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domingo, 10 de dezembro de 2017

“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.

“ESCOLA SEM PARTIDO”: Uma ilha de neutralidade seletiva no mar tempestuoso do mundo político.


As observações e as críticas que faço ao projeto de lei “Escola Sem Partido” levam em conta, principalmente, quem está na linha de frente do projeto e a minha experiência como aluno e como professor.

De autoria do senador Magno Malta, porta-voz (ou testa-de-ferro?) de um conservadorismo rasteiro e desinformado que (re)surgiu no Brasil na última década, o projeto de lei “Escola Sem Partido” representa uma tentativa oportunista e grosseira de invadir o ambiente escolar, patrulhar as condutas dos professores e transformá-los em transmissores passivos e apolíticos de conhecimentos estéreis. Afastar das escolas, por imposição legal, os debates/embates políticos que vicejam no mundo é pretender transformar as escolas em ilhas de neutralidade, em ambientes ascéticos e apolíticos descolados do mundo social.

O projeto de lei é um retorno ao positivismo do século XIX e à crença na neutralidade axiológica do conhecimento. Mas duvido que os proponentes deste modelo de Escola saibam disso. Se soubessem, saberiam também que a “crença” na neutralidade do conhecimento era uma entre as tantas utopias racionalistas do século XIX (como o socialismo) que foram derrubadas no século XX. Mas todos nós sabemos que os interesses que movem os defensores do projeto são outros.

Magno Malta, a ponta do iceberg, é figura folclórica do anticomunismo paranoico e anacrônico que tomou conta do Brasil nos últimos anos, ressuscitado na esteira dos graves deslizes éticos e morais dos governos do PT. Histérico e barulhento, pegou carona na onda antiesquerdista e se projetou como defensor, no senado federal, de um modelo de escola que se pretende neutra. Magno Malta é presidente da ‘Frente Parlamentar em Defesa da Família Brasileira’ e um típico “ficha suja”. Seu nome aparece em escândalos como o esquema de superfaturamento das ambulâncias (escândalo dos sanguessugas) e a aprovação de uma emenda para favorecer uma empresa fabricante de armários de cozinha (Será que é esta a relação que o senador estabelece entre o exercício do mando parlamentar e a defesa da família: armários de cozinha para a família brasileira?).

É esse senador exemplar que está propondo o projeto de lei. Malta e os defensores deste modelo de escola “neutra” não são nada neutros. Eles têm um partido. Eles são inimigos declarados das esquerdas e do marxismo e fazem disso a sua profissão de fé. São fanáticos antiesquerdistas que querem, em nome disso, varrer das escolas a pluralidade de pensamentos. Não é necessário nomear os demais defensores do projeto. Magno Malta os representa perfeitamente bem.

Na página do “Escola Sem Partido” está escrito em letras garrafais que o PT e o Sindicato dos Professores são contra o projeto de lei. O truque é manjado. A estratégia é vender a ideia de que apenas petistas e professores esquerdistas, por óbvios interesses, se opõe ao projeto. O descrédito político do PT e o macarthismo de ocasião os favorece. Pois bem. Eu não sou petista, não simpatizo com o PT, não sou filiado a nenhum Sindicato, e sou absolutamente contra a ideia da “Escola sem Partido”. Aliás, não conheço nenhum colega professor, das escolas e das universidades, que apoie o projeto. Tenho colegas de diversas tendências políticas: de socialistas à liberais, de keynesianos à admiradores da Hayek, de petistas à tucanos. Nenhum deles simpatiza com a ideia.

Sou professor há mais de vinte anos. Lecionei em escolas de primeiro e segundo grau, públicas e particulares, e há vinte anos leciono em Universidades, em cursos de graduação e pós-graduação. Como professor, sempre procurei exercer democraticamente o meu ofício oferecendo aos meus alunos diferentes pontos de vistas sobre os temas abordados, para que fizessem suas escolhas. Não procuro e nunca procurei orientar a conduta política de ninguém. E isso não é neutralidade. Nunca foi um professor neutro. Não acredito na neutralidade. Acredito no diálogo e na troca democrática e respeitosa de ideias.

Encontrei na minha trajetória todo tipo de professor. Conheci liberais radicais, convivi com colegas de tendências fascistas e tive contato com esquerdistas exaltados. Mas eles sempre foram não mais do que alguns gatos pingados. Uma minoria caricata que os próprios alunos se encarregavam de desacreditar. Eram figuras folclóricas, como Magno Malta e, por isso mesmo, não eram levadas a sério (A grande maioria era de professores equilibrados e ponderados, quer à esquerda, quer à direita). Alunos e colegas davam apelidos apropriados e faziam gracinhas com os excessos de idealismo ou de autoritarismo dos professores mais extremados. Numa das escolas que trabalhei, no começo dos anos 90, o professor com tendências fascistas era chamado nos corredores de Adolfinho, e o exaltado de esquerda, de cumpanheiro. Eram verdadeiras caricaturas! O primeiro vestia-se formalmente, com a calça acima do abdômen, camisa caprichosamente para dentro da calça, cintos e sapatos impecáveis e sempre muito bem barbeado. Segundo os murmúrios do corredor, o sujeito não admitia a menor desatenção dos alunos. Fulminava com os olhos e chamava atenção com o dedo em riste. Embora não fosse professor de história, gostava de falar da segunda guerra mundial. Na hora do intervalo, parava na porta da sala dos professores em pose marcial, com as mãos para trás, cumprimentando todos que chegavam: “satisfação revê-lo, professor”, dizia sempre. Era intimidador. Nunca o vi sentado, relaxado. O segundo usava barba irregular, vestia-se com certo desleixo e usava uma indefectível bolsa de couro. Qualquer que fosse o assunto tratado em aula, ela dava um jeito de falar de revolução e luta de classes. Tinha mau hálito e explicava absolutamente tudo com base nos escritos de Trotsky. Embora, a julgar pelas poucas vezes que conversamos, parecesse nunca ter realmente lido “A Revolução Permanente”. Adolfinho e cumpanheiro não se cumprimentavam. Pareciam se odiar, embora, aos meus olhos, fossem tão parecidos (assimetricamente iguais). Em outra escola, conheci uma professora que, em sala de aula, se dizia admiradora da ditadura militar. Dizia que naquele tempo tudo era melhor e que os alunos deveriam se inspirar no exemplo dos militares. Tinha fama de autoritária e de perseguir alunos do centro acadêmico ou os que discordassem dela. Quando passava nos corredores, os alunos batiam continência e juntavam as pernas, sem ela ver, claro. Na sala dos professores, mantinha um tom mais discreto. Mesmo assim, não escapou da zombaria: o professor de física a apelidou de sargentão. Quando sargentão entrava ereta na sala dos professores o ambiente mudava. Ficava um clima artificial. Ela nunca percebeu. Se esforçava para ser simpática. Usava laquê no cabelo, maquiagem permanente e sempre combinava a cor da bolsa com a cor do sapato. Sargentão tinha cheiro de roupa guardada. Anos mais tarde encontrei o professor de física num bar e fiquei sabendo que a professora abandonou a sala de aula, queixando-se da indisciplina dos alunos, e foi trabalhar no setor administrativo da escola.

