Térsites com a lente de Foucault, a surra foi um castigo corretivo, disciplinar. O cetro é um dispositivo de poder aristocrático empunhado exemplarmente para silenciar o inconveniente orador e reestabelecer a ordem.
Térsites é um anti-herói épico (não se enquadrava no esquema de valores subjacente ao ponto de vista narrativo). Ao povo cabia apenas escutar. O uso da palavra, especialmente numa assembleia, era prerrogativa dos nobres. Embora a fala de Térsites fizesse algum sentido, e talvez representasse o ponto de vista da maioria dos soldados, a atitude era inconveniente. Os aqueus andavam ressentidos, rancorosos e com o coração doído, mas foi Térsites que, à sua maneira, soltou o grito contra a ganância e a arrogância de Agamêmnon. Disparou um discurso fulminante, mas pagou um preço alto pela ousadia.
À violência física, soma-se, diríamos hoje, a violência simbólica das palavras empregadas pelo poeta para descrever Térsites, o mais feio entre todos: vesgo, corcunda, de pernas arqueadas, manco, cabeça pontuda e cabelos ralos. Uma ridícula figura, que ninguém levava a sério. A feiura e o aspecto repulsivo do soldado saltam aos olhos, especialmente quando consideramos que a beleza e a virilidade eram atributos admirados e cultivados pela nobreza. Os heróis homéricos cuidavam do corpo e o tratavam com óleos e unguentos. A beleza física era o corolário da moral guerreira (Claude Mossé). O porte físico e o refinamento da armadura e das armas de bronze, a panóplia do guerreiro, distinguiam os heróis dos soldados comuns. “O esplendor que dimana do corpo do herói, vem antes do fulgor do bronze de que se reveste, do faiscar de suas armas, da sua couraça, do seu capacete, da chama que emana dos seus olhos, do irradiante ardor que o consome” (Claude Mossé). A beleza está associada ao valor guerreiro. São belos não porque ostentam uma beleza física notável. São belos porque são fortes, vigorosos, corajosos e admiravelmente revestidos do esplendor do bronze. Térsites, de feiura inigualável, representa a encarnação do completo oposto ao herói homérico.
O modo como Homero se refere à Térsites encerra uma significativa lição. Inspirado pelas Musas, divindades que presidem a linguagem e o conhecimento, o poeta tem o poder de dizer. As palavras escolhidas para descrevê-lo e desacreditá-lo são revestidas de uma autoridade que está além do mundo dos homens. As Musas são o produto da mais importante conjunção mítica. São filhas de Zeus (raiz e fonte do poder) com Mnemósine (memória), e decidem entre o que deve ser revelado e o que vai ser esquecido (origem de todo poder). Elas conferem ao poeta o poder de trazer à lembrança o que merece ser lembrado.
O Aedo articula, portanto, um tipo de poder que lhe é conferido pela Memória, pela palavra cantada (Musas). O canto do Aedo é uma epifania do poder divino que configura o mundo e ilumina as relações de poder entre os mortais.
                                                                                                             Homero
Não passou despercebido por Vidal-Naquet um importante detalhe: o nome do pai de Térsites, em nenhum momento, foi mencionado. Não foi um descuido do poeta (um cultor da Memória). A menção aos antepassados (Aquiles, filho de Peleu), fórmula repetida inúmeras vezes, é um exercício de fixação das linhagens familiares e a afirmação de um passado heroico e honrado dos personagens. As genealogias, demoradamente cantadas, são a celebração e a conservação da memória da aristocracia. O esquecimento, neste caso, é uma manifestação do poder que o canto épico, iluminado pela Memória, impõe. No extraordinário exercício de memorização e declamação dos nomes, dos nobres parentescos (Odisseu, filho de Laerte), entoado pelo Aedo, o pai de Térsites foi esquecido. O poder de lembrar, articulado pela linguagem e pela memória, tem o seu contraponto: o esquecimento. O nome do pai do homem que tomou a palavra e insultou o rei, mesmo sendo ele um conhecido herói eólio (Ágrio), não merece ser lembrado.
A lição de Térstites é sobre um saber que o poeta detém (uma outorga do divino), que lhe autoriza o exercício de um poder, circunscrito pela linguagem, e tutelado pela memória, que nomeia e institui a ordem mundo. Ordem da qual o poeta, criador e criatura, era o intérprete oficial. Térsites desafiou este poder, ameaçou, com ligeira e humana desordem, a duradoura ordem imposta pelo sagrado e foi submetido a uma humilhação à altura da sua ousadia e da ofensa que fez à aristocracia!

De acordo com um dos poemas cíclicos, do Ciclo Troiano (poemas épicos posteriores e complementares à Ilíada e à Odisseia e, segundo Aristóteles, literariamente inferiores), intitulado Etiópida, Térsites, filho de Ágrio, morreu violentamente pelas mãos de Aquiles. Depois de tirar a vida de Pentesiléia, rainha das Amazonas, o filho de Tétis foi às lágrimas contemplando a beleza do corpo sem vida. Térsites teria zombado da ternura do herói e ameaçado furar os olhos da morta. Aquiles tirou-lhe a vida com um único golpe. Uma morte nada gloriosa para o soldado descrito por Homero como “o homem mais feio que veio para Ílion”.

Referências Bibliográficas.
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. São Paulo: Vozes, 1993.
FINLEY, Moses. O mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1989.
HOMERO. Ilíada; tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2003.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2010.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1984.
TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992.

VIDAL-NAQUET. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.