Todos os três professores eram autoritários e usavam a sala de aula para exercitar sua profissão de fé. Mas não pensem que os(as) alunos(as) são presas fáceis e vítimas inocentes de predadores com diplomas. Professores com tendências autoritárias e catequizadores voluntariosos viram rapidinho motivo de piadas e chacotas. Quantas vezes vi no recreio alunos fazendo a saudação nazista, pelas costas, quando Adolfinho passava. Não foram poucas as vezes também que ouvi um aluno mais saidinho gritar para o outro professor: o que Trotsky diria sobre isso, cumpanheiro?

O “abuso da liberdade de ensinar”, como querem os defensores do projeto, existe, mas é a exceção, não a regra. Não se pode interferir na liberdade de ensino para conter um punhado de professores exaltados. E não são apenas professores ditos de esquerda que praticam esse abuso. Mas os defensores do “Escola Sem Partido” não querem saber disso. Eles demonizam os professores de esquerda como se eles fossem de alguma maneira perigosos. Ora, se as escolas vivessem uma epidemia ideológica, como pretendem os alarmistas, e os tais doutrinadores de esquerda tivessem de fato o poder de converter crianças e adolescentes em militantes esquerdistas, seríamos uma “república sindicalista”, para usar uma velha expressão, ou viveríamos numa sociedade do tipo socialista há muito tempo.


O ideal de escola que emerge do projeto nem chega a ser o bicho de sete cabeças que estão pintando. O projeto é ingênuo e, em certo sentido, inofensivo. Mas é bom ter cuidado!  Na atual conjuntura de polarização ideológica, ele pode se transformar numa forma policialesca e vigilante de fiscalização do trabalho dos professores. Não que eu ache que os professores não devam prestar contas do seu trabalho. Pelo contrário. Tem que prestar sim e devem ser avaliados constantemente. Mas isso é diferente do tipo de controle pretendido pelos idealizadores do projeto. A atitude do vereador de São Paulo, Fernando Holiday, eleito pelo MBL, é um bom exemplo do exercício de um poder abusivo e inquisitorial, seletivamente exercido. O vereador anunciou na sua página na internet que está fazendo visitas surpresas nas escolas da rede municipal de São Paulo para fiscalizar o conteúdo das aulas. Justificando as “visitas”, o vereador disse num vídeo que: “Temos de ver se está tendo algum tipo de doutrinação ideológica, se os professores estão dando aquilo que realmente deveriam dar de acordo com a grade curricular ou se tem professor entrando com camisa do PT, do MST, jogando tudo pro alto e fazendo aquela doutrinação porca”. Holiday se julga um verdadeiro fiscal do conhecimento, investido de um poder e de uma verdade que o habilitam a se lançar na heroica missão de limpar as escolas da “doutrinação porca”. Que tipo de isenção o representante do MBL tem para adentrar de surpresa nas escolas para fiscalizar a conduta dos professores?  Na verdade, o vereador é um fanático antiesquerdista que está à caça de tudo o que não se parece com ele. Se os defensores e simpatizantes da sigla quisessem de fato um Brasil decente, livre da corrupção, estariam nas redes sociais e nas ruas pedindo o afastamento de Michel Temer. O silêncio deles diz muito sobre o que entendem por uma “Escola sem Partido”. Será que o vereador “do bem” se importaria com professores que fazem em sala de aula a apologia do regime militar?

Nossos alunos não precisam deste tipo de “proteção” e nossas escolas não precisam ser expurgadas e higienizadas de supostas infecções ideológicas, e transformadas em redomas do conhecimento “puro”. Os pais que defendem o “Escola Sem Partido” estão passando um atestado de imbecilidade e de incapacidade dos filhos de lidar com a diferença de pensamento. As escolas precisam de investimentos, não de castração. Precisam de laboratórios e boas bibliotecas, não do sequestro da reflexão política e, se for o caso, dos embates políticos. Nossos alunos precisam de professores mais bem pagos e melhor preparados. Conviver com vozes dissonantes, com ideias diferentes e conflitantes com as que trazem de casa, não é nenhum problema. Pelo contrário, é também um aprendizado para crescerem no mundo, conviverem com os embates políticos e poderem fazer suas escolhas. Estudei na escola primária, no final dos anos 70 e início dos anos 80, com professores (não todos) que exaltavam as virtudes das forças armadas, nos faziam marchar, cantar o hino (como pretende Magno Malta) e escrever pequenos textos laudatórios do governo militar. No entanto, minha postura, desde o final do primário, sempre foi de oposição à ditadura. Os professores doutrinadores de OSPB e de Educação Moral e Cívica, do meu tempo de aluno, que adaptavam as duas disciplinas às exigências dos governos militares, também eram motivo de piadas e imitações. Aliás, acho que devo a eles a decisão de fazer a faculdade de história. Não tive a disciplina na escola. O que era para ser “aula de história” era, na verdade, um exercício laudatório das virtudes cívicas, segundo a ótica do regime militar. Fui estudar história por fora, nos livros, longe da escola. Na universidade, estudei com professores marxistas, liberais, positivistas e nacionalistas. Soube, como a maioria dos meus colegas, tirar de cada um o que me interessava.

O projeto de lei encabeçado por Magno Malta, equivocado e descabido, está sendo proposto numa conjuntura de extremismos e de polarização política. Ainda que tivesse pertinência, o que não é o caso, não seria este o melhor momento para se apreciar este tipo de interferência na vida escolar. Além disso, os propositores e defensores do projeto, pelo que se depreende das falas e dos discursos, não têm a ciência nem a competência para pensar um tema tão delicado. São, com efeito, motivados por um antiesquerdismo febril, circunstancial, oportunista e bastante mal informado. Querem amputar as ideias de esquerda da vida do país como se fosse uma doença, como se os extremismos vicejassem apenas à esquerda. São, portanto, antidemocráticos. Numa democracia se convive com valores, projetos e ideias antagônicas.


Espero que o Escola Sem Partido, verdadeiro delírio reacionário, seja uma dessas perturbações passageiras da jovem democracia brasileira, e que logo vire piada. A melhor forma de se livrar de besteiras perigosas é rir delas, como os alunos riam, e continuam rindo, dos professores que usam a sala de aula para exaltar as suas preferências políticas.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

SOCIEDADE DO APLICATIVO: Os Apps como dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.

SOCIEDADE DO APLICATIVO: Os Apps como dispositivos de controle e orientação das vontades e dos desejos.

Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira (Deleuze).

Quanto maior o número de informações em relação aos indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos (Foucault).






Cada época inventou e experimentou suas próprias tecnologias de controle e submissão dos sujeitos (aqueles que são assujeitados por diferentes formas e combinações de saber e poder). Das técnicas de vigilância modernas às câmeras de monitoramento, das estruturas arquitetônicas das fábricas e das escolas aos dispositivos de localização dos smartphones, as novidades tecnológicas, que atuam como modeladores dos gestos e adestradores dos comportamentos, sempre foram apresentadas como facilitadoras da vida e maximizadoras de segurança.

Em “Vigiar e Punir”, lançado originalmente em 1975, Michel Foucault identificou, entre os séculos XVIII e XIX, a emergência de um novo sistema de poder, baseado na disciplina e no confinamento, que chamou de sociedade disciplinar. Em diversas instituições como escolas, fábricas, hospitais, quarteis e prisões, foram introduzidas tecnologias de controle e vigilância do tempo, do espaço e dos corpos dos indivíduos, com vistas a torna-los obedientes, úteis e molda-los às exigências da produção. A criação do panóptico, por Jeremy Benthan, representou a sofisticação dos mecanismos de vigilância. Os dispositivos disciplinares são constituídos por uma polarização entre a opacidade do poder e a transparência dos indivíduos. O panóptico ilustra perfeitamente bem esta polarização. A torre de controle ficaria fora do alcance dos indivíduos, enquanto os indivíduos estariam o tempo todo ao alcance do olhar supervisor da torre. Expostos à permanente visibilidade, estariam sujeitos à invisibilidade do mecanismo de controle que os observa. O que fazer diante de um poder que se exerce na invisibilidade?

                                                                           Panóptico.

Em 1990, num artigo intitulado “Post-scripton Sobre as Sociedades de Controle”, publicado no L´Autre Journal, Gilles Deleuze identificou os elementos, sobretudo tecnológicos, que articulariam uma nova ordem social: a sociedade de controle. A mudança teria ocorrido na segunda metade do século XX, no pós-segunda guerra. Os mecanismos de vigilância foram aprimorados e se generalizaram. A invasão das câmaras de segurança nos diversos espaços sociais (lojas, bancos, supermercados, estradas, e por aí a fora) o uso de transponders, de aparelhos celulares, cartões de crédito e da popularização da internet e das tecnologias de comunicação, ampliaram e tornaram mais eficientes as possibilidades de controle e vigilância. Antes circunscrita à lugares fechados, aos interiores das instituições disciplinares, a vigilância assumiria um caráter mais abrangente e alcançaria os espaços abertos. Para Deleuze, Kafka, que viveu no ponto e intersecção entre as duas ordens, anteviu, em O Processo, aspectos que anunciariam a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.




Da Sociedade do Controle à Sociedade do Aplicativo.

E hoje, estaríamos vivendo em que tipo de sociedade? Na sociedade do aplicativo? Exploremos a possibilidade. Os programas de computadores, conhecidos como Apps, que nos ajudam em tarefas específicas, estão assumindo o controle nas mais variadas atividades. Nos auxiliam na hora de pegar um taxi, de pedir comida, de dirigir, de cuidar dos bebês, de estudar, de escrever e de meditar, de dormir e de acordar. Dormindo ou acordados, os aplicativos controlam nossos fluxos de relacionamentos e atividades. São vistos como facilitadores úteis da vida diária. E minha intenção não é afirmar o contrário. Chamo a atenção apenas para a centralidade que estes dispositivos vêm, cada vez mais, ocupando em nossas vidas. Estaríamos à beira de uma ditadura do App? Num blog sobre tecnologia, a frase de abertura de um texto sobre os 10 aplicativos que você tem que usar em 2017, é: “Sem aplicativos o ser humano moderno não vive”. Tirando o exagero da afirmação, compreensível num blog sobre tecnologia, nota-se o lugar vital que os arautos destes dispositivos, que habitam as pequenas divindades digitais (os smartphones), pretendem que eles assumam em nossas vidas.

Se considerarmos a maneira como as pessoas expõem seus hábitos nas diversas redes sociais, disponibilizando dados e informações sobre quase tudo o que fazem, onde estão, como estão e com que frequência visitam certos lugares, os aplicativos assumem, cada vez mais, a função de dispositivos de controle.

A sociedade do aplicativo, se embarcarem na minha “brincadeira”, seria uma espécie de variação, ou sofisticação, da sociedade do controle. Mas que forma de controle é essa que está na palma da mão e, aparentemente, sob o nosso comando? É exatamente esta a sofisticação. Julgamos comandar a tecnologia, porque está sob o nosso controle, mas na verdade somos dirigidos por ela (creio que o seriado inglês Black Mirror capturou isso de maneira inteligente). Por meio destes dispositivos, criados freneticamente, introjectamos e assimilamos inúmeras formas de controle sobre nossas vidas e passamos a usá-las no dia-a-dia sem se dar conta do espaço que vão ocupando nas nossas relações e na mediação da nossa comunicação com o mundo e, sobretudo, da forma como vão ditando nosso comportamento e orientando os nossos desejos. Os Aplicativos estão para a sociedade de controle assim como o Panóptico estava paras a sociedade disciplinar.

Em alguns casos, os Apps são um substitutivo para a memória, pois nos avisam e nos lembram a todo instante das coisas que devemos fazer. Parece cômodo (e é), mas cria dependência. Um estudo realizado pela Flurry, empresa que desenvolve e comercializa uma plataforma para analisar as interações do consumidor com aplicativos móveis, revelou que há em torno de 280 milhões de viciados em aplicativos para celular no mundo (considerando que a pesquisa já tem mais de dois anos, o número deve ter aumentado exponencialmente). Especialistas do Hospital das Clínicas, de São Paulo, afirmaram que 10% dos internautas brasileiros já foram diagnosticados com dependência de tecnologia: são pessoas que ficam até 12 horas conectadas e, quando desconectadas, apresentam sintomas de tremedeira, sudorese, taquicardia e, em casos mais complicados, com tentativas de suicídio. Todavia, advertiu um especialista, não é o tempo conectado que define uma situação de dependência, mas a perda de controle sobre a tecnologia (Link para consultar estas informações: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/07/viciados-em-tecnologia-usam-app game-e-celular-como-se-fosse-droga.html).

A dependência é alarmante, não há dúvidas, e atinge os consumidores de tecnologia em diferentes graus. Mas eu estou chamando a atenção para os dispositivos de controle que os Apps carregam, e os efeitos coletivos sobre milhões de pessoas, comandadas pelos mesmos programas. Além de saber onde os usuários estão e o que estão fazendo, à maneira de um panóptico móvel, os Apps, cada vez mais, definem os gostos, as escolhas, os procedimentos, o lazer e as formas de mobilidade de milhões de usuários, que são induzidos a determinadas ações, gerando um comportamento de manada. Uma manada montada na tecnologia e facilmente dirigida para os caminhos ditados pelo poder pastoral dos Apps.

A cadeia de Apps criada para facilitar as nossas vidas estão roubando, com o nosso consentimento, a nossa liberdade, a liberdade de decidir, de improvisar, de errar. O filósofo francês Jean-Michel Besnier disse recentemente numa entrevista que “estamos cada vez mais cercados de máquinas que são pensadas para facilitar nossa vida”, para melhorar a circulação, a segurança e nos poupar tempo.  Mas isso também tem sequestrado as nossas iniciativas. “Nós nos tornamos cada vez menos livres - portanto, menos morais - e nos comportamos cada vez mais como máquinas. Isso abre as portas para uma desumanização. Ser livre é aceitar a sorte, tomar riscos (Besnier).”

“A visibilidade é uma armadilha [...] É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar" (Foucault). Eis a nossa condição, mas com um agravante: as tecnologias de controle e vigilância contemporâneas, diferentemente das fábricas-prisões e das câmeras de vigilância, são atraentes, sedutoras, viciantes, pagamos caro por elas e acreditamos que elas ampliam nossas redes de sociabilidade e nossas liberdades de escolha e movimento (Ou será que nós nos enredamos como peixes na poderosa rede (a armadilha) e usamos a tecnologia das redes para manter o outro sob nosso controle, vigilância e monitoramento, fiscalizando seus passos, gostos e comportamentos?).





terça-feira, 14 de novembro de 2017

O ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente contra a bruxa feminista.

O ATIVISMO DA IGNORÂNCIA CONTRA JUDITH BUTLER. Ou: não li, não conheço e sou decididamente contra a bruxa feminista.


Nada mais assustador que a ignorância em ação (Goethe).



Ignorância, do latim ignorantia, deriva de ignorare (in, não – ganrus, aquele que domina um tópico ou assunto, sabedor), que significa “não saber”. Ignorante, portanto, é aquele que ignora, que não sabe. Ignorar, ou não saber nada sobre determinadas coisas, não é nenhum problema. Pelo contrário, é o ponto de partida para sair do estado de ignorância. Algumas das melhores pessoas que conheci na vida eram totalmente ignorantes sobre quase tudo o que me é importante. A ignorância só se torna um problema quando nos posicionamos sobre o que não conhecemos. Ou, o que é mais grave, quando nos tornamos ativistas contra o que desconhecemos. Neste caso, a ignorância se transforma numa arma assustadora contra os direitos do outro, pois o ignorante, destituído de argumentos minimamente razoáveis, é uma máquina de insultos, agressões e ofensas.
O caso das manifestações contra exposições de arte, e mais recentemente contra Judith Butler, são exemplares. Sem o mínimo entendimento sobre os sentidos da arte, e as intenções dos artistas, ou sobre o que escreve e pensa a filósofa estadunidense, manifestantes, que se julgam pessoas de bem, montam guarda, no pior estilo fascista, em nome de supostos bons costumes, para impedir exposições artísticas, que até ontem desconheciam, e o livre pensamento de uma filósofa, da qual nunca ouviram falar. Butler tem uma trajetória intelectual e acadêmica de mais de trinta anos, e os estudos de gênero no Brasil remontam ao começo dos anos 80. Mas para a turma que acordou agora (Afinal, o gigante acordou), e desfila seu bloco da intolerância na avenida, tudo parece novidade. Acusam levianamente artistas de incentivarem a pedofilia e a filósofa de pretender destruir a família. Os ativistas, que se auto-intitulam de direita, combatem o que não conhecem, não concordam com o que não leram e berram nas ruas e nas redes sociais para silenciar tudo o que está em desacordo com as suas recentíssimas “convicções”. E o curioso é que quanto menos sabem, mais certezas têm. O volume ensurdecedor do berro é proporcional ao tamanho da ignorância!

Aconteceu coisa parecida, em fevereiro de 2013, quando a blogueira cubana Yoani Sanchéz veio ao Brasil lançar o livro “De Cuba, com Carinho”. Fascistas ditos de esquerda montaram uma milícia castrista, ignorante e barulhenta, para impedir a bruxa traidora da revolução de falar. Exibiam, orgulhosos, cartazes ofensivos e gritavam palavras de ordem adestradas. Típico dos rebanhos políticos. Para quem diz estar em lados opostos, os tais de esquerda e os de direita são tão parecidos. São os dois extremos da ferradura. Andam quase de mãos dadas, irmanados pelo fanatismo, e não se dão conta.


Aliás, o extremismo desta turma que combate a “ideologia de gênero” não fica devendo nada à mentalidade inquisitorial medieval, profundamente misógina. Como há 500 anos, estamos vivendo, perplexos, uma verdadeira e delirante caça às bruxas. Em defesa da “família” e da “tradição”, manifestantes queimaram um boneco de uma bruxa com o rosto de Judith, em frente ao Sesc Pompeia. Aos gritos, e exibindo cruzes, os novos fanáticos gritavam: “queimem a bruxa”. E queimaram! Queimaram a filósofa em efígie. Lançaram às chamas o pensamento diferente, em pleno século XXI. O ato é de uma violência simbólica estarrecedora, de viés totalitário.  Logo eles, que se dizem liberais e críticos dos totalitarismos de esquerda. Pelo visto, além de lutar contra o que jamais compreenderam, defendem também o que não conhecem. São antifeministas por arremedo e liberais por desconhecimento!

O que mais esperar desta turma¿ Já invadiram salas de aula, aos gritos, à caça de supostos professores comunistas. Difamam todos aqueles que se manifestam publicamente a favor do que eles condenam (recentemente atacaram Fernanda Montenegro). Tentam, em nome de duvidosos valores democráticos, intimidar, constranger, silenciar e destruir reputações. Um pouco mais e estarão queimando livros em praça pública.

Uma petição que circulava entre os manifestantes concentrados em frente ao Sesc Pompeia, dizia: “Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta promova em nosso país suas ideias absurdas, que têm por objetivo acelerar o processo de corrupção e fragmentação da sociedade”. Como cavaleiros cruzados, os heroicos defensores da “família” e da “tradição” julgam estar numa cruzada antiapocalíptica em nome da decência e do que é certo (estão tão certos disso que nunca lhes ocorre que os outros também podem estar, à sua maneira, certos).

Gostaria muito de saber o que eles entendem por “fragmentação da sociedade”? A tal sociedade, que eles dizem defender, é, por acaso, una, homogênea, monolítica?  Talvez seja exatamente isso que eles desejam (mas não conseguem formular), uma sociedade homogênea, de valores férreos e imutáveis, de machos e fêmeas inequívocos, desempenhando papeis para os quais nasceram, e que silencia e lança às chamas quem ousa pensar de outra maneira. Uma sociedade que não pensa, que não comporta a diferença, que não reflete sobre si mesma, que apenas reproduz certezas convenientes ao modelo normativo dominante.


No aeroporto, antes de embarcar, Judith foi hostilizada por um grupo, e por duas mulheres em particular, que a perseguiam, empunhando cartazes, acusando-a de ser “assassina de crianças” e “destruidora da família”. Que tristes figuras, absolutamente certas sobre o que desconhecem.
Um dos guias morais destas pessoas, e digníssimo representante da novíssima decência nacional, Alexandre Frota, se expressou, em português peculiar, sobre a heroica ação no aeroporto: “Se alguém achou que iríamos deixar Judith Butler sair do Brasil sem ouvir a verdades se enganou estávamos a espera dela no aeroporto de Congonhas e lá teve q ouvir”. Prefiro não saber sobre “a verdades” de Frota. Por outro lado, sua ignorância é eloquente!

O pensamento de Judith Butler não está acima das contestações e deve, claro, ser examinado criticamente, mas com honestidade e respeito, como ela fez, por exemplo, com Simone de Beauvoir, na obra “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, de 1990. Butler questionou a dicotomia sexo/gênero, formulada por Beauvoir, marcada pelo dualismo ontológico cartesiano e pelo essencialismo de gênero, que, entre outras coisas, apontava para a categoria mulher como um bloco monolítico. O “Segundo Sexo”, de 1949, uma das mais significativas e influentes obras do feminismo do século XX, distinguiu pela primeira vez a construção do gênero do sexo dado, e abriu, com isso, a possibilidade de desmontar a sentença de Freud de que “a anatomia é destino” e as construções deterministas do século XIX que partiam da biologia para explicar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Butler reconhece esta valiosa contribuição, mas entende que ela precisa ser superada, principalmente sua estrutura binaria (homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino), para dar lugar às interpretações que sustentam o caráter mais fluido do gênero, que admitem uma multiplicidade de sujeitos. Em outras palavras, as identidades de gênero, e as experiências humanas, não cabem e não se esgotam nas categorias fixas de homem e mulher.

                                                                 Conchita Wurst.

A obra de Butler, como qualquer outra, precisa e deve ser questionada.  Mas para isso, é necessário entender o que ela propõe. É preciso lê-la. Não tem outra maneira. Questioná-la sem ler o que ela escreveu, e protestar contra, é a mesma coisa que dizer que odeia jabuticaba, sem nunca ter experimentado, e tentar convencer os outros de que a fruta não presta. Daí as aberrações: “assassina de crianças” e “destruidora da família”.

Os que não leram, e não sabem o que Butler pensa, seguem outros que também não leram. A desinformação faz escola (partidária e doutrinadora) e marcha, orgulhosa da própria ignorância, pelas ruas do Brasil medieval. “Queimem a bruxa”!





sexta-feira, 20 de outubro de 2017

NA ESQUINA DO POSITIVISMO COM O JACOBINISMO REPUBLICANO: Reminiscências da Esquina Republicana.

NA ESQUINA DO POSITIVISMO COM O JACOBINISMO REPUBLICANO: Reminiscências da Esquina Republicana.

Nas esquinas.


Passei minha infância e adolescência (e parte da vida adulta) no ponto de encontro entre duas ruas bem conhecidas em Santa Maria (RS), cujos nomes homenageavam duas figuras importantes no contexto da construção do regime republicano (1889 – 1891) e de sua afirmação nos planos simbólico e institucional: Benjamin Constant e Silva Jardim.

Benjamin Constant (1837-1891) foi intelectual e professor, de escolas civis e militares, republicano e positivista. Foi um dos grandes divulgadores das doutrinas de Auguste Comte no Brasil, um dos articuladores do golpe militar que derrubou a Monarquia, e ocupou cargos importantes no governo provisório de Deodoro da Fonseca (Ministro da Guerra e Ministro da Instrução Pública).

Silva Jardim encarnou a ideia jacobina, a la Danton, de República, inspirada no modelo francês. Os jacobinos brasileiros defendiam uma ideia de República considerada radical. Adversário ferrenho do regime monárquico, Silva jardim participou ativamente da campanha republicana.

Ambos morreram em 1891. Não viram – como Lima Barreto e Euclides da Cunha viram, e se desencantaram – no que a República se transformou. Constant morreu um pouco antes da Constituinte encerrar os seus trabalhos e concluir a Constituição. Jardim morreu no vulcão Vesúvio, durante uma visita, tragado por uma fenda que se abriu aos seus pés, antes do jacobinismo se associar ao florianismo.

Nos anos iniciais da República, os nomes das ruas foram alterados. Os antigos nomes, geralmente associados a figuras e às tradições monarquistas, foram substituídos por nomes relacionados à República. As mudanças dos nomes faziam parte das batalhas em torno da afirmação do regime republicano no plano simbólico. Apagava-se a história, ou as referências históricas ligadas à monarquia, e rebatizava-se as ruas das cidades com nomes que homenageavam personalidades identificadas com os ideais ou com o regime republicano. Silva Jardim e Benjamin Constant foram duas das figuras mais homenageadas. Difícil encontrar uma cidade que não tenha ruas com os seus nomes.

Na esquina da Silva com a Benjamin, minha mais significativa referência urbana, eu encontrava os amigos. Jogávamos futebol, andávamos de skate, brincávamos de esconde-esconde, trocávamos figurinhas de álbuns de futebol e desenho animado, jogávamos bolinha de gude, bebemos nossas primeiras cervejas e ensaiamos os primeiros namoros. Tudo acontecia naquela esquina, que ficava numa elevação estratégica que dava vista para todos os lados.

Na fase dos vinte e poucos anos, já cursando a faculdade de História, virávamos as madrugadas naquela esquina. Alguns amigos novos, de outros cantos da cidade, se juntavam ao meu grupo para bater papo, sobre política, música, trocar vinis e fitas k7 e tocar violão (Improvisávamos, com violões precários, canções do Belchior, do Caetano, do Gil, dos Stones, do Mautner, interpretações da Elis, uma coisa ou outra do Led Zepelim, e por aí vai. O gosto da moçada era variado e ninguém tocava muito bem). Não éramos mais crianças e a esquina também já não era mais a mesma. Dois ou três prédios foram construídos, o asfalto substituiu as charmosas pedras de paralelepípedo e os carros, mais numerosos e andando mais rápidos, já não permitiam, às novas gerações, brincar, como brincávamos, no meio da rua.

Àquela altura, já metido à historiador, me dei conta dos nomes das ruas e brincava politicamente com a situação. Quando alguém perguntava onde morava, respondia em tom de brincadeira: na esquina republicana, no ponto de encontro do Positivismo com o Jacobinismo. Era uma brincadeira inteligentinha para impressionar os amigos.

Ainda hoje, quando volto à Santa Maria, vou até a esquina dar uma olhada. Meu irmão ainda vive na casa onda morávamos (a menos de 50 metros do encontro das ruas). Levo meu sobrinho, hoje com 8 anos, sentamos na mesma calçada de cimento e ficamos de papo, observando o movimento. Está tudo tão diferente, mas, se observo alguns detalhes, um muro castigado pelo tempo, uma calçada tomada pelo mato, uma velha garagem, o pequeno trecho de rua de pedras que dá acesso à esquina, tudo vem tão vivamente à memória, como no filme do Tornatore, Cinema Paradiso, quando Totó volta à sua cidadezinha, na Sicília, para o enterro de Alfredo.

Para além dos nomes, e da brincadeira política, as ruas Silva Jardim e Benjamin Constant eram as artérias que me levavam, sempre a pé, para todos os cantos da cidade. Da esquina republicana tomávamos todas as direções. Era o nosso ponto de partida. A história que construí na e com a cidade passa por estas ruas.

Existe uma poética das ruas, escrita com nossas experiências, tecida por lembranças, palmilhada pelas andanças, constituída pelos universos que elas comunicam. Uma poética das direções, dos sentidos, das reminiscências, do que se perde e do que se acha no vai e vem das ruas.

Na esquina da Silva com a Benjamin eu descobri o mundo. Ali, nas noites quentes, perfumadas de jasmim, eu li Drummond. Nas madrugadas frias, envoltos pelo espesso lençol de cerração, filosofávamos em vão, sem guia, sem chão, sem Comte, sem Danton, embalados apenas pelo gosto da conversa, que aflora nas rodas de chimarrão.

Às vezes penso que nunca sai daquela esquina.


terça-feira, 10 de outubro de 2017

A CONSTRUÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO COMO HERÓI NACIONAL E MITO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA.

A CONSTRUÇÃO DO BARÃO DO RIO BRANCO COMO HERÓI NACIONAL E MITO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA.




“E era de esperar que de todos os pontos do Brasil rompesse [...] o hino de gratidão e glória ao Restituidor dos territórios, filho do Libertador dos ventres escravos! [...]O glorioso brasileiro, porém, não guardará ressentimento disso: ele não é dos que se estafam no trabalho com o pensamento fixo no salário” (Olavo Bilac).













1.     O Herói Nacional.

Duas observações inicias:

1.     Os heróis e os mitos políticos são símbolos de identificação coletiva. São signos por meio dos quais um regime político (A República) ou uma instituição (O Itamaraty) expressam os seus valores e se legitimam socialmente.

2.     Os heróis não nascem prontos. São construções históricas e sociais idealizadas que se projetam para além dos condicionantes de sua época. O herói é o homem que sai da vida para tornar-se símbolo. No caso do Barão do Rio Branco, herói da nacionalidade, pelos serviços prestados à consolidação do território nacional, e símbolo da diplomacia brasileira.



José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, era considerado, em vida, um herói nacional. Caso raro. Gozava de enorme prestígio no círculo das elites letradas que, com algumas exceções, o tratavam como um semideus. Gozava também de grande popularidade. Era uma figura carismática e, em certa medida, anedótica, apesar do corte aristocrático. Era um notório comilão, frequentador assíduo do restaurante do Minho, e gostava de passear a pé respondendo aos cumprimentos dos populares. Sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 1902, para tomar posse como ministro, foi triunfal, dizem os seus biógrafos. Vitorioso nos dois arbitramentos, com a Argentina e a França, foi recebido no porto por uma multidão! O navio Atlantic, que o trazia da Europa, foi cercado por lanchas com representantes do governo, das forças armadas e de diversas entidades da sociedade carioca. Do navio, o Barão passou para o Galeão D. João VI que, sob distinta escolta, o conduziu até o cais Pharoux. Desfilou pelas ruas em carro aberto, sob aplausos, como um “triunfador romano”, segundo a pena apologética de Álvaro Lins. Sob gritos, aplausos, clarins, bandas de música e flores que eram jogadas das sacadas pelas mulheres, o Barão teve o seu “encontro pessoal com a glória”.  Quando os cavalos não puderam mais prosseguir, dado o acúmulo de gentes, estudantes se prontificaram para puxar o carro (Filho; Santos). Um episódio narrado por Álvaro Lins, biógrafo de Rio Branco, chama bastante a atenção. A certa altura do percurso, um “preto, ex-escravo”, aproximou-se chorando do landau que trazia o Barão, tomou-lhe a mão e disse que beijava a mão do filho do maior dos brasileiros, libertador de escravos. Embora atribuída à percepção dos cronistas da época, é difícil saber se o episódio de fato ocorreu ou foi um enfeite, um acréscimo da imaginação apologética para ressaltar ainda mais a importância do acontecimento. Todavia, difícil mesmo é não perceber a semelhança entre a forma como Olavo Bilac, citado na epigrafe, e o “preto” anônimo, típicos representantes da cultura erudita bacharelesca e da cultura popular brasileiras, se referiram ao Visconde do Rio Branco. Os apelos à redenção nacional e à predestinação são sugestivos dos atributos que o Barão, como querem os apologistas, trazia do berço.

A vida do Barão, especialmente os anos de chancelaria, foi coroada de honras e lauréis. Mas foi depois da morte, em 10 de fevereiro de 1912, que se estabeleceu verdadeiro culto à sua figura. Personalidades da época, como Olavo Bilac e Rui Barbosa, e conhecidos desafetos, como Oliveira Lima e Estanisláo Zeballos, renderam-lhe as mais distintas homenagens. O carnaval foi adiado para abril e os jornais derramaram solenes e honrosos elogios fúnebres em sua homenagem. Para o jornal A República, por exemplo, “Nenhum brasileiro atingiu mais alto o culto da veneração popular. O Barão do Rio Branco era verdadeiramente um patrimônio nacional. A nação que o amou em vida há de idolatrar-lhe reverentemente a sua venerada memória”.

Cinco dias depois do falecimento, a Avenida Central, principal via de circulação do Rio de Janeiro, que ligava o Novo Porto à região da Glória, passou a chamar-se Avenida Rio Branco, conforme noticiou o jornal O Paiz, de 16 de fevereiro de 1912.
(Imagem do jornal).

No plano extraoficial, portanto, o Barão já era herói. Todavia, a oficialização de seu nome para figurar no panteão nacional só aconteceria no século XXI. Em abril de 2011, antecipando-se ao Centenário da morte do Barão, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 7403/02, que inscreveu o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. O mesmo já havia sido feito em 2002, por ocasião do Centenário da posse de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores (MRE). No documento enviado ao presidente Fernando Henrique Cardoso, assinado por Celso Lafer e Francisco Weffort, foram apresentadas as seguintes justificativas para a inclusão do nome do chanceler no Livro dos Heróis:

“Além da obra de Rio Branco, ressaltaram-lhe os membros da Comissão o espírito, a grandeza moral, a personalidade política, os dons intelectuais e, sobretudo, a visão de um Brasil grande e respeitado no plano internacional. Em seu tempo, foi ele considerado "o maior dos brasileiros vivos" e declarado "benemérito" por decreto; morto, tornou-se um paradigma de patriotismo e dedicação desinteressada ao serviço do país. Enalteceram-no contemporâneos do porte de um Oliveira Lima, para quem "contribuiu mais do que ninguém para fazê-la (a pátria) maior e contribuiu tanto quanto os melhores para fazê-la respeitada".

A grandiloquência dos adjetivos usados para justificar a inclusão do Barão no seleto livro dos grandes heróis nacionais não deixa dúvidas sobre as extraordinárias virtudes que o homem colecionava. Os admiradores dos feitos e dos talentos do Barão, ontem e hoje, nunca economizaram nos adjetivos. Não que o chanceler não mereça alguns deles. Mas daí a transformar o homem na cornucópia das virtudes, vai uma grande diferença.

Os Centenários da posse e o da morte foram eventos simbolicamente importantes para a atualização do culto e rememoração dos feitos do Barão. Datas comemorativas se prestam a estas finalidades. Comemorar é um movimento de retorno ao passado para trazê-lo à memória. É relembrar com, é tornar presente, reatualizar. Como o presente não é fixo, e suas demandas se renovam, os eventos do passado são sempre recriados a cada comemoração. Estas ocasiões são marcadas por festividades, solenidades públicas, seminários, lançamento de selos comemorativos e pela publicação de obras literárias, historiográficas e/ou hagiográficas em homenagem aos heróis da fé, da política, da diplomacia.

Nos anos subsequentes ao falecimento, vários monumentos foram erigidos em diversas cidades brasileiras, para imortalizar no bronze as glórias do Barão. Lidos como artefatos dotados intencionalmente de sentido político, os monumentos, instalados nos espaços públicos das cidades, são intervenções no presente que expressam os sentimentos estéticos de uma época e dirigem mensagens simbólicas para o futuro. São “verdadeiros discursos políticos” republicanos, de influência positivista, que exaltam o culto cívico e as virtudes do homem que dignificou a pátria. Construídos pelo Estado ou por grupos políticos (como a elite republicana brasileira no começo do século XX), os monumentos celebram as glorias do passado (identificados com os seus interesses) e visam o fortalecimento da identidade nacional (Carvalho; Corrêa). São, portanto, expressões e afirmações da identidade e do poder de determinados grupos políticos.

Em Porto Alegre, para ficarmos com um exemplo, o monumento foi inaugurado em 1916, na praça da Alfandega, em frente ao Memorial do Rio Grande do Sul. O Barão, majestoso, segura com uma das mãos um indefectível pince-nez, com a outra, o Tratado das Missões. Numa das placas comemorativas, colocada à sua frente, lemos a inscrição: Em toda a parte me lembro da Pátria. Na base do monumento, uma mulher, representando a República, revestida com símbolos republicanos tradicionais (coroa de louros e barrete frígio), porta a bandeira nacional e estende reverentemente o braço na direção do Barão. A República se rende em homenagens ao homem que nunca abandonou o título nobiliárquico (que recebeu de Princesa Isabel, em 1888, como um agrado ao filho do autor da lei do Ventre Livre).



Em 1945, no contexto das celebrações dos cem anos do nascimento do Barão, foi publicada a primeira biografia em sua homenagem, encomendada por Oswaldo Aranha e Maurício Nabuco, respectivamente ministro e secretário das relações exteriores, e escrita por Álvaro Lins. Com tons acentuadamente hagiográficos, Lins pinta um retrato do Barão, a quem chama de “esfinge”, que o eleva ao plano da transcendência.  A morte “não era o fim, mas o começo de alguma coisa”, observa gravemente o biógrafo. “Efetivamente, ali começava agora a mais autentica existência de Rio Branco: a existência imaterial e histórica, contra a qual não teriam forças nem a morte, nem o tempo”. A biografia foi reeditada em 1996, em homenagem ao sesquicentenário do nascimento.

1945 é o ano em que Rio Branco se consolida de fato como Patrono da Diplomacia Brasileira. Além da biografia, uma série de decretos, assinados por Getúlio Vargas, transformaram o 20 de abril (data do nascimento) numa data cívica, criaram o Instituto Rio Branco e instituíram a medalha comemorativa do centenário do nascimento. O Instituto passou a chamar-se Casa Rio Branco e o Barão tornou-se sinônimo de tradição na diplomacia brasileira. A invenção da tradição Rio Branco prosseguiu com o decreto de 1963 que instituiu a Ordem e Rio Branco e o de 1970, que transformou o 20 de abril no Dia do Diplomata.

Em 1959 veio a público a segunda biografia de Rio Branco, escrita por Viana Filho (Também reeditada em 1996). Os dois biógrafos, cada um à sua maneira, exaltaram as qualidades do Barão, enfatizaram as linhagens familiares, com destaque para a fidalguia e a “herança militar” que “trazia no sangue”. A carreira diplomática é nos apresentada como vocação familiar e como predestinação.

Em geral, os escritos sobre Rio Branco são bastante seletivos. Tudo o que depõe contra ou pode de alguma forma macular o herói, como certas passagens da juventude, é deixado de lado. Raramente é trazido à memória, por exemplo, as intervenções do chefe de gabinete conservador do Império, Duque de Caxias, e do ministro de Negócios Estrangeiros, Barão de Cotegipe, em favor da nomeação de Paranhos para cônsul-geral em Liverpool. Aproveitando a ausência de Pedro II, que era sabidamente contra e estava nos Estados Unidos para assistir os festejos do centenário da Independência, os dois amigos intercederam junto à Princesa Isabel (Mariz). Cotegipe, numa última e pesada cartada, ameaçou renunciar, caso a princesa não assinasse a nomeação. A renúncia abriria uma “crise política de consideráveis proporções” (Mariz). “Estaria a regente disposta a provocar uma crise, na ausência de seu pai, por um motivo tão fútil?”, ponderou o biógrafo Viana Filho, em torcida póstuma pela tão esperada nomeação. Isabel não resistiu à pressão e, em maio de 1875, depois de três tentativas fracassadas da dupla Caxias/Cotegipe, nomeou Paranhos Júnior. (O capítulo intitulado Liverpool, da biografia de Viana Filho, traz em detalhes as circunstâncias da nomeação, enriquecidas com trechos de cartas trocadas entre os envolvidos).



A memória de Rio Branco também foi imortalizada nos selos postais. Embora não devidamente valorizados como fontes de pesquisa, os selos são peças importantes das engrenagens mistificadoras e dos processos de construção de heróis nacionais. Muito mais do que simplesmente um papel adesivo que comprova o pagamento de uma taxa por serviços postais, os selos acompanham a história do Brasil desde meados do século XIX e carregam os diferentes sentidos que a história assumiu em distintas condições históricas. São, por isso mesmo, instrumentos pedagógicos valiosos, de fácil manuseio e baixo custo (SALCEDO).

Os Selos em homenagem ao Barão são lançados em datas comemorativas, ocasiões oportunas para celebrar e reatualizar o mito. Ao lado dos monumentos, das biografias, dos nomes de ruas e das muitas formas de homenagens, os selos, vistos como portadores de discursos políticos, ajudaram a compor a grande narrativa do “herói” e pavimentar o caminho para a imortalidade.

Selo de 1945 – Centenário do Nascimento do Barão (20 de abril de 1945).


Selo de 1995 – Sesquicentenário do Nascimento do Barão.


Não há dúvidas de que o Barão do Rio Branco, chanceler brasileiro entre 1902 e 1912, definiu os contornos e as diretrizes fundamentais da política externa republicana no início do século XX. Era um homem de talentos, de visão e, sobretudo, um dedicado estudioso da história e dos limites territoriais do Brasil. Sua importância, no entanto, não pode ser vista como um ato de iluminação, de grandiosidade patriótica desinteressada ou identificada com algum tipo de predestinação. Para alguns estudiosos da política externa que embarcam neste conto laudatório da diplomacia, a figura de Rio Branco, entidade quase mítica, paira inalcançável sobre seus sucessores. É necessário reconhecer a importância do Barão naquele período, afinal, foram dez anos comandando a política externa, mas é preciso, também, evitar exageros e idealismos que elevam o chanceler a uma condição sobre-humana e dificultam uma apreciação mais serena do seu trabalho. Rio Branco exerceu suas funções no espaço político demarcado pelas forças oligárquicas. Esteve à frente do MRE por dez anos, caso único, e emplacou notável estabilidade à política externa porque sua gestão traduzia perfeitamente os interesses da elite agroexportadora brasileira. O liberalismo jurídico, que orientou a conduta do chanceler nas relações exteriores do Brasil, ia ao encontro das expectativas dos grupos ligados ao comércio exterior. Quando Rio Branco deslocou, como ele dizia, o eixo da diplomacia brasileira de Londres para Washington, mais do que visionário, ou um homem à frente do seu tempo, tomava essa decisão amparado por números que não deixavam dúvidas sobre a orientação do comércio exterior brasileiro naquele começo de século: o mercado interno norte-americano absorvia 36% das exportações brasileiras e, desde o fim da guerra de secessão, importava mais da metade do café brasileiro e era o principal importador do cacau e da borracha. Havia, como bem observou Rubens Ricupero, perfeita correspondência entre os gestos diplomáticos e a realidade econômica. Isso não diminui as escolhas do Barão, acertadas ou não, apenas as retira do plano metafísico e as coloca numa dimensão histórica e política. Barão do Rio Branco levou a efeito, e com sucesso, um esforço de aproximação entre os dois países que já vinha das últimas décadas do século XIX, cujos primeiros movimentos remontam à viagem de D. Pedro II aos Estados Unidos, em 1876.

O culto nos círculos diplomáticos em torno do Barão beira à idolatria. A literatura apologética, composta de biografias, necrológios e ensaios históricos, tende a separar a história da política externa brasileiras em dois momentos e apresentar o Barão como o homem providencial, o marco fundante da moderna diplomacia brasileira. Este tipo de interpretação tende a exaltação dos feitos do chanceler como obra sobre-humana, inscrita num plano superior, metafísico, descolada das condições históricas e das relações políticas às quais ele estava ligado e das quais se beneficiou no começo da carreira diplomática. Fica a impressão, quando lemos certos autores, que a gestão do Barão transcendia à política doméstica e mantinha autonomia olímpica em relação ao peculiar jogo de interesses que caracterizava a política do seu tempo.



2. O Pai da Diplomacia Brasileira.

Rio Branco é considerado o “pai da diplomacia brasileira”. A homenagem, em certo sentido, é compreensível. Rio Branco foi um marco de estabilidade e de definições na política externa, que contrasta com o período anterior, marcado pela instabilidade e, ao que tudo indica, pela falta de diretrizes claras da atuação internacional do Brasil. Mas, sem os devidos cuidados, a homenagem pode encerrar uma forma de distinção que hierarquiza arbitrariamente dois momentos históricos. O título de “pai” remete a figura do fundador, do criador, da gênese da instituição da diplomacia. O que havia antes da sua chegada ao MRE passa a ser visto como um tempo difuso, nebuloso, espécie de pré-história da diplomacia. Com Rio Branco fez-se a luz e o Brasil, finalmente, passou a ter uma diplomacia digna deste nome. Não preciso nem dizer que construções como esta tem o efeito, mesmo que indesejado, de lançar às sombras os esforços diplomáticos anteriores em prol, por exemplo, da delimitação das fronteiras conduzidos pelos diplomatas do Império, como Duarte da Ponte Ribeiro, o fronteiro-mor do Império (GOYCOCHÊA).



Se considerarmos a rotatividade do cargo de chanceler entre 1889 e 1902 (13 ministros ocuparam o cargo em 12 anos) e o ligeiro desinteresse e amadorismo dos primeiros governos republicanos em relação à política externa, que priorizaram a construção da legitimidade interna da república, a chegada de Rio Branco ao MRE parece ser mesmo providencial. Desde 1876 vivendo na Europa, desempenhando as funções de cônsul e embaixador, em Liverpool e Berlim, respectivamente, o Barão chegava ao Brasil em 1902, a convite do presidente Rodrigues Alves, carregando um impressionante histórico de vitórias diplomáticas, sobre a Argentina e a França, que selaram definitivamente dois problemas de fronteira herdados do século XIX.  Tudo isso contribuiu para a heroificação ainda em vida. Depois da morte, na pena dos apologistas, os feitos ganharam dimensões épicas e o nome do Barão foi definitivamente incorporado ao panteão dos heróis como uma das raras unanimidades nacionais.



Referências Bibliográficas.

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. São Paulo: Cia das letras, 1990.
CORRÊA, Roberto Lobato. Monumentos, política e espaço. Revista eletrônica de Geografia y Ciências Sociales. Universidad de Barcelona.Vol. IX, núm. 183, 2005.
FILHO, Synesio Sampaio Goes. Fronteiras: o estilo negociador do Barão do Rio Branco como um paradigma da política exterior do Brasil. In: Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. FUNAG, 2002.
FILHO, Viana Luís. A vida do Barão do Rio Branco. São Paulo: José Olímpio, 1988.
GOYCOCHÊA, Luis Felipe Castilhos. O Fronteiro-mor do Império (Duarte da Ponte Ribeiro). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
LINS, Álvaro. Rio Branco (biografia). Brasília: Alfa-Omega, 1996.
MARIZ, Vasco. A mocidade do Barão do Rio Branco e sua tormentosa nomeação para a carreira diplomática. Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. FUNAG, 2012.
MOURA, Cristina Patriota. Herança e metamorfose: a construção social de dois Rio Branco. Revista Estudos Históricos. FGV. N 25, 2000.
SANTOS, Luís Cláudia Villafañe. O dia em que adiaram o carnaval. São Paulo: UNESP, 2010.
RICUPERO, Rubens. Rio Branco: definidor de valores nacionais. In: Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. FUNAG, 2002.
SALCEDO, Diego. A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 1900-2000. Editora Universitária (Livro em construção